Destinos escrita por lemingau


Capítulo 7
Capítulo 07. Comme D'habitude




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Paris, França. 1937.

 

            Camus passara a noite ao lado de Milo, atento a qualquer mudança de quadro que o amigo apresentasse.

            É verdade que o grego insistira para que não se preocupasse e fosse para casa, julgando capaz de cuidar-se por si próprio, afinal, estava recuperando-se gradativamente. Mas Camus negara veementemente qualquer possibilidade de deixá-lo a sós num momento em que sua saúde corria perigo.

            Enquanto o estudante de farmácia dormia pesadamente, o francês aproveitou a oportunidade para pedir ao locatário do apartamento que lhe emprestasse o telefone para informar o acidente ao laboratório onde Milo trabalhava. Talvez ele demorasse a voltar a exercer suas tarefas rotineiras por uma ou mais semanas, levando em conta que eram desconhecidas as substâncias que entraram em contato com seu sangue.

            Camus ficou satisfeito ao constatar que o chefe de Milo era bastante compreensivo, mas, após resolvida a questão da agenda do amigo, o ruivo passou a encontrar diversos outros problemas para ocupar-se durante sua vigília.

            A primeira ideia que lhe veio à cabeça foi arrumar o apartamento. Não apenas por o lugar encontrar-se mais bagunçado que o aceitável, devido à rotina frenética do estudante, mas também porque tinha curiosidade em saber que tipo de quinquilharias Milo reunia em sua casa.

            Pilhas de papéis de espalhavam pelo quarto, disputando espaço com roupas sujas e limpas e outras tantas coisas que Camus sequer fazia ideia do que eram. Pôs-se a ordenar e colocar tudo em seus devidos lugares, encontrando no meio da bagunça desde alguns livros em grego, até um jogo de frascos com algumas substâncias estranhas a ele.

            Para a sorte do francês, Milo tinha poucos pertences, a dificuldade em arrumá-los devia-se apenas à falta de espaço. Aliás, chamar aquele local de apartamento era, sem dúvidas, uma hipérbole. A habitação do amigo era pequena, comparada à sua. Possuía somente um banheiro e um cômodo, no qual se situava apenas uma cama, uma mesinha de cabeceira, um baú, uma mesa com duas cadeiras, usada tanto para as refeições quanto para os estudos, e um fogão a gás.

            Ainda estava pondo tudo em ordem, quando percebeu uma mudança repentina na expressão de Milo, que agora franzia o cenho, banhado em suor. Por mais que ainda estivesse dormindo, uma agitação sem igual tomava conta de seu corpo, que se remexia inquieto na cama.

            Aproximando-se do enfermo para verificar melhor o que se passava, Camus constatou que sua febre aumentara drasticamente desde a última vez em que fora conferida. Sacou o termômetro que trouxe consigo e mediu a temperatura do amigo, constatando cerca de 40º C.

            Assustado, Camus tentou raciocinar o que fazer num momento desses. Certamente, àquela temperatura, corpo humano nenhum aguentaria por muito tempo. Amaldiçoou sua falta de preparo para situações de emergência e tentou buscar uma solução lógica, como o brilhante estudante de física que era.

            Sem tardar muito, pôs em prática algumas ideias apressadas em que pensou. Ora, se o calor nada mais é que o grau de agitação das moléculas, o frio, como a ausência de agitação molecular, não poderia ser obtido rapidamente, sem nenhum provimento de gelo e com o corpo de Milo naquele estado. Teria de reduzir sua temperatura corporal até um nível aceitável, equilibrando o calor de seu corpo com o ambiente.

            Primeiramente tratou de retirar o lençol que o envolvia. Sabia que Milo sentiria muito mais frio desta maneira, tanto que notou a expressão de desconforto no rosto do amigo, assim que o descobriu.

Logo percebeu que o grego transpirava exacerbadamente, tanto que o tecido de sua camisa estava completamente úmido. Usava ainda as roupas que trajava no momento do acidente. Aquelas mangas longas seriam um problema. “Perdoe-me, Milo” Disse Camus consigo mesmo “Mas estamos entre homens e na atual situação não temos tempo para falsos pudores”. Dito isso, desabotoou a camisa molhada, despindo-a com cuidado para não acordar o acamado. Quando o processo terminou, pôde reparar melhor no corpo do amigo e, percebendo a estranheza da atitude, desviou o olhar, ruborizado. Mesmo sabendo que, desacordado, não havia como Milo vê-lo.

