Destinos escrita por lemingau


Capítulo 4
Capítulo 04. Mistral Gagnant


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo quentinho saído do forno!



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1933 . Paris, França.

 

            Milo acordou ao som da La Traviata. Revirou-se na cama e cobriu a cabeça com o travesseiro a fim de abafar os sons vindos do apartamento ao lado. Como se não bastasse colocar a ópera no volume máximo permitido pela radiola, o morador do aposento vizinho fazia questão de acompanhá-la palavra por palavra.

            Era de conhecimento de todos do prédio que tal morador, famoso por suas cantorias diárias, levava uma vida desregrada. Chegava sempre tarde em casa, frequentemente bêbado e endividado após brigas de rua. Trabalhava em uma funerária e investia quase todo seu salário em bebidas e na manutenção de uma vitrola e um rádio que encarnavam o terror dos habitantes do edifício, em especial a Milo, seu vizinho de porta.

            Percebendo que o sujeito não se calaria tão cedo, Milo levantou-se ainda sonolento, pensando em como usaria seu sábado, visto que o laboratório não abria aos fins de semana. Foi quando notou um par de livros discretamente posicionados sob a mesinha de refeições, debaixo de uma camisa suja jogada lá há tanto tempo que o grego mal se lembrava da última vez em que a tinha vestido.

            “Oh não...” pensou. Esqueceu-se completamente dos livros que alugara na biblioteca da universidade.

Era um aluno exemplar na faculdade e trabalhador profissional no laboratório. Tanto esforço exigia também alguma distração. O grego achava que alguns romances o fariam relaxar de sua rotina, que se resumia a fórmulas e mais fórmulas. Porém, findo o prazo da locação, Milo teria de retorná-los à biblioteca o mais cedo possível para não ficar com o nome sujo entre as bibliotecárias.

            Não era de todo uma situação desagradável, pois agora possuía planos para a manhã de sábado que não incluíam ouvir passivamente a voz esganiçada do morador inconveniente. Sem pressa, fez o desjejum, vestiu-se com uma camisa leve e prendeu seus longos cachos com uma fita bastante gasta, pôs os livros debaixo do braço e deu leves murros na porta do vizinho para oferecer-lhe um cortês “Cala a boca, italiano!” antes de sair.

Já na rua, Milo caminhava a passos largos e lentos. A École ficava a trinta minutos a pé de sua casa e ele sempre se via sempre obrigado a fazer o percurso apressadamente para evitar atrasos. Decidiu aproveitar a oportunidade para reparar no trajeto, as casas, lojas...

Paris era realmente uma cidade sem igual. Estava lá a cerca de três meses, mas era como se houvesse em cada esquina uma novidade e em cada canto uma velharia. Casas antigas se contrastavam com prédios modernos, modas surgiam e logo eram esquecidas. As praças, os cafés, tanta opulência e luxo contrastando com os bairros da periferia, onde ainda era comum de se encontrar as lavadeiras e engomadeiras, operários e estrangeiros sem muita perspectiva.

Mais que a arquitetura singular dos edifícios parisienses e os aspectos demográficos da população, Milo observava o vaivém das pessoas. Divertia-se ao ver um garoto importunando um parente para que lhe comprasse doces, um idoso assistindo ao movimento da rua do alto de sua sacada, um rapaz cercado de pessoas prometendo operar milagres...

Foi quando notou que pisara acidentalmente num pedaço de papel familiar. Abaixou-se para examiná-lo melhor e leu a seguinte frase: “Prove que sabe honrar os seus compromissos, devolvendo com pontualidade este livro”.

Tinha certeza procedência do papel. Milo já estava tão habituado a impressos como aquele que não pensou duas vezes antes de tirar a conclusão de que se tratava de uma ficha de empréstimo da biblioteca da Normale Sup’. Ergueu-se, procurando o possível dono do documento entre os transeuntes. Porém, em meio a toda a correria dos pedestres, não pôde identificar de onde havia saído o papelzinho.

Virou a ficha de empréstimo para ler no anverso o nome do último locatário e surpreendeu-se ao ver que havia apenas um, cuja assinatura era tão ilegível que por um momento pensou estar escrita em árabe. Afinal, tinha vários colegas argelinos e o livro poderia muito bem ter sido locado por um deles. O título do livro não lhe era comum, tratava das propriedades dos átomos sob temperaturas diversas.

 “De qualquer maneira”, Milo pensou, “É melhor eu me apressar para devolver estes livros, antes que as minhas fichas se percam pela rua”. Adiantou-se para chegar o quanto antes na biblioteca, já preparado para a dor de cabeça que seria ter de explicar o atraso às bibliotecárias.

Chegando a seu destino, esgotado e fatigado da longa caminhada, Milo observou uma incomum agitação no balcão da biblioteca. Aquele recinto que era sempre tão silencioso, agora se enchia de vozes falando alto, perturbando as poucas pessoas que ali estudavam.

Aproximando-se do centro da discussão, o grego olhou com curiosidade os sujeitos envolvidos: uma bibliotecária já idosa e um estudante notadamente aborrecido com a confusão. Ruivo, com cabelos tão longos quanto os de Milo, vestia-se muito bem e sua postura mostrava bastante refinamento, porém não conseguia disfarçar sua irritação, de modo que seu rosto estava quase tão vermelho quanto seus cabelos.

