A Lagarta escrita por Vatrushka


Capítulo 18
Casulo




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Lana se viu, novamente, em um breu infinito. Mas desta vez não estava caindo.

Duas portas distintas apareceram em sua frente.

A porta do seu lado esquerdo era de mogno. Lana riu ao lembrar-se da Duquesa. Estava pintada de branco e sua maçaneta era dourada - brilhando de tão límpida.

A da direita era roxa. Haviam algumas ervas daninhas nela, e sua maçaneta parecia enferrujada.

Não sabia explicar como, mas de alguma forma Lana sentiu para onde cada uma ia dar. Sabia que a da esquerda seria a saída da mente de Alice, a volta para o mundo real - que agora tanto lhe assustava.

Julgou ainda não ter forças para voltar. Não sabia se conseguiria lidar com seus próprios pensamentos, com suas próprias dores.

Olhando para a porta da direita, sentiu algo diferente. Uma ousadia mesclada com aventura. Uma sensação deliciosa de insegurança.

Sentiu… A presença de Ghunter.

Lana lembrou-se… Antes de ter entrado na mente de Alice, Alice havia entrado na mente de Ghunter… Aquela porta era um acesso à memórias do Gato, agora reservadas na mente de Anh…

A Lagarta sentiu uma vontade repentina de entrar por aquela porta. Mas o receio a continha. Penetrar as memórias de Ghunter seria um falta de respeito gigantesca à sua privacidade…

Foi quando sentiu outra porta atrás de si. Era rudimentar e verde, com um grande brasão do naipe de Paus.

‘Pan.’ Pensou. ‘Está tentando entrar em contato com Alice.’

A início Lana não se preocupou muito - até a porta começar a se mover em sua direção.

Um arrepio de desespero subiu sua barriga. Não, não podia se meter entre duas mentes já interligadas e confusas. Corria o perigo de fundir a sua própria também.

Tinha de decidir rápido. Para onde fugiria?

A porta branca ainda lhe assustava.

‘Bem… Esta tecnicamente não é a mente de Ghunter, não corro o risco de me fundir com ele…’

Decidiu. Afastou as ervas daninhas e entrou em suas memórias.

Assim que ouviu a porta bater atrás de si, sentiu arrependimento.

‘Não deveria estar aqui.’ Repetia para si mesma, abraçando os próprios braços. ‘Não deveria estar aqui!’

Lana tinha de confessar que sempre teve curiosidade para conhecer a história de Ghunter. Suas origens, sua família. Por algum motivo que não conhecia mas respeitava, ele nunca tocara no assunto.

A Lagarta deduziu que, seja lá qual fosse o histórico do rapaz, não deveria ser dos melhores. Tão novo, tendo de se envolver com o crime…

Lana caminhou em uma parte muito densa e escura de uma mata. Pela pouca luz e calor do local, chegou à conclusão de que estava numa das partes mais profundas da Floresta.

Estas partes da Floresta - chamadas de Breus - tinham árvores tão entranhadas umas às outras que apenas os seres mais exóticos eram capazes de habitá-las.

E, claro, também aqueles que não queriam ser notados.

Os Breus eram conhecidos por serem os lugares mais perigosos do País das Maravilhas. Este título seria dado às terras desconhecidas, habitada por Dragões, se estas fizessem oficialmente parte do território.

‘O que demônios estou fazendo aqui?’ Pensou Lana, completamente arrepiada com a paisagem.

A Lagarta, desta vez, não precisou se preocupar em domar suas emoções. Não corria riscos de fundir sua mente com a de Anh, uma vez que aquelas memórias não eram dela.

Lana adentrou para uma gruta, escondida embaixo de raízes gigantes. Após descer vários metros no subsolo - na companhia do som de insistentes goteiras - avistou tochas de fogo azul.

As engrenagens foram se encaixando na mente de Lana. ‘Chama azul.’ Recordou-se de suas aulas com Martin. ‘Seja lá quem viva aqui… Não poderia pegar lenha. As árvores aqui são sagradas aos seres mágicos, seria mutilado se mexesse nelas… Chama azul… Se produz chama azul na combustão de hidrocarbonetos…

Hidrocarbonetos… Fósseis.’ Lana admirou-se. A pessoa que vivia ali era definitivamente muito inteligente. Usava fósseis provavelmente disponíveis nos fundos da gruta como comburente em suas tochas.