Censurou o adoentado mentalmente ao sentir o cheiro de suor vindo da camisa. “Há quanto tempo ele não lava essa porcaria?”. Colocou a peça em meio às outras roupas sujas que encontrara e pôs-se a procurar por alguns panos limpos dentre os pertences.

Assim que encontrou o que buscava, Camus encheu uma bacia com água e iniciou diversas compressas na testa, pescoço e tórax do amigo. Notou que sempre que os panos entravam em contato com a pele de Milo, seu corpo era tomado por calafrios. O toque daqueles panos gélidos era certamente uma tortura para o amigo, porém, tanto sofrimento se fazia necessário para a sua sobrevivência.

Já se passava das três da manhã e Camus não havia descansado um minuto sequer. Verificando que a temperatura do enfermo reduzira pouco mais que um grau, o francês recostou sua cabeça na cama de Milo, pensando finalmente encontrar um momento de tranquilidade.

Mal havia fechado os olhos quando sentiu um forte puxão em seus cabelos. Levantou-se em um pulo e constatou que havia uma quantidade considerável de fios ruivos na mão do enfermo.

— Ficou maluco?! – Gritou Camus, sobressaltado. No entanto, assim que o susto passou, o francês percebeu que havia algo de errado no comportamento de Milo.

O loiro contorcia-se na cama, apertando com força a colcha e murmurando palavras em grego que não faziam o menor sentido para Camus. Apesar de permanecer de olhos fechados, seu cenho estava franzido e sua respiração descompassada e ofegante.

Camus aproximou-se de Milo, segurando firmemente sua mão. Tentou acalmá-lo afagando seus cabelos e dizendo repetidamente: “Está tudo bem. Fale em francês”. É verdade que essa última frase servia mais de consolo para Camus que para o doente, mas, assim ele pensou, como poderia ajudá-lo sem saber de fato o que se passava?

Depois de muito insistir, Milo abrira os olhos e sua respiração voltara ao normal. Camus pensou que ele finalmente compreendera seu pedido, no entanto, o grego virou abruptamente sua atenção para Camus e apertou com força a mão que o prendia.

— M-me prometa que você não vai para lá – Disse Milo, com os olhos vidrados.

— Para onde, Milo? – Perguntou Camus, confuso. – Eu não vou a lugar nenhum até que você melhore.

— Foi ele quem matou o Saga. Ele vai matar o seu irmão, também – Dizia vidrado, como se não tivesse escutado as palavras de Camus. – Por favor. Todos estão morrendo e eu não quero que você morra também! Nós não vamos morrer agora, vão todos morrer na guerra...

— Milo, do que está falando? Ninguém aqui vai morrer, pare com isso! – O francês tentava em vão desvencilhar seu braço do aperto de Milo.

— Só me prometa que você não irá procurá-lo de novo, por favor! Aquele caderno... Aquele caderno funciona mesmo, mas ele dá um jeito de te prejudicar. Foi o que aconteceu com os gêmeos e vai acontecer com você também!

“Desidratou tanto que agora está delirando” Pensou Camus, que tentava, sem sucesso, fazer com que Milo voltasse à consciência.

— Milo, escute – Dizia com firmeza. – Não há nenhuma guerra. Nem caderno. Você está no ano de 1937, na França. Estamos em seu apartamento no Petit-Montrouge! Você tem vinte e quatro anos, estuda farmácia na École Normale Superieure de Paris e eu sou seu amigo Camus! Acorde, Milo! Volte à realidade.

No entanto, por mais sinceros que fossem os esforços de Camus, o delírio do grego apenas de intensificava com o passar do tempo. Sem saber o que fazer, o ruivo teve de ouvir, impotente, absurdos dos mais diversos, vindos da boca do amigo, que beirava a agressividade.

Milo aparentava dizer coisas sem nexo sobre feiticeiros demoníacos, cadernos maléficos e mortes predestinadas. Por mais que o francês se esforçasse, não conseguia compreender a lógica dos balbucios do colega, cuja preocupação principal era alertá-lo sobre alguém chamado Lune, de quem Camus nunca sequer ouvira falar.

Vendo que não seria capaz de mudar o estado de Milo com palavras apenas, o aspirante a físico decidiu pela maneira mais prática de tirá-lo do transe. Em um gesto desajeitado, passou o braço do loiro por cima de seus ombros e levantou-o, de modo que o enfermo se apoiasse nele e, equilibrando o peso do amigo com seu próprio, começou uma lenta caminhada até o banheiro.

