A Melhor Porcaria escrita por Lola Baudelaire


Capítulo 1
Observando




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Nós estávamos lá, observando, quando ela, com as mãos tremendo, fez login na página do Enem. Seu desgosto ficou evidente, mesmo que a centenas de anos luz. Torcíamos por ela, apesar de que em algumas vezes a vontade de esgana-la prevalecia.

Esse é o problema — como o mestre dos mestres costuma dizer — em gastar horas e horas, plantados na frente da tela observando a raça humana. Empatia. Não demorará muito até que nós, seres evoluídos de uma galáxia distante, começarmos a agir, pensar e viver como eles.

Ela não sabe que seus pensamentos são expostos na legenda abaixo da sua imagem. Também não sabe que sabemos que ela odeia o curso de exatas. Geologia? Ficamos surpresos ao saber que os terráqueos precisam de ensino superior para acabar com o planeta. E o engraçado é que eles se acham tão espertos que obrigam boa parte da sua própria espécie a ficar trancada tentando pensar. Mas isso não causa... como os terráqueos chamam? Claustrofobia? É por esse e outros motivos que muitos de nós preferimos assistir a vida no Japão. Viram quão rápido eles reconstruíram tudo após o episódio do Tsunami?

Porém, por mais que pareça absurdo, há algo de encantador no sofrimento da pobre terráquea. É sincero. Nossos olhos contemplam a beleza no meio de todo o fingimento que a circundam. Entendemos que ela prefere direito e que corre com todas as forças do curso de pedagogia. Somos testemunhas oculares de que ela seria um fracasso como professora. Sua vulnerabilidade hipnotiza. Claro que há quem prefira observar os que ficam no Himalaia, mas a vida dela é uma miséria tão grande que chega a ser interessante. Todos querem saber quando o próximo excremento irá acontecer. Não tem pais e não consegue se decidir se prefere fêmeas ou machos.

Sua nota no Enem era a oportunidade de se libertar, botar um sorriso na cara de deixar de reclamar. O Sisu era a chance tão valiosa quanto Naquadah. Ela quer morrer, só é novidade para os de sua espécie. Mas precisa limpar todo o seu histórico do seu computador, e limpar os registros do celular. A garota nem consegue se decidir se vai usar um nó de forca ou tomar veneno.

Nós vemos que ela também cogita a possibilidade de se jogar na frente do trem. Humanos são tão indecisos. E ainda tem o pós-morte. O seu medo dos necrófilos é real. Até nós ficamos assustados com isso. Nós compartilhamos a mesma dúvida com os terráqueos, não sabemos para onde a mente vai depois que se morre, os pensamentos são cortados. Ela não tem nem jeito para cortar os pulsos o suficiente para morrer. Se ao menos houvesse uma faca que preste na sua cozinha.

É difícil, isso não é mistério para ninguém. Ela sabe, nós da galáxia sabemos, o universo inteiro é capaz de perceber que viver ainda é a melhor porcaria.

E ano que vem tem tortura Enem  mais uma vez. É só tomar vergonha na cara e estudar.


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Notas finais do capítulo

ano que vem tem de novo

Naquadah - o mineral do qual o Stargate é construído. Já assistiram Stargate? James Spader tá tão lindo lá. Ele tinha cabelo.