Jorde Amado escrita por Tsuki_no_Hika


Capítulo 1
O Pós-morte De Quincas Berro Dágua




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“Revolucionar” a vida após 50 anos, depois de formar uma família bem estruturada e uma carreira tão exemplar na Mesa de Rendas Estadual, não é nada fácil. Pelo menos é o que dizer por ai.  O choque dos parentes e chefes foi imenso, mas não me importava com a opinião alheia. A propósito essa era a última coisa que queria pensar. Queria ser feliz!

                Eu tinha a vida “perfeita”, mas ninguém nunca me perguntou se era isso que me deixava feliz. Podia ser “perfeita” pra Leonardo (aquele bestalhão) ou pra Vanda, pro Eduardo ou pra Marocas (mais conhecido como saco de peitos), mas nunca, nunca para mim! E é por tal motivo que, mesmo após eu morte, nenhum deles havia conseguido entender o motivo de minha drástica mudança. E por quê? Por que eu fizera isso? Dê-me um momento para pensar, ...sabe, cérebro de morto não processa tão facilmente quanto o cérebro de vocês, seres ainda vivos.

                Pelo que me recordo, minha morte ocorreu a uns quatro ou cinco anos atrás, porém a morte de minha parte “comportada” aconteceu bem antes. Ocorreu-me um dia que ao invés de ir para casa passei no cais para admirar o mar e renovar a minha vontade de navegar. Como sabem, minha família era tipicamente de marinheiros e, sendo genético ou não, essa característica veio parar em minhas veias e artérias. Já fazia algumas horas que lá estava quando subitamente uma lágrima rolou em meu rosto, e foi ai que tive uma idéia dita infame: “Por que continuo a viver esta vida tediosa e não me mato neste mar, e lá pra sempre fico?” Não... Morrer era duro demais, realmente, as coisas em casa não andavam muito boas, mas não tão ruins a ponto de me dar motivação suficiente para me matar. Foi então que tive uma segunda ideia, dessa vez não tão infame: “Se é assim, por que não saio de casa e vivo da maneira que bem entender?”

                Foi ai que fiz algo que nuca antes tinha feito. Corri ladeira a cima, passando rápido pelo mercado, pela feira de Água dos Meninos, pelos marginais, prostitutas, trabalhadores de bem, pelas crianças felizes (ou nem tanto) até chegar a minha casa. Abri a porta com tal força que fiz com que Otacília se assustasse. É óbvio que aquela mulher era maravilhosa, bela, esbelta, boazinha, compreensiva... tá, tenho que parar com essa mania de morto de ser irônico. Ao chegar em casa, minha “querida” mulher quase me acertou um vaso de flores na cabeça. Menos um vaso de porcelana na casa...

                - Onde você estava homem??  - disse ela... melhor, berrou ela.

                - Piishh, fale baixo se não irá acordar Vanda e aquele “bestalhão” – respondi eu tentando fazer com que ela não gritasse tanto.

                - Estava andando aonde que só chegou agora??? – a cara dela era de quem iria me matar se não falasse logo o que estivera fazendo das 20:00 (horário de término do meu trabalho) até às 00:00 (horário que cheguei em casa naquele dia)

                - Eu... – ia falando entrecortado, uma vez que tinha certeza que com essa fala iria assinar minha ida para o inferno - estava olhando... o mar e.... – não consegui terminar a frase.

                - O QUÊ??? Estava olhando aquela merda de novo??? Já lhe disse, Joaquim Soares da Cunha! Se continuar com essa mania de olhar o mar eu te deixou!! – e foi por isso que não consegui terminar a frase.

                Agora me deixem explicar esse barraco descrito aqui acima. Otacília era uma mulher muito autoritária, egoísta e cabeça-dura. Se eu chegasse em casa 20 minutos após o normal, ela não fazia o almoço durante um mês..., se eu ousasse a pisar em um bar e esse fato fosse parar em seus ouvidos, era greve de sexo na certa (não que ela fosse muito ativa). E por ai afora. Porém esse assunto do mar era inexplicável. Sempre odiou o mar e, desde que me casara com ela, não pude nem mira-lo, que dirá pisar na água e ainda muito menos navegar nele, o que era meu sonho desde criança.

                Mas esses fatos talvez pudessem ser explicados. E talvez por isso eu ainda tolerasse tais atos. Quem a conhecia bem conseguia enxergar em seus olhos uma certa melancolia, uma tristeza. Provavelmente quando era pequena passara por diversas situações que a deixaram com trauma de ser deixada de lado, abandonada. Tinha traumas, aquela mulher... e eu já não estava nem aí! Se estava com algum problema, que fosse para São Paulo e procurasse ajuda de psicólogos (ou psiquiatras)!

                Não aguentava mais aquilo! Meses sem um carinho que fosse, trabalhava direto para que? Receber um parabéns... e ainda tinha gente que dizia querer meu trabalho... pois que fique! O copo foi enchendo e transbordou... essa tinha sido a gota d´água.  

                - Me deixa? Me deixa???? Eu é que te deixo, Jararaca!! – essa foi a primeira e última vez que gritei com aquela mulher.

                - ........................... – ela não me respondeu, só ficou a me olhar com olhos incrédulos.

                O silêncio predominava naquela sala,... e eu sabia que, se continuasse ali, seria hoje mesmo que iria morrer, querendo ou não. Saí correndo.

                - VAGABUNDOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!! JOAQUIM SOARES DA CUNHA!!! EU AINDA TE MAAATO!!!!!! – foi o que ouvi após alguns segundos de minha saída. E acho que não era só Otacília que berrava,...é, acho que a Jararaca segunda (mais conhecida como minha filha Vanda) também estava na sala quando falei que deixava a casa.

                Não, aquela mulher nunca me traiu, mas a vida com ela era insuportável. Faço das palavras do santeiro as minhas: “Santa mulher? Não acredito.”.               Amar eu até a amava, a minha filha também (mas não, não meu genro), mas não era mais possível viver ali.

 Depois de umas e outras me tornei um homem marginalizado, boêmio, bêbado, famoso entre os malandros e as “profissionais na área do prazer”, e conto pra vocês agora a melhor parte: Era isso que me fazia feliz! Já tinha morrido aquela parte de mim... e quando foi que morri de verdade? Não sei.... só sei que só me senti inteiramente livre quando fui ao mar, quando aquele corpo mortal fora parar naquela profundeza azul.

Eu havia avisado “Me enterro como entender, na hora que resolver.” E foi o que fiz.


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