“Céus, como é pesado!” Pensou Camus ao se dar conta do fardo que era carregar o sujeito, mesmo que por poucos instantes. Por mais que ambos tivessem praticamente a mesma altura, o ruivo era notadamente mais magro que o outro. Seu sedentarismo e sua dieta rígida tornavam quase impossível o ganho de peso. Ao contrário de Milo que andava sempre a pé, de casa ao laboratório e do laboratório até a universidade, e vivia a comer aqueles terríveis enlatados, sob a desculpa da “falta de tempo”.

Chegando, finalmente, ao quarto de banho, Camus colocou Milo para dentro do cubículo e deixou a água gelada jorrar sobre o amigo, sem se importar com o fato de o grego ainda trajar as calças e meias, despertando-o imediatamente do delírio.

Totalmente molhado e ainda aturdido pela repentina sensação de frio, Milo perguntava-se por que diabos estava naquela situação: sentado no chão do banheiro, despido da cintura para cima e sob o olhar atento de um Camus confuso. Tentou formular alguma pergunta, mas o francês o antecedeu.

— Tinha que te acordar de alguma maneira, você estava delirando. Me desculpe.

O grego ainda não entendia muito bem o que estava se passando e apenas acenou com a cabeça, tentando levantar-se, com dificuldade.

— É melhor você trocar logo de roupa ou vai pegar um resfriado – Disse Camus, taxativo, enquanto deixava o banheiro - Não sabe a luta que me foi conseguir abaixar um mísero grau dessa sua febre.

Milo concordou mentalmente e, sentindo suas têmporas ainda latejarem, seguiu o amigo para o aposento onde estavam suas roupas limpas, bem como todo o resto de seus pertences. Após trocar-se por tecidos mais leves, conferiu seu relógio de bolso sob a cabeceira, que marcava mais de três e meia da madrugada. Espantado com o horário, o grego notou a expressão de cansaço no amigo.

— Camus, você esteve aqui esse tempo todo?! – Exclamou tentando reprimi-lo. – Não precisava se importar tanto. Vá descansar na sua casa, aqui nem tem onde se recostar direito... Você jantou? Não me diga que até agora não...

— Milo, pare – Respondeu o francês, num misto de falsa irritação e jocosidade. – Quer dizer que eu viro a noite, faminto, preocupado com a temperatura do animal e é assim que o ingrato agradece? Expulsando-me da casa que eu mesmo arrumei? Ah esses gregos desagradecidos. Depois não venha me procurar quando...

Assim seguiu uma enxurrada de queixas do ruivo que, entre uma e outra alfinetada, conseguiu melhorar aos poucos o humor e o mal-estar de Milo.

Após uma longa e divertida conversa, como os dois não tinham há tempos, o assunto voltou-se para a universidade que, ultimamente, não permitia a eles um momento de descanso sequer. Falaram sobre os projetos aos quais integravam, o sucesso acadêmico de Camus, a pesquisa de Milo, quando o imigrante, sentindo que já passava da hora, decidiu confidenciar ao amigo um segredo que carregava a algum tempo consigo.

— Não sei como você reagirá a isso, mas, por favor, não pense que não lhe contei antes por não confiar em você.

— Assim você de me deixa curioso – Observou o ruivo. – Vamos, diga logo!

— Camus – Milo respirou profundamente. – A fórmula já está pronta.

Boquiaberto, o francês não sabia o que falar. Em verdade, ele não sabia nem mesmo o que pensar com aquela revelação.

— A-aquela fórmula... – Gaguejava o futuro físico, em negação. – “Aquela” fórmula?

— Sim, aquela mesmo! Eu encontrei a solução para a hemofilia, Camus! – Declarou o grego, entre sorrisos de orgulho e alívio por não ter mais de carregar o segredo sozinho.

— Mas por que não me disse antes?! – Perguntou Camus, reclinando-se para frente e admitindo estar um pouco chateado por não ter sido avisado antes. – Não queria que eu soubesse?

— Não, você entendeu errado. Pelo contrário! – Dizia Milo com empolgação. – Eu não te contei antes porque ela tem um pequeno defeito. Pretendo saná-lo até estar completamente pronta.

— E que defeito é esse?

