Há coisas que ficariam melhor se você não visse, ou simplesmente fingisse que não havia visto, ou ouvido.  

Há certas sensações que eu simplesmente gostaria de não ter. Desconfortos que, na minha opinião, mostram-se totalmente desnecessários e só fazem atrapalhar. 

Estávamos entre patrocinadores e equipes de outros distritos, todos tentando conseguir qualquer tipo de ajuda para manter seus respectivos tributos vivos na arena. Haymitch parecia bastante confiante de si quando descemos e fomos em direção ao salão.  

Passamos boa parte do tempo ao lado do outro, tendo como meta conseguir conquistar um patrocinador, pelo menos. Mas estava bem complicado. Até chegar um momento em que decido buscar bebida para nós dois, o que, sem sombra de dúvida, alegra Haymitch. Vou até o bar e peço duas taças de vinho. Enquanto aguardo o meu pedido, olho ao meu redor e observo a grande movimentação neste lugar. Todos com as mesmas intenções: ajudar seus tributos. 

Talvez nem todos com as mesmas intenções, penso quando me viro para voltar, com as duas taças nas mãos. Haymitch está bastante próximo a uma mulher em vestes azuis e uma peruca num tom mais claro desta cor. Ele mantem uma de suas mãos pousada nas costas dela e, de repente, meu sangue ferve. O que ele está fazendo, afinal? 

— Effie Trinket – uma voz masculina soa ao meu lado e dou de ombros, vendo que se trata de Seneca Crane, o idealizador dos jogos. 

— Ah, olá, Seneca – cumprimento-o e ele esbanja um sorriso.  

— Essa outra taça tem dono? Porque, se não tiver, eu quero – ele diz, tentando parecer divertido. Lanço um rápido olhar na direção de Haymitch e em seguida, com um pequeno sorriso nos lábios, entrego-lhe uma delas. 

— Não - digo. - Não tem. 

Ele toma um gole de vinho e balança um pouco a taça. Volto a olhar na direção de Haymitch, que ainda conversa animadamente com aquela mulher. 

Suspiro e olho para Seneca, que termina de virar sua taça. Faço uma careta e balanço a cabeça, voltando a caminhar pelo salão. Tento ao máximo não acabar indo na direção de Haymitch, mas ele parece me encontrar antes que eu tome outro rumo. 

— Ei Effie! - ele me chama. E enquanto se aproxima, sua expressão muda um pouco, parecendo preocupado. - Ei... O que foi? 

— Nada – respondo automaticamente. Desvio o olhar, tentando disfarçar meu desconforto, e cruzo os braços. - É... não sei se você se importa, mas... não estou me sentindo muito bem. Acho que vou voltar, pode ser? 

— Ah... Quer que eu te leve? 

— Não precisa – me adianto em responder. - Pode ficar. 

Haymitch franze o cenho e, após alguns instantes, concorda com a cabeça. Não chego sequer a me despedir dele e começo a andar na direção oposta. Não olho para trás e nem ouso tentar. E quando me encontro na calçada, paro e penso em que lado continuar agora. E não preciso pensar muito até decidir ir para a minha própria casa. Amanhã voltarei ao prédio dos tributos. Será melhor tanto para mim quanto para ele. 

Respiro fundo e chamo um táxi. Em menos de dez minutos estou no meu prédio subindo no elevador até o meu apartamento. Uma sensação de conforto me invade quando finalmente entro e retiro o meu sobretudo. Coloco-o em cima do sofá, juntamente a minha bolsa. Ligo a TV e coloco nos Jogos, onde posso ver que os tributos do 12 ainda estão vivos. Uma onda de alívio me passa e vou até o meu quarto, separando minha camisola e um robe. Tomo um banho rápido e após me vestir decido prender os meus cabelos num coque, deixando duas madeixas caídas na frente do rosto. Na cozinha, separo alguns ingredientes e preparo um chocolate quente para finalmente me acomodar no sofá. Por alguns instantes me prendo a fumaça que vem da minha xícara, que seguro com as duas mãos, até me voltar para a TV, para, desta vez, ver a garotinha caindo numa cilada dos carreiristas, sendo esfaqueada em seguida. 

Sufoco um grito, mas logo sinto as lágrimas insistirem em cair. O pranto logo me pega de surpresa e não consigo evitar que as lágrimas caiam agora sem parar. Dou mais um gole no meu chocolate quente e me deixo chorar até sentir que já foi o suficiente. 

Choro por termos perdido mais uma tributo e porque provavelmente perderemos o outro. 

Choro por saber que neste exato momento Haymitch está com outra. 

Mais uma vez. 

A campainha toca quando ainda estou terminando de tomar o chocolate quente. Coloco-o no centro e enxugo o rosto antes de ir até a porta, perguntando-me que horas devem ser agora. Fungo antes de abri-la e logo vejo Haymitch, o que acaba me surpreendendo, visto que não havia avisado que viria para casa. Ele parece abatido e sua respiração está ofegante, como se estivesse correndo.  

Abro a boca para perguntar a razão dele estar aqui a essa hora, mas ele levanta o indicador, impedindo-me de falar qualquer coisa que seja. Levanto uma sobrancelha e aguardo que ele controle sua respiração. 

— Por que não me disse que tinha ido para casa ao invés do prédio dos tributos? - ele indaga parecendo chateado. O cansaço ainda domina sua face. - Porra, Effie, achei que tinha acontecido alguma coisa! 