Continuando a caminhar, observou que a caverna era muito, muito maior do que parecia ser inicialmente. Suas grandes e diversificadas grutas abrigavam - não só uma pessoa, mas - uma grande população.

População esta, formada de feiticeiros marginalizados.

Das milhares de vozes que se ecoavam ali, duas particularmente exaltadas em uma gruta menor à parte lhe chamou a atenção.

Aproximou-se. Viu, escondido entre as estalagmites, um garotinho de 5 anos - cabelos negros e olhos violetas.

Segurou para não sorrir. ‘Aqui está o pestinha.’

Ajoelhou-se ao lado do pequeno Ghunter e prestou atenção nos dois adultos que discutiam.

“Deve estar brincando comigo! Mesmo depois de seu filho ter apanhado de capangas seus, vai continuar querendo que fiquemos aqui?! É esse tipo de vida que quer para Ghunter?!” Exclamou a mulher, irada.

Surpresa, Lana olhou para o rosto de Ghunter. Encontrou uma cicatriz em sua bochecha.

Ah, vamos, você sempre soube dos riscos quando se mudou para cá!” Retrucou o homem.

“Você tinha me dito que aqui era seguro! Que era… Civilizado!”

“E é! Tem noção de quantos grupos diferentes conseguimos abrigar sob um mesmo teto, em paz?”

Isso não é teto,” exclamou a mãe de Ghunter, apontando para cima. “e aquilo não é paz!”

Eles berravam, cada vez mais enfurecidos. A discussão continuou, afobada.

“Ele é o meu filho! Vai crescer e viver aqui, assim como eu cresci e vivi!” O pai de Ghunter exclamou, dando ali um ponto final.

Ou assim acreditava ter feito. Na manhã seguinte, as camas de sua mulher e de seu filho estavam vazias.

Desde então Ghunter e sua mãe, Erika, vagavam e davam seu jeito de sobreviver.

Quando Martin foi benevolente o suficiente para ceder-lhe um cargo de aprendiz, Erika deu-se por satisfeita e continuou seus negócios em outras regiões.

O cenário mudou. Lana assistia agora uma das poucas vezes que Ghunter e Erika se reviram. O rapaz parecia já ter 15 anos. Conversaram, trocaram informações sobre o que estava acontecendo ao redor do País e com as pessoas que conheciam.

“Como está sendo ter aulas com Martin, filho? Ele é muito severo?”

Ghunter sorriu. “Não, mãe. Ele é muito compreensivo, para falar a verdade. Bem diferente do meu pai…”

Erika inclinou a cabeça, triste por se lembrar do passado. “Estava pensando em visitá-lo algum dia desses.”

A mulher achava que o filho se esquivaria, negaria e tentaria impedi-la, mas tudo o que fez foi encarar o chão e responder: “É. Acho que ele merece algumas explicações.”

Erika cruzou os braços, receosa do que falaria em seguida. “Desculpe por ter te poupado deste convívio com ele, Ghunter.”

Ghunter esperou a infância inteira para ouvir isso. Sentiu o alívio preencher seu corpo. “... Você fez o que achava certo.”

‘E Martin é um excelente pai para mim.’ Pensou em completar. Só não o fez porque achava que soaria bobo.

Erika tentou engolir as lágrimas e trocou de assunto. “Vi aquela menina colhendo no jardim de Martin. É uma aprendiz também, não?”

Ghunter revirou os olhos. “Aham.”

A mãe riu ao ver sua reação. “Como está sendo ter uma irmã?”

“Um porre.” Respondeu. “Não posso fazer nada que eu quero sem ser delatado.”

“Bem-vindo ao clube.” Os dois riram.

“Ela é órfã?”

“Sei lá.” Respondeu Ghunter. “Não conversamos sobre isso. E que interesse repentino todo é esse na Lana?”

“Lana? Então esse é o nome dela?”

A Lagarta inclinou-se para frente. Tinha impressão que o assunto lhe dizia respeito.

Erika direcionou um olhar malicioso para Ghunter. Ele bufou e se levantou.

