O Anjo da Liberdade escrita por AnniePotter


Capítulo 3
Capítulo 3




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— Bom dia - foi a primeira coisa que ouvi quando desci as escadas. - Dormiu bem, Julie?
  Era a voz de Laysa, de costas para mim enquanto moldava uma massa de pão em suas mãos. O cheiro de pão já assado preenchia minhas narinas, vindo de uma cesta na mesa, diante da qual Elisa, Eliah, Bryan e Zacarias estavam sentados, comendo.
— Sim - murmurei, passando a mão pelo cabelo e parando a mesma na nuca. Não foi a melhor noite que tive, mas pelo menos a cama era confortável: essa era a verdade que eu não conseguia dizer.
— Sente aí, garota. - Zacarias me convidou, indicando uma cadeira entre Eliah e Elisa.
Sentei-me no lugar que ele indicava e baixei a cabeça, observando Eliah sob através de meus cílios. Ele estava sério, olhando para a janela enquanto devorava o pão com mordidas vorazes.
— É melhor você comer logo, porque senão esse pão vai acabar e vai demorar a sair outra fornada - comentou Laysa, que já estava sentada entre Zacarias e Bryan sem que eu tivesse percebido. - Vai por mim. - E piscou.
Ergui a cabeça, olhando para ela, e dei melhor sorriso que conseguia. Meus pais haviam me ensinado que essa era a melhor forma de conquistar a confiança de uma pessoa, e pelo jeito funcionara. Ela deu um leve sorriso e pegou um pão para si. Também peguei um e comecei a comer.
Ah, meus pais...
Minha mãe era uma professora magnífica, que saía atrás de alunos que moravam em lugares mais distantes de centros escolares. Ela era gentil, bonita e extremamente caridosa, além de conseguir manter a estabilidade de nossa família junto com meu pai, o que era bem difícil naquela região onde morávamos.
Meu pai era muito carinhoso. Ele sempre ia atrás das coisas para nós, sempre sonhando alto e pensando no melhor para nós. Seu sonho era que morássemos dentro dos limites da Muralha Rose e tivéssemos uma mansão para abrigar todos os nossos familiares. Sua profissão era de carpinteiro; vendia produtos nas feiras da cidade e era considerado o melhor por todos os clientes. Suas obras eram muito bem feitas e os principais consumidores eram os nobres que vinham de fora. Ele conseguia muito dinheiro com isso, mais do que a maioria dos feirantes.
Mas tudo foi-se embora em um piscar de olhos, quando seu corpo foi partido ao meio pelos dentes de um titã.
Um barulho de cadeira se arrastando interrompeu minhas divagações. Era Elisa, levantando-se cabisbaixa, depois de deixar um pão comido pela metade sobre o prato. Ela se virou e subiu as escadas, com um ar sombrio.
Pelo canto do olho, vi Eliah fechar os olhos e balançar a cabeça num movimento quase imperceptível.
— Eu vou atrás dela - falei depois de terminar de comer, logo me erguendo e subindo as escadas com cautela.
Eu ainda não havia ido ao segundo andar. Ele era composto por um corredor com uma fileira de portas de cada lado, mas no fim havia uma única porta. E ela estava entreaberta.
Avancei pelo corredor, olhando para as portas fechadas. O único barulho que eu escutava eram gemidos, e não vinham de nenhuma daquelas portas.
Os gemidos claramente pertenciam a Elisa, que sem dúvida estava na última sala.
Empurrei a porta para que ela se abrisse mais e corri os olhos pelo quarto. Com certeza era uma sala de costura, repleta de tecidos pendurados em ganchos nas paredes e uma máquina de costura em um canto.
E lá estava ela, no fundo da sala, na frente da janela. Sua mão esquerda estava apoiada no parapeito e a outra segurava uma tesoura aberta.
Ela estava se cortando, e o sangue escorria pelo seu braço e pingava no chão, manchando o carpete bege de vermelho.
— Elisa! - exclamei, chocada.
Corri até ela e segurei seu braço esquerdo, puxando a tesoura para longe do outro braço. Ela grunhiu, frustrada, e tentou me empurrar com o cotovelo do braço direito, então puxei o esquerdo para junto do meu peito e agarrei fortemente o punho que estava prestes a me socar.
— Elisa, acalme-se.
A garota respirava com força, soltando grunhidos a cada inspiração.
Conforme os minutos passavam, continuávamos naquela mesma posição, até que ela relaxou os ombros e deixou a tesoura cair. Sua respiração estava voltando ao normal.
— Desculpa... - murmurou.
Soltei os braços dela e ela caiu sentada no chão, com olhos vidrados e cheios de lágrimas. Agachei-me em sua frente e rasguei um pedaço de meu vestido, enrolando-o no ferimento.
Instantaneamente, o tecido ficou vermelho. E então eu percebi as cicatrizes em seus braços, que provavelmente eram ocultados pelas mangas longas de sua blusa, que agora estavam arregaçadas.
— Está tudo bem - tranquilizei-a, passando um braço sob seus ombros e ajudando-a a se levantar. - Vamos descer para que Laysa possa tratar disso.
Ela sequer mexeu os pés quando dei um passo para frente. Olhei para ela, confusa, e percebi que ela estava com medo nos olhos.
