A História de Hoje escrita por Rafaela Kido


Capítulo 1
Nirvana


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem! Boa leitura a todos, em especial à Marina! ♥



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Eu costumava evitar este lugar, até que meu irmão me convidou para vir. Não pude negar seu convite. Um pedaço de bar, ou um fundo de porão... Não sei dizer o que é. Mas posso dizer que é escuro. E cheio de mofo. O local é tomado pela umidade, ou a umidade tem paredes e chão de madeira.

Aceitei o convite, mas me arrependi profundamente. Fui apresentado a várias pessoas, mas não conseguia me interessar por nenhuma. Eram estranhas, não faziam jus ao lugar. Pareciam alegres demais, coloridas demais para um local tão deprimente. Certamente eram do tipo que seguiam modas, e a da vez eram locais deprimentes. Cemitérios ficavam cheios de vida, quase todas as noites. Este lugar não era um cemitério, mas alguém devia ter morrido lá, pela quantidade de moscas que infestavam os cantos.

Me sentei ao lado da porta, de onde vinha uma corrente de ar sem o cheiro de mofo e cerveja. Estava visivelmente insatisfeito por estar naquele ali. Meu irmão nem olhava para mim, estava ocupado demais se divertindo. Eu poderia muito bem pegar o carro e ir embora, só que deixar ele bêbado, depois, e a mercê dos outros não era o que eu queria pra ele. Entretanto, o que eu vi do outro lado do bar, olhando para mim com olhos nitidamente azuis, me deixou sem ar.

Aquele homem me encarava. Ele parecia dizer algo, parecia querer falar comigo. Eu me concentrei nos lábios dele e esqueci de todo o resto. Um zunido abafado tomou conta dos meus ouvidos, foi quando eu entendi o que ele dizia: -... when the music is loud...?

Minha cabeça levou alguns segundos para processar a frase, mas quando entendi, acabei rindo. Ele estava cantando a musica que estava tocando na hora! Nivana, uma das minhas músicas preferidas, e que felizmente tocava naquele lugar. Um ponto positivo para aquela pocilga. Porém, meu interesse por aquele homem não desaparecera. Eu ainda estava curioso demais sobre ele. Ensaiei algumas coisas para dizer a ele, o que foi estranho, pois eu nunca precisei deste tipo de coisa. Sempre fui muito confiante. O que eu tinha a dizer chegava e dizia. Mas, aquele homem de cabelos negros, pele branca e olhos azuis me deixaram desarmado. Não conseguia parar de encará-lo, e ele me encarava de volta, sem nenhuma expressão. Ou talvez eu não conseguisse traduzir o que ele expressava. Era divino e perturbador.

Pedi uma cerveja e bebi alguns goles, na esperança de que o álcool me desse coragem. Parecia ter funcionado. Levantei-me e andei até ele. Sua cabeça se movia para me encarar melhor à medida que eu me aproximava, mas continuava sem expressar muita coisa. Apresentei-me e, sem esperar convite, me sentei ao seu lado. Passamos um tempo em silêncio e sem nos olhar. Eu queria ter falado com ele. Queria que ele tivesse falado comigo. A noite estava acabando e eu só conseguia tamborilar os dedos ao ritmo de The Cult, que tocava incessantemente, assim como ele. As únicas palavras que trocamos foram as letras das músicas enquanto cantarolávamos e nos olhávamos. Mas, de alguma forma estranha, eu estava contente com isso. Boa música e boa companhia, num lugar que, se olhasse bem, nem era tão ruim assim.

Eu podia ouvir a voz dele, mesmo com o barulho. Era intensa e encantadora. Sua pele era quase rósea, e ele emanava um calor aconchegante. O prazer da companhia dele, sim apenas a companhia, me satisfazia mais do que todo o sexo que eu já tive. E nem por um instante ele olhou para os lados, procurando outra pessoa. Aqueles olhos azuis tinham sua atenção apenas em mim. Acabei não resistindo. Recobrei meus movimentos e toquei seus cabelos com minha mão. Fui me aproximando dele lentamente, sentindo sua respiração quente cada vez mais próxima.

Quase toquei os lábios dele com os meus, mas os primeiros raios de Sol bateram em meus olhos e fui obrigado a me afastar por reflexo. Com isso, abri uma brecha para ele se levantar. Meu coração começou ma bater muito rápido. O medo de ter estragado tudo tomou conta de mim. Minhas mãos tremeram e minhas pernas fraquejaram, e então ele disse algo que saiu de si, e não da música:

- Sinto muito não poder terminar isso. Já é tarde. Preciso ir. – ele apontou em direção ao Sol que entrava pela janela e as pessoas bêbadas que saíam cambaleando daquele lugar.

Olhei de volta para ele e só vi seu vulto saindo por uma porta que eu achei estar inutilizada. Ouvi meu irmão chamar por mim, mas ignorei. Segui aquele homem o mais rápido que pude. Ele se afastava cada vez mais, me deixando para trás naquele beco imundo. Mesmo assim gritei:

- Me diga apenas seu nome!

Ele diminuiu os passos, se virou e respondeu:

- Hades.

Em seguida ele tomou de volta o caminho que fazia e continuou até desaparecer de vista.

Voltei àquele lugar várias outras vezes, mas eu nunca mais o vi. Sempre que ouço uma música daquela banda, posso ouvi-lo cantar, e então fecho os olhos e o vejo me encarar. Pergunto-me todo dia se não foi um sonho, uma alucinação causada pela tinta velha da madeira umedecida que exalava um cheiro forte, ou qualquer outra coisa. Poucos haviam visto um homem da forma que eu descrevi. De qualquer forma, real ou imaginário, aquele homem causou em mim uma euforia sem igual. Se estiver escutando isso, Hades, só tenho a agradecer à você.

Fez uma breve pausa e então continuou:

- Meu nome é Hypnos e vocês estavam ouvindo “A História de Hoje”. Obrigado pela audiência . Boa noite e bons sonhos.

Ele desligou seu microfone e deu espaço para o próximo locutor assumir. Espreguiçou-se e bocejou. Foi parado na sala de reuniões e elogiado pela história. Seu trabalho era criar histórias das mais variadas e apresentar em seu programa na rádio semanalmente. O que não sabiam era que ele andava com certo bloqueio para criar histórias e acabou usando uma pessoal. Manteve segredo sobre isso. Sua audiência havia aumentado e não queria que a felicidade de seu supervisor fosse trocada por uma explicação extramente exagerada do porque não deveria usar algo pessoal no programa.

Pegou suas coisas e foi embora.

A garoa da noite estava boa. O tempo ainda estava abafado e ela ajudava a amenizar o calor. Foi andando lentamente até passar por mais um beco. Parou e olhou bem para o local. Com exceção dos ratos e do lixo, estava vazio. Virou-se par a rua e levou um susto!

Estava encarando aquele mesmo homem, de olhos azuis, pele clara e cabelos negros, agora amarrados num rabo e jogados pelo ombro. Hades.

Só que agora ele tinha algo diferente. Tinha uma expressão em seu rosto. Um sorriso satisfeito e convidativo, mas ainda assim pequeno.

- O que acha de agradecer pessoalmente? – perguntou Hades.

Ele nem mesmo esperou uma resposta de Hypnos e beijou seus lábios.

- Finalmente! – falou Hypnos, separando os lábios dos dele.

Entraram no carro de Hypnos e rumaram até seu apartamento. Hypnos só seria visto em uma semana, para contar uma nova história. E ele não perderia nunca mais Hades de vista.


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