“Nada a ver, mãe. Ela é muito chata. Certinha demais.”

A mulher deu de ombros. “Ou nós que somos desvirtuados demais, mesmo.”

Ele ergueu a sobrancelha. “É o que ela sempre me diz.”

Erika riu ainda mais estridentemente. Simpatizara com a tal menina.

“Ora, vamos. Ela deve ter alguma qualidade. Se não fosse por ela, Martin nunca teria te notado, não é mesmo? Não foi ela que te chamou de ladrão e chamou todas as atenções para você naquele dia?”

Ghunter murmurou em concordância.

“Então, o que mais tem a me dizer sobre ela?”

Outras memórias de Ghunter foram aparecendo diante de Lana. O dia em que eles foram morar na mesma casa. O desprezo inicial. A implicância que se seguiu, as travessuras que aprontavam um para o outro - sempre se preocupando em esconder tudo de Martin.

Todas as vezes que Martin descobriu. A razão sempre era dada para Lana. A raiva que tinha disso.

O tempo passando. A convivência diária. O bom-humor dos melhores dias, a decepção dos piores. Os dois crescendo juntos, lidando com as diferenças, aprendendo tanto feitiçaria como a ser uma família.

O drama de quando Martin se foi. Um se apoiando no outro.

Até aí, Lana conseguia se lembrar das mesmas memórias. Achou engraçado revivê-las em outro ponto de vista.

Foi quando entrou em uma memória da qual não recordava. Tempos depois de Ghunter ter saído da vila, quando os dois já eram adultos e a biblioteca de Lana já estava fundada.

O Gato a assistia à distância; Lana se viu ajudando as Flores a enfeitar a vila para um festival.

Ghunter estava passando por ali no dia e não resistiu, tinha de assistir. Ver como ela estava se virando.

Ghunter sentiu admiração.

Lana surpreendeu-se ao descobrir que ele a via como um bom exemplo. Os pensamentos e sensações do rapaz continuavam saltando aos seus olhos: Ghunter a admirava por ser forte. Por ser justa. Por ser altruísta. Por zelar pelo bem da população dali. Por cuidar de tudo com tanto zelo. Por sua lealdade quase doentia pelas pessoas que amava, como Martin e Carl.

Lana sentiu-se lisonjeada por ser vista dessa forma.

Foi quando outro tipo de emoção invadiu o corpo de Ghunter. Uma sensação de calor e paz ao avistar a imagem da Lagarta mais uma vez. Alguma coisa semelhante a borboletas no estômago.

A feiticeira reconheceu a sensação. ‘Ah, Ghunter… Não creio…’

Foi comovida. Lana havia se perdido tanto com os últimos acontecimentos que esquecera de quem era. Sua essência.

Lembrou-se de como Lewis a descrevera em sua despedida ao País das Maravilhas.

Uma pessoa extremamente sábia. Que tem todas as respostas. Que ensinou a Alice o preço do tamanho, que ser pequeno é diferente de não ser grande e que ser grande é diferente de não ser pequeno.

Discreta, silenciosa. Se esconde na Floresta e dificilmente é encontrada. Parece ter várias mãozinhas, que que realizam tudo com perfeição e ao mesmo tempo.

Aquela que espera. Aguarda o momento e o lugar certo para tecer seu casulo. Tem paciência. Muita paciência. Só sai de lá quando se sente segura, e com asas.

Alice nunca teria seguido em frente sem a Lagarta.

E assim, recordou-se:

Marta, assim como as outras Flores da vila, nunca teriam seguido em frente sem a Lagarta.

Martin nunca teria seguido em frente sem a Lagarta.

Erika nunca teria seguido em frente sem a Lagarta.

Ghunter nunca teria seguido em frente sem a Lagarta.

Luce e Alan nunca teriam seguido em frente sem a Lagarta.

Carl nunca teria seguido em frente sem a Lagarta.

Muitos foram aqueles que haviam precisado da Lagarta para seguir em frente. Agora era Lana quem precisava de sua ajuda.

Esclarecida e preparada para o que lhe aguardava, Lana viu a porta branca aparecer à sua direita.

Agarrou a maçaneta, determinada.

Estivera em seu casulo por tempo demais.


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