— Qual o problema nisso?  

— Você não avisou! - ele retruca.  

Bufo e abro a porta para que ele entre.  

— E o que quer que eu faça? - indago após deixá-lo entrar. - Quer que eu me desculpe? 

— Não precisa – ele diz com a cara emburrada, até parecer finalmente estar prestando atenção em mim. - Você estava chorando? 

Fungo mais uma vez e percebo que mais uma lágrima havia caído, deixando seu rastro na minha bochecha. Limpo com as costas da mão antes de responder. 

— A garota morreu – digo e ele entende com facilidade. Após respirar fundo, Haymitch vai até o sofá e senta numa ponta enquanto eu vou para a outra. 

— É chocolate quente? - ele pergunta, olhando para a xícara que eu havia deixado no centro, contendo ainda um pouco de chocolate. 

— É - confirmo. - Você quer? 

Ele pondera por alguns instantes. 

— Acho que não - ele olha da xícara para mim. - Por que veio para cá? 

Mordo a parte interna do lábio. Sabia que cedo ou tarde ele me faria essa pergunta. 

— Eu só... - tento encontrar uma boa mentira para contar, mas nada me vem a cabeça. Então desisto. - Só não queria ouvir você transando no quarto ao lado – jogo toda a verdade de uma vez e o que recebo é uma careta. 

— Do que você está falando? 

— Ah, você sabe – digo. - Aquela gostosona lá de vermelho com quem você estava. 

Haymitch parece pensativo até um sorriso nascer em seus lábios e isso me irrita um pouco. 

— Acontece, Effie, que aquela gostosona de quem você está falando é uma patrocinadora – ele diz e meu estômago revira em desconforto. - Eu estava tentando buscar ajuda para os nossos tributos enquanto você disse que ia pegar bebidas e não voltou. Bom, voltou para dizer que ia embora e sumiu. 

— Patrocinadora? - repito e ele confirma com um menear de cabeça, agora prendendo o riso. 

— Você está com ciúmes? É isso? - ele me pega de surpresa e eu travo. Abro a boca, mas nenhum som sai dela. Isso faz o sorriso no rosto de Haymitch aumentar. 

— Claro que não - murmuro depois de um tempo, esticando-me para pegar a xícara no centro, mas ele consegue ser mais rápido e a pega antes de mim, leva até a boca e dá um gole, entregando-me em seguida. Vejo que ainda tem chocolate e levo-a até os lábios. 

— Effie, você deveria saber, mais do que ninguém, que eu nunca faria isso. Eu respeito você - ele diz e encontro o seu olhar. A xícara ainda está na minha boca e não há mais chocolate quente. Estou apenas mordendo a porcelana. Ele suspira. - Eu gosto de você. 

Sinto um desconforto novamente, mas não tão incômodo quanto antes. Retiro a xícara dos meus lábios sabendo que ele ainda aguarda uma resposta. 

— Você sabe o que eu diria, Haymitch – digo, recebendo um pequeno sorriso dele em troca.  

— Você está toda melada de chocolate – ele diz e me apresso a tentar me limpar. Passo a língua nos lábios e tento me lembrar de algum espelho que esteja próximo, mas não encontro. Divertindo-se com o que vê, Haymitch se aproxima bem mais de mim no sofá e me pede para ficar calma. Suas mãos vão até o meu rosto e ele passa os dedos bem próximos aos meus lábios, levando aos seus em seguida, dizendo "chocolate não se desperdiça". 

— Eu já imaginava que você era loira – prossegue. - Você fica muito melhor assim. 

— Claro que não - retruco. - Sem maquiagem eu sou um horror. 

— Não mesmo – insiste. Em seguida, se remexe um pouco no sofá. - Mas voltando ao que interessa, eu já disse que gosto de você e você gosta de mim... Acho que está faltando alguma coisa. 

— Está, é? - pergunto enquanto aproximo o meu rosto do dele, notando-o fazer o mesmo. Quando os nossos lábios se tocam, sinto-o levar uma mão até o meu coque, desfazendo-o. Penso em protestar, mas desisto. A sensação é boa. E assim que aprofunda o beijo, ele me puxa para o seu colo. Arfo com o movimento e volto a beijá-lo. Ele volta a levar uma mão aos meus cabelos, agora puxando-os enquanto nossas línguas se esbarram. Sua respiração está no mesmo ritmo da minha. 

Tomamos um pouco de distância, mas permaneço sentada em seu colo. Nossas respirações estão ofegantes, tentando voltar ao normal. 

— Eu sei que é chato, mas precisamos dormir – digo e vejo-o revirar os olhos. - Eu nem sei que horas são e vamos ter que acordar cedo amanhã. Ainda temos um... 

— Um tributo vivo, eu sei – ele completa, sem ânimo.  

— Acho que não vamos conseguir de novo. 

— Eu também acho – ele diz e em seguida acaricia as minhas pernas. - Bom, pelo menos estou aqui até o fim dos jogos. E, depois de hoje, acho que isso é uma coisa boa. 

Ele consegue me fazer rir. 

— Talvez seja – digo de uma forma nada convincente. Envolvo-o um abraço e sinto-o retribuir. Ficamos assim por um bom tempo até finalmente decidirmos dormir. Mas esse realmente estará sendo o lado bom não apenas desses Jogos, mas também dos próximos. Não somos apenas colegas de trabalho.