Sanguinem Camellia escrita por Mia Leopoldo


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

A música que inspirou essa história se chama "O Silêncio das Estrelas" de Lenine.
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/671931/chapter/1

Solidão,

O silêncio das estrelas,

A ilusão,

O casarão continua o mesmo da minha longínqua infância, os grandes e confusos corredores e os imponentes quadros cobrindo as paredes. Andando por aqui vislumbro memórias tão antigas; eu e Tia Margareth tocando piano perto da janela, eu e prima Elizabeth bordando nas poltronas de veludo e a doce Ângela nos servindo chá gelado.

Mas agora está tudo vazio. Os quadros, os móveis, o assoalho, as paredes... Tudo destruído pelo tempo e coberto por pó e musgo. Nem parece ter a mesma beleza de antes.

Para ser sincera, nem ao menos sei o que faço aqui. Já se faz 322 anos que morri. Eu não deveria mais voltar aqui...

Olhei para o que um dia fora o teto, mas agora era apenas restos de madeiras se intercalando, e o grande céu negro lá em cima.

As estrelas não me disseram nada sobre isso em minha nova vida. Por que elas ficaram caladas? O que me escondem? O que eu não posso saber?

Isso não me importa mais...

Só quero ir para meu quarto. Sei que ele fica virando dois corredores à esquerda, depois da grande porta de mogno talhada com perfeição.

Vi a porta ali longe e corri até ela, quase caindo nas madeiras soltas no meio do caminho, o vestido longo e pesado não ajuda nada em correr. Mas pelo menos me protege do frio da noite. Empurrei a pesada porta de mogno, o tempo parecia não ter a alcançado, continuava a mesminha de antes, até o mesmo o seu ruído ao ser aberta.

Através dela o meu quarto era o mesmo. O assoalho perfeitamente liso e brilhante, o papel de parede de cor azul florido cobrindo as paredes, os edredons pesados e macios cobrindo a cama dossel e as mesmas camélias brilhando de tão vivas em seu tom vermelho. Faz mais de 300 anos que as coloquei aqui, e mesmo assim parece que fazem apenas três minutos.

Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos

Como um deus e amanheço mortal

Eu me lembro de quase tudo, Ele me levou para passear no jardim e antes da hora do jantar me trouxe de volta para casa. Ele parecia triste e exausto, me beijou e foi embora. Eu jantei com minha mãe, minha tia e minha prima e fui me arrumar para deitar e então... Tudo era escuridão. A mais profunda escuridão.

O meu dia tinha sido perfeito, com os seus beijos e suas palavras, eu sentia que podia tudo. Que todas as regras, leis e autoridades não valiam nada diante daquele amor. Eu tinha a mais pura certeza de que Ele era tudo, tudo o que eu precisava. Mas naquela noite... Naquela noite algo aconteceu. Eu não me lembro, mas aconteceu.

E isso me matou.

E assim, repetindo os mesmo erros,

Dói em mim

Ver que toda essa procura não tem fim

E o que é que eu procuro afinal?

Espere! Eu tinha um diário, eu escrevia sempre antes de me trocar nele! E se meu quarto continua igual ele deve continuar no mesmo local de sempre!

Me levantei da beirada da cama e andei até a estante de livros, todos os meus antigos romances estavam ali. Mas nem sinal do diário. Procurei na escrivaninha, nos criados-mudos e até mesmo dentro do guarda-roupa, mas nada. Onde será que eu devo ter colocado?

Comecei a andar pelo quarto, tinha algum lugar que eu não conseguia me lembrar. Me aproximei da janela que antigamente dava vista para o grande jardim e que hoje era apenas um matagal e tropecei em algo. Uma tabuinha estava meio levantada, me ajoelhei e a puxei para cima. Ali havia um pequeno buraco no chão, enfiei uma das mãos e tateei até a encontrar um pequeno livro. O puxei e olhei a capa.

Era mesmo o meu antigo diário. Branco com camélias pintadas na capa. Camélias... As primeiras flores que ele me deu na minha primeira existência... Tão belas.

Levantei-me para me sentar na beirada da cama, mas assim que me virei vi uma menina na minha frente. Branca como um fantasma e com longos cabelos pretos cacheados. Parecia um anjinho com aquele vestido rosa repleto de babados, mas seus olhos vermelhos não enganavam ninguém... Um espírito torturador.

