Segredos de Sangue escrita por Amanda Santos


Capítulo 2
Capítulo 1




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– Ian, levanta agora. - a água gelada me atingiu antes que as palavras começassem a fazer sentido.

Meus olhos se esforçaram para abrir enquanto meu cérebro se concentrava, minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento, minha boca estava seca e eu ainda podia sentir o cheiro de álcool nas minhas roupas.

– Ian, sugiro que levante dessa cama e tome um banho. Meu Deus, você está fedendo. - a voz parecia vir de longe, mas ainda estava ouvindo o que só queria dizer que eu não bebi o suficiente.

– Fale baixo, estou com uma dor de cabeça dos infernos. - rolei na cama e olhei para o relógio na cabeceira. Meio-dia, ótimo.

– Isso é o castigo por desobedecer outra vez, e ainda não é nem o começo. - ela deu um risinho abafado.

Levantei me arrastando e andei até o banheiro, no espelho eu só conseguia ver uma figura meio embaçada com os olhos inchados e o rosto vermelho.

– O que quer dizer com isso?

Sarah abriu as cortinas e o sol fez meus olhos arderem, ela parecia um daqueles robôs com movimentos sincronizados enquanto arrumava a cama. Depois de tantos anos era fácil se habituar com seus passeios silenciosos e sua personalidade metódica.

– Seu pai chega em quinze minutos, e nada do que possa fazer vai tirar do seu rosto essas marcas de ressaca. - seu sorriso beirava ao sádico, ela realmente queria me ver encrencado.

– Você só me avisa agora? - senti o sangue acelerar em minhas veias, e meu rosto empalidecer. Eu tô ferrado.

– Tenho certeza de que não se recorda, mas eu o avisei a uma semana atrás e o senhor me olhou nos olhos e disse que não iria ter nenhum problema da sua parte.

Ela colocou um terno preto em cima da cama, escorou na porta do banheiro enquanto eu tomava banho. Pude ver sua silhueta pelo vidro do box embaçado e sorri, Sarah sempre me observava tomar banho quando eu era criança para ter certeza de que eu lavaria atrás das orelhas.

– Espero que esteja gostando do que vê. - falei rindo.

– Ah meu querido, apesar de achar que você é muito bem apessoado, lamento informar-lhe que adolescentes mimados e geralmente bêbados não fazem o meu tipo. - dei uma gargalhada e a ouvi suspirar.

– Isso é uma pena. - gritei.

Sarah era filha da assistente pessoal do meu pai, quando tinha apenas vinte anos veio cuidar de mim depois que minha mãe morreu e meu pai surtou. Desde então ela fazia parte da minha vida, ela era mais que uma babá ou uma empregada, eu realmente amava ela como se fosse a minha família, ou o mais próximo que eu chegaria de ter uma.

– Já pensou no que vai fazer no seu aniversário? Afinal só se faz dezoito anos uma vez. - sua voz era afável como se quisesse amenizar as coisas.

– Não se preocupe, acho que meu pai já organizou um jantar com investidores para a ocasião e talvez ele planeje me chamar. - respondi com amargura.

– Não seja tão duro com ele, Ian. - ela se sentou na beirada da cama enquanto eu dava o nó na gravata em frente ao espelho. - Quando eu o conheci, ele era igualzinho a você. Um menino assustado, que tinha perdido um amor e ganhado um bebê. Ele pode não ter sido o melhor pai de todos, mas aposto que também não foi o pior.

Por mais que ela tentasse me convencer da inocência de meu pai, não havia nada no mundo que me fizesse fazer as pazes com ele. Anos de espera por um elogio ou um sorriso que não fosse falso, deixaram marcas que não podiam ser esquecidas da noite para o dia.

– Você está com o rosto inchado. - ela reclamou. - Sabe o que seu pai vai achar? Ele vai pensar que eu não cuido mais de você, que o deixo largado por aí.

– Pode deixar que com meu pai eu me resolvo, mas como eu cheguei em casa ontem?

– Você quer dizer hoje? - dei de ombros sorrindo e ela me olhou feio. - Helen trouxe um rapaz caindo de bêbado que me recusei a acreditar que era mesmo você. Mas como sempre, quando o assunto é você, eu estava errada.

– Não faça drama, Sarah. - beijei-a no rosto. - Nunca nem ao menos entrei em coma alcoólico para que você pudesse ficar assim tão neurótica. Relaxa.

– Para você é fácil...
Ela não pôde terminar o sermão, a campainha ecoou pela casa e um arrepio percorreu meu corpo.

– O sargento chegou. - cantarolei.

Descemos para a sala e esperei que ele irrompesse pela porta com o assalto de cobranças de sempre, mas tudo que vi foi um homem pálido e cansado, nada parecido com o que eu costumo ver.

– Ah Ian, fico feliz que esteja bem. - disse enquanto me abraçava com um sorriso afetado.

– Pai, você está bem? - eu estava com medo de dizer algo e por ventura ele esquecesse que não costuma fazer isso e voltasse ao normal.
Mas ele simplesmente me ignorou e saiu bradando ordens sem sentido.

– Sarah, prepare o carro. Coloque tudo que acha que será útil, e por favor, o mais rápido possível.