— ... não, é claro que não sei! – Dizia o estudante. – Não faço a menor ideia! Afinal, por que acha que se eu soubesse perderia meu tempo aqui?

— Para ganhar tempo, talvez? – A senhora respondia sarcasticamente. – Acha que eu não conheço as artimanhas de vocês, alunos, para burlar o sistema? Eu sou a responsável por essa biblioteca há mais de vinte anos, já perdi a conta de quantos, como você, chegaram aqui com a mesma desculpa esfarrapada!

Após algum tempo encarando a bibliotecária em silêncio, o ruivo perguntou:

— Tem certeza de que não pode fazer nada quanto a is... – Porém, logo foi interrompido pela mulher.

— Só vou dizer mais uma vez e espero que entenda – Disse a senhora pausadamente, como quem tenta se controlar. – Não vou aceitar a devolução enquanto não trouxer a ficha de empréstimo. Essas são as regras, se quiser fazer diferente terá de pagar multa.

Nesse momento, Milo, que assistia a tudo inerte, recordou-se da ficha encontrada mais cedo na rua. Puxou-a de seu bolso e leu novamente o título do livro. Resolveu, então, arriscar. “Não custa nada”.

— Com licença – Disse enquanto se dirigia aos dois. – Mas por acaso o livro em questão é “Zero Absoluto e Temperatura de Ebulição: Curso Avançado de Termometria”?

— S-sim – Disse o ruivo, desconfiado. – Mas como você...

— Ah, desculpe a intromissão! – Milo adiantou-se. – É que encontrei essa ficha de empréstimo na rua quando vinha para cá e guardei pensando em devolver para a biblioteca.

O rapaz parecia realmente aliviado ao ouvir aquilo. Pegou o documento da mão de Milo e o fitou como se sua vida dependesse daquele pedaço de papel.

— Muito obrigado. Não sei o que faria se você não a encontrasse.

— Pagaria a multa – Disse a bibliotecária.

— É uma pena que esteja toda pisada desse jeito – O rapaz virou-se para Milo, ignorando a bibliotecária. Seus olhos eram únicos, quem olhasse rápido pensariam que eram vermelhos de tão vivos, mas vendo com cuidado, logo perceberiam que eram de um castanho bem singular. – Veja só o estado em que a encontrou!

Ao ouvir isso, Milo lembrou-se de que pisara na ficha ao encontrá-la. Envergonhou-se pela preocupação do ruivo e tentou amenizar a situação.

— Bem... Muitas pessoas passam pelo observatório, a maioria nem deve ter visto a ficha! Bastante gente deve ter pisado nela!

— Então eu a deixei cair no observatório... – O ruivo falou, pensativo.

— Oh, você costuma ir lá? – Perguntou Milo, curioso. – Eu vou sempre que tenho um tempo livre!

— Na verdade fui a um simpósio que ocorreu lá. Gostaria de visitá-lo novamente... Para falar a verdade fui poucas vezes àquele local. – Percebendo que não conhecia o loiro, o rapaz adiantou-se em perguntar por seu nome. – Aliás, ainda não sei como se chama.

— Milo. Muito prazer! – Disse, estendendo a mão.

— Meu nome é Camus, o prazer é todo meu – O ruivo deu um forte aperto de mão, mostrando seu agradecimento pelo favor. – Veio aqui somente por conta da ficha de empréstimo?

— Não! Na verdade vim devolver estes livros que estão há um bom tempo comigo – Riu enquanto devolvia os dois exemplares para a bibliotecária, que resmungava sobre a falta de compromisso dos locatários.

— São quinze francos – Disse ela após verificar a situação do empréstimo.

— Quinze francos?! – Milo assustou-se. – Na última vez foram oito! Por que aumentou assim? Não tem como dar um desconto, não?

— Ordens da reitoria – A senhora dava de ombros. – Multas baixas incentivam a inadimplência. Devo lembrá-lo de que o não pagamento da multa deixará seu nome negativado na biblioteca.

Milo puxou os oito francos que levara na carteira, numa falha tentativa de negociação:

— Posso pagar o restante na segunda-feira?

Aquela pergunta só deixou a senhora com ainda mais raiva. Vendo que a bibliotecária estava prestes a ter uma síncope, Camus interveio, para a sorte de Milo.

— Pode deixar que eu pago a multa.

— M-mas você não... – O loiro tentou impedir, porém Camus foi mais rápido.

— Eu teria de pagar o dobro disso se você não tivesse encontrado minha ficha de empréstimo – Sorriu. – É meu agradecimento pela gentileza de antes.

— Certo... Só agora sou eu quem vai ficar te devendo! – Milo retribuiu o sorriso.

— Que tal me mostrar melhor aquele observatório de que você tanto gosta? – Sugeriu o ruivo.

— Será um prazer – Concordou Milo.