— Bem, foi algo que descobri graças a um pequeno acidente... O soro funciona como o previsto, porém, se usado de forma errada ele pode ser fatal. Mas se usado de forma errada... – Proferiu, colocando bastante ênfase naquele advérbio.

— “Pequeno” defeito? Milo, eu sei que você tem noção da responsabili... – O magro ia repreender o colega pela falta de escrúpulos, mas foi interrompido pelo outro.

— Eu sei, Camus! É exatamente por isso que só revelei a você – Disse, percebendo que falavam tão baixo que pareciam sussurrar. - Por favor, não conte a ninguém.

— Tudo bem, não contarei a ninguém – Prometeu o francês. – Então é por isso que você mantém aquele jogo de provetas aqui no seu apartamento?

— Exatamente. Além de todas as informações referentes à pesquisa. Tudo que eu faço naquele grupo é só fachada, a verdadeira pesquisa é aqui, nessas quatro paredes. No momento em que a fórmula estiver livre de qualquer risco e defeito eu mudo a de lá também, sob uma desculpa qualquer, e tudo fica acertado.

Camus não tinha palavras para descrever o que sentia. Seu amigo era um gênio, como ele próprio. Pensava isso sem vergonha alguma, afinal para muitos doutores e estudiosos, Camus era, de fato, um gênio. Mas conseguir sozinho criar a salvação para milhares de portadores de hemofilia era um feito e tanto, no entanto, tudo aquilo lhe soava terrivelmente errado.

— Milo, se a universidade descobrir...

— Eles não vão, Camus. Está tudo guardado à sete chaves! Logo, logo, irei resolver esse defeito e unir as pesquisas. Está tudo dando certo...

O “gênio da termologia” preferiu não opinar mais sobre isso, visto que o amigo não lhe daria ouvidos. Resolveu, então, mudar o rumo da conversa, ao lembrar-se de que o grego mencionava constantemente alguém chamado “Lune” enquanto delirava. Quando estava prestes a interrogá-lo sobre quem seria o tal sujeito, uma forte batida na porta o interrompeu.

— Olá, está acordado, Milo? – Uma voz grossa, abafada pela porta, fez ouvir-se no ambiente.

— Quem será a uma hora dessas? – Indagou Camus, já preocupado.

— Pela voz é o meu locatário... – Sorriu Milo tranquilizando-o. Levantou-se e abriu a porta, revelando o enorme sujeito a quem Camus pedira um telefonema, horas atrás. – Boa noite, Aldebaran. Ou “bom dia”... O que o traz?

— Vim verificar se está tudo bem por aqui – Disse o brasileiro, entrando nos aposentos e cumprimentando Camus. – Falei mais cedo com seu amigo e ele me contou sobre seu acidente. Se quiser pode dispensá-lo, estou desocupado no momento e seria um prazer ajudar um inquilino tão adimplente como você.

— Ah, não se preocupe com isso! Já estou bem melhor que antes – Recusou educadamente. – Mas agradeço pela preocupação.

— Nada disso. – Insistiu o homem alto, ignorando o “se quiser” por ele anteriormente dito. – Não vê as olheiras desse ruivo? O coitado não deve ter descansado a noite toda.

Dito isso, Aldebaran dirigiu-se a Camus, depositando alguns francos na mão do francês.

— Tome. Essa quantia deve bastar para um táxi atravessar quase a cidade inteira. Vá descansar, você merece.

Visto que Camus só se mantinha acordado pela intrigante conversa com Milo, o jovem não pôde deixar de aceitar a oferta. Despediu-se calorosamente do amigo, desejando-lhe melhoras e prometendo-lhe uma visita. Agradeceu o auxílio do proprietário e deixou o prédio, contente pela melhora o amigo, porém inquieto com alguns pensamentos que não lhe saíam da cabeça.

“O que ele pensa que está fazendo, escondendo a fórmula de todos?”. “Quem é Lune?”. A folia de um bêbado ao longe o despertou de seus desvaneios e Camus entrou no primeiro táxi que encontrou pelas mal-iluminadas ruas do Petit-Montrouge, seguindo para sua casa e seu merecido descanso.


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Notas finais do capítulo

“Extra, extra! Treze leitores enganados! Extra, extra!”

Pensaram que o Milo ia se assumir pro Camus, né? Aguardem! Isso são cenas para o próximo capítulo!
Não deixem de acompanhar essa história e, desde já, obrigada pela leitura!
Até mais ;)



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