— O que foi?
— Só Eliah e Bryan sabem disso. Se ela souber... - cerrou os dentes. - Ela vai me castigar.
— Oi? Como assim?
Levei-a até o banquinho que ficava na frente da máquina de costura e ela se sentou, olhando fixamente para o carpete.
— Ela quer que sejamos uma família perfeita - começou ela, cobrindo os braços novamente com as mangas da blusa. - Se fizermos algo de errado, que esteja fora de seus padrões, ela nos castiga enquanto Zacarias está ausente. Podemos apanhar de cinto, ser queimados com ferro quente ou ficar sem jantar. As punições variam. - Concluiu, com a dor transparecendo na voz.
Coloquei as duas mãos na testa, tentando associar tudo aquilo com o rosto gentil da mulher. Realmente, parecia impossível que ela fizesse tais coisas.
Elisa abriu um sorriso amargo.
— Quer provas?
Então ela levantou a saia até a cintura, exibindo uma queimadura que vinha do joelho até o meio da coxa.
Fiquei boquiaberta.
— Ela...
— Ela fez isso. Sim. - Completou, abaixando a saia novamente. - Então agora você sabe sobre a outra face daquela mulher. Então é melhor não dizer nada sobre isso. Por favor.
Concordei com um movimento da cabeça, conferindo que as mangas verde-escuras da blusa cobriam o lugar em que amarrara o pedaço de meu vestido.
— Então... vamos descer? - convidei-a, um pouco hesitante.
Ela ficou calada por alguns segundos antes de responder:
— Claro.
Ela se levantou e saiu da sala. Eu a segui por todo o percurso, até chegarmos à mesa. Sentamo-nos e, assim que fiz isso, percebi o olhar de censura e desconfiança que Laysa lançara para Elisa.
— Estou indo para o trabalho - avisou Zacarias, erguendo-se e dando um beijo na testa de cada um. - Cuidem-se.
Quando chegou a mim, fez um breve carinho em meus cabelos e foi embora, deixando para trás uma atmosfera de tensão silenciosa.
— E então? - indagou Laysa, recolhendo os pratos da mesa. - O que estavam fazendo lá em cima?
— Estávamos apenas observando a paisagem da cidade - respondi, mantendo a voz calma. - Elisa tinha subido para respirar o ar fresco da manhã. - Olhei para a garota, dando um sorriso suave que a mesma retribuiu.
— Ah, sim... - comentou Laysa, caminhando até a pia com os pratos na mão. - Isso é bom.
Então me lembrei: tínhamos deixado a porcaria da poça de sangue no carpete da sala de costura.
— Laysa-sama? - chamei.
— Sim?
— Acabei de descobrir que você tem uma sala de costura. Posso usá-la?
— Ora... gosta de costurar? - ela perguntou, com um sorriso no rosto. - Claro que pode, querida. Mas cuidado com os instrumentos cortantes.
Quase vomitei com a doçura das palavras dela depois de saber que aquilo era apenas uma máscara.
— Posso acompanhar a Julie-chan? - indagou Elisa rapidamente.
— Pode sim. Por que não?
Saímos dali o mais rápido possível, deixando para trás os olhares perfurantes de Bryan e Eliah.
— Como vamos limpar isso? - disse Elisa, olhando para o próprio sangue, enojada. Surpreendi-me com a facilidade que ela tinha de mudar de comportamento.
Peguei um tecido vermelho que estava pendurado num dos ganchos entre um amarelo e um branco.
— Tem água por aqui? - falei, dobrando o tecido.
Ela apontou para uma porta que eu não havia percebido antes, que era camuflada através do mesmo papel de parede que cobria toda a sala.
Enquanto Elisa pegava outro tecido, abri a porta e entrei num pequeno banheiro. Umedeci o pano vermelho e me direcionei para a poça de sangue, ajoelhando-me na frente dela e esfregando-a com força.
Elisa logo se juntou a mim e limpamos toda a marca vermelha que ficara no carpete, deixando o local tão limpo quanto o resto da sala.
— E agora? - disse eu, me levantando e passando as costas da mão na testa. - Temos mesmo que costurar para ela não suspeitar?
— Não se preocupe - respondeu Elisa, com um sorriso. - Ela tem tanta roupa costurada aqui que nem vai perceber que não fizemos nada.
Fomos para a janela no fundo da sala e nos encostamos ao lado dela. O silêncio reinou na sala por alguns minutos, antes de ela falar:
— Obrigada. E me desculpe. - Riu, um pouco nervosa. - Tenho esses surtos de vez em quanto. Você não sabe o quanto Eliah e Bryan sofreram para me encobrir. Eu devo muito a eles.
— Vocês já pensaram em sair daqui?
— Hã?
— Sei lá...
Ficamos caladas por alguns instantes, nos quais Elisa me encarou com um olhar confuso e insistente.
— Que tal você, e o Eliah nos alistarmos para o treinamento das tropas? Já que o Bryan é mais novo, ele pode ficar no alojamento e podemos trabalhar para mantê-lo lá... Pelo menos nós temos idade para entrar.
Ela pensou por alguns instantes.
— Não é uma má ideia. Mas temos que falar com Zacarias. Ele com certeza vai convencer Laysa a nos deixar ir.
— Tudo bem. Faremos isso.
Trocamos breves sorrisos e saímos da sala, com aquela chama de esperança ardendo secretamente dentro de nós.


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