O Observatório de Paris era muito belo. Não representava apenas uma histórica obra arquitetônica, mas um dos maiores centros de pesquisa astrofísica do continente. Sua arquitetura dava um ar imponente e sério ao local, mas por algum motivo que Milo não sabia explicar, aquela construção lhe era bastante acolhedora.

Após muito vagarem pelos corredores e salões do prédio, Camus e Milo foram ao Jardim do Observatório tomar ar. Sentados em um banco de pedra, mantinham uma conversa animada.

— Quer dizer que você é grego?! – Camus estava surpreso. – Então é por isso que você tem esse sotaque... A princípio pensei que você era gascão¹, acredita? Mas seu francês é realmente muito bom.

— É que eu fiz um curso por correspondência quando era mais novo – Milo riu das ideias de Camus. – Não sou nenhum d’Artagnan como pode ver...

Conversar com Milo era algo que deixava Camus bastante à vontade. Fazia muito tempo que o ruivo não mantinha um diálogo tão animado que não tivesse relação a algum assunto acadêmico. Mesmo que há pouco os dois fossem completos desconhecidos, sentia naquele grego a confiança que se dava a um amigo de longa data.

— Todos somos um pouco d’Artagnan ao chegar a Paris pela primeira vez... – Disse Camus reflexivo.

— Não me diga que você também não é daqui! – Aquele comentário despertou a curiosidade de Milo. – De onde você veio?

— Lyon.

— Lyon! – Exclamou Milo. – Não pensava que você viesse de uma cidade tão grande! O que te fez vir para Paris?

— Apenas alguns desentendimentos com a família, nada demais.

Milo sentiu certa mágoa em seu tom de voz, que Camus tentava disfarçar com um semblante rígido. Percebeu que havia tocado num assunto delicado e tentou consertar o erro.

— Desculpe, vamos falar de outro assunto...

— Sem problemas. De qualquer maneira, não devemos nos afligir pelo que ficou no passado...

Ouvir aquilo fez Milo despertar lembranças de muito tempo atrás. Memórias de sua infância, de rostos familiares, de um livro, uma tenda e nela um homem de cabelos brancos...

— Milo! – Camus estalou os dedos, despertando-o do transe. – Acorda, homem! É costume seu ter desvaneios assim ou só ocorre quando a conversa é muito chata?

Após algum tempo tentando entender o que significava aquilo, o ruivo começou a rir. Deixando o grego ainda mais confuso.

— Isso deveria ser uma piada? – Perguntou enquanto ria, também. – Você tem um péssimo senso de humor... Saiba que se estou rindo é por consideração à nossa amizade, apenas!

— Então somos amigos? – Questionou o francês.

— O que você acha?

— Acho que você é o único estranho com quem pude conversar com naturalidade, sem ter que me esconder detrás de uma careta fechada... Agora mesmo estou me perguntando por que diabos estou falando disso para você! – Camus parecia feliz e confuso ao mesmo tempo.

— Acredita que você me faz sentir do mesmo modo? – O loiro confessou. – É como se fosse uma ligação cósmica. Não são vocês de Lyon que acreditam em reencarnação?

— Já voltou a falar umas coisas estranhas... – Disse o francês para si mesmo. – E não são vocês gregos que acreditam em destino?

Milo deu uma risada nervosa. “Não tem como ele saber daquilo...”.

— Seria o meu destino encontrar aquele papel e fazer amizade com esse francês nervoso e distraído que gosta de se passar por frio? – Desdenhou, tentando disfarçar o incômodo.

— Não sei... Seria o meu topar com esse grego bizarro e inadimplente que não paga as próprias multas? – Camus entrou na brincadeira.

— Ora, seu molho de tomate ambulante! Foi você quem quis pagar! E quem está chamando de bizarro? – O grego revidou.

— Quem mais? Seu esotérico! Não parou de falar da constelação de escorpião o passeio inteiro!

— Estamos num observatório! Queria que conversássemos sobre o quê? Seu “Zero Absoluto e Temperatura de Ebulição”?

— Certamente seria um assunto mais aprazível, cabeludo.

— Olha quem fala... – Disse o loiro ao perceber que, de fato, os dois se tratavam como velhos amigos. – Da próxima vez que me chamar para sair eu ouço sobre sua termologia.

— Isso é uma promessa? – Camus indagou.

— Pode encarar como uma – Milo sorriu, feliz por encontrar alguém tão parecido consigo e ao mesmo tempo tão diferente. Desejou por um instante que aquele momento nunca acabasse e que fossem como amigos para sempre.


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Notas finais do capítulo

Mais uma vez, gostaria de agradecer por ler até aqui, especialmente às pessoas que estão acompanhando a história!

Como podem ver, o enredo começou a avançar. Só neste capítulo fomos apresentados a mais dois personagens que terão extrema importância para o andamento da trama. O primeiro, como sabem, é nosso querido Camus, e o segundo foi inserido bem sutilmente, apesar de eu achar que vocês já sabem de quem se trata!
Mu, Kiki, Dohko e Shaka, nossos queridos asiáticos, foram figurantes neste capítulo. Já adivinharam quem eram?
Até a próxima!

¹ gascão = Nascido em Gascogne, região da França próxima à Espanha, onde de fala o peculiar dialeto gascão.



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