Porém, de alguma forma eu reconheci aquela garota... E demorou apenas alguns segundos para me lembrar de onde a conhecia.

Apresento-lhes Elizabeth, minha amada prima.

Um sinal

Uma porta pro infinito

O irreal

O que não pode ser dito

Afinal

- Quer brincar comigo? – Elizabeth me perguntou, e sua voz me doeu às entranhas, como se fossem facas enfiadas em minha carne.

- Desculpe, mas não posso brincar agora. – Respondi tentando ser o mais gentil que minha personalidade permite.

Virei para a janela puxando a barra do vestido que havia se prendido no assoalho e tentando desesperadamente ignorar aquele ser em minhas costas; passei as pontas dos dedos pela capa do diário, eu nem havia o terminado... Minha vida terminou antes do diário, que pequena ironia!

Estava prestes a abrir o diário na última página marcada quando uma mão gelada puxou meu braço e todo o meu corpo congelou.

- Vêm brincar comigo! – Elizabeth mandou dessa vez e sua voz saiu ainda mais cortante e paralisante que antes. Eu podia ouvir meu coração bater dentro do peito.

- Não posso. – Respondi com a fina coragem que arranquei do fundo de meu corpo. Agora eu sentia meu sangue correr em minhas veias e as lágrimas ofuscando a visão, afinal, por que eu estava chorando? Ah sim, medo. Muito medo.

- Você vai brincar! – Elizabeth gritou e dessa vez sua voz não era de uma criança e sim a voz de um monstro, alta, gelada e cortante. Vários cortes apareceram em minha pele ao som de seu grito.

Acordada do transe tentei correr das mãos de Elizabeth, mas com meu grande talento para andar escorreguei na barra do vestido e cai pelo chão, o diário voou de minhas mãos e caiu a um metro de meu rosto. E ele abriu bem na página marcada.

30 de Março de 1693

A data foi a única coisa que consegui ver, a dor veio logo em seguida.

Uma dor fina, que entra rasgando a carne e depois a queima sem piedade, um choque no corpo e um grito. O meu grito. O sangue fresco e vermelho escorrendo por minhas costelas e o calor da ferida diminuindo até se tornar gelado, o corpo pesando toneladas e por fim a escuridão.

Eu morri.

~*~

Acordei caindo da cama e gritando, eu ainda podia sentir a dor percorrendo meu corpo e fiquei ali, no piso até ela passar. Sentei e olhei ao meu redor, as paredes cinza sem enfeites e o piso gelado e escuro, é, meu quarto atual.

Olhei para minhas roupas e vi minha camisola prateada grudada em meu corpo, eu estava suando bicas, e meu corpo tremia de leve.

Estava exausta. Parecia que faz anos que não durmo.

Mas ao mesmo tempo o sono não vem.

Eu preciso de respostas! Preciso saber o que aconteceu e o que vai acontecer! Sinto que vou enlouquecer se não descobrir!

Eu preciso Dele.

Ser um homem em busca de mais

De mais...

Afinal

Como estrelas que brilham em paz

Em paz...

~*~

Longe dali um garoto caminhava por um cemitério vazio e abandonado, andava sem medo e com certeza de onde iria parar. Passou por túmulos antigos e quebrados, destruídos pelo tempo até alcançar o lugar que procurava.

O único túmulo limpo e bem cuidado. Parecia até ser uma peça nova, embora estivesse ali a mais de 300 anos. A foto da moça no túmulo sorria para ele com seu cabelo castanho longo e cacheado jogado sobre os ombros e os olhos afiados e curiosos mantendo a expressão desafiante de sempre; e ele pensou “Ela nunca muda” e sorriu.

Ali, na frente da foto dela ele depositou um buquê de camélias. Suas flores preferidas.

- Desculpe por não ter vindo antes, tinha muitos lugares para visitar hoje – suspirou – Quero que você saiba que meu amor nunca acaba, você sempre será minha e eu sempre serei seu.

E soltando mais um suspiro ele deu as costas ao túmulo e foi andando até a saída do cemitério. Lágrimas caíam dos seus olhos, por que ele sempre chorava?

Já longe do cemitério e do túmulo ele se sentou ao pé de uma árvore e chorou, chorou as mesmas lágrimas que derramava há séculos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sanguinem Camellia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.