– Sim, senhor. - ela saiu correndo as pressas pelo corredor, me deixando sozinho com um alien. Aquele não era meu pai, com toda certeza.

Ele suspirou e pude ver seu corpo encurvado, parecia mais velho e cansado com olheiras e a barba por fazer.

– Pai...

– Ian, me escute pelo menos uma vez. Amanhã é o seu aniversário de dezoito anos e por mais que eu gostaria de adiar isso, não é possível. - ele deu uma pausa e sorriu amargo. - Quando me casei com sua mãe, ela havia me dito que pertencia a uma família com costumes diferentes e que nunca daria certo. Eu a ignorei e por isso ela morreu, agora eles querem você e não há nada que eu possa fazer para salvá-lo.

– Do que o senhor está falando? - perguntei.

– Destino Ian, é seu destino entrar nas Batalhas. - do que ele está falando? - Agora não há tempo para explicações.

– Explicações? Tudo que você está dizendo não tem sentido algum. - respondi.

– Você saberá de tudo na hora certa, agora apenas se concentre em lembrar de tudo que você aprendeu. Todas as aulas de luta e defesa pessoal, todos os fins de semana no campo de tiro. Concentre-se, não aja como se fosse uma brincadeira.

Eu não estava entendendo nada, e não houve tempo de perguntar o que estava acontecendo. A campainha tocou outra vez.

– Eles chegaram. - o rosto de meu pai ficou ainda mais branco do que já estava e ele gaguejou quando tentou falar. - Sarah! - gritou.

– Tudo pronto senhor.

Ela arfava por ter corrido e seus olhos estavam vermelhos, levei um tempo para perceber que eram lágrimas e que elas escorriam por seu rosto sem fim. Meu pai me arrastou pela casa até a garagem, meu carro estava na entrada com uma mochila no banco de trás e um saco de viagens enorme no porta malas. Houve um estrondo enorme e ouvimos a porta ser derrubada, meu pai se apressou fechando o porta malas e me empurrando para o banco do motorista.

– Dirija por aí e se parar tenha a certeza de não estar sendo seguido. - ele me olhou com o rosto a beira de lágrimas. - Vou distraí-los o quanto eu puder, não confie em ninguém. Agora vá.

Não tive tempo para questionar suas ordens, uma dúzia de homens armados invadiram a garagem e seus olhos passaram por meu pai e Sarah até focarem em mim. Eles começaram a atirar enquanto eu tentava desesperadamente controlar o carro abaixado. Estava chovendo o que dificultava ainda mais manter o carro em linha reta, o vidro traseiro se partiu com um estrondo quando uma bala o acertou. Fiz uma curva por cima da calçada saindo da direção das balas, eu já não conseguia vê-los pelo retrovisor agora, mas isso nem chegava a ser um alívio considerando que eu não tinha a menor ideia para onde ir. De repente um medo se instalou em mim, eu havia deixado meu pai e Sarah sozinhos, a menor possibilidade de estarem vivos foi aterrorizadamente arrancada quando aqueles homens começaram a atirar.
Dei voltas pela cidade sem saber ao certo para onde ir, não poderia ir à polícia e muito menos pedir ajuda. A chuva diminuiu aos poucos até que parou por completo quando resolvi parar. O cais de Santa Mônica ficava praticamente deserto antes do verão, costumava trazer garotas ali o tempo todo. Abri a mochila que estava no banco de trás, havia roupas, cobertores, uma barraca, água e vários pacotes de comida desidratada e barras cereais, cordas, pelo menos cinco celulares descartáveis e uma caixa enorme de primeiros socorros. Comi uma barra de cereal enquanto tentava abrir o porta malas amassado, devia ter batido na entrada da garagem.

O saco de viagem não era tão grande quanto a mochila, mas estava muito mais pesado. Dei um salto quando abri e vi todo tipo de arma que eu pude imaginar. Havia punhais antigos, espadas de meio metro, lâminas pequenas e facas, além de armas de fogo e munição. Reconheci uma arma que meu pai tinha me dado quando comecei a fazer curso de tiro, ele dizia que coisas como estas sempre são úteis. Seis horas por dia em cursos que eu nem tinha ideia do porquê estava fazendo e que agora pareciam fazer o maior sentido, boxe, tiro, karatê, jiu-jitsu, defesa pessoal, arco e flecha, paintball. Tudo parecia um treinamento militar disfarçado de brincadeira para criança.

Peguei uma calça jeans e uma camisa de botões na mochila e tirei aquele terno sufocante, no meu pulso brilhava um bracelete de prata. Me esforcei para me lembrar de onde vinha o bracelete quando um rosto veio a minha mente, tinha cabelos negros e olhos verdes intensos. A garota do terraço.

– Merda - praguejei.

Ela havia dito algo, mas tudo estava meio borrado por causa do álcool. Ela havia dito "fique vivo até o adormecer do sol de amanhã e quem sabe nos vejamos outra vez", ela sabia de tudo isso. Mas eu não poderia encontrá-la nem que quisesse, ele não havia dito nome ou qualquer outra coisa que tivesse lógica. Resolvi esquecer a misteriosa garota e me concentrar no que era importante. Peguei algumas facas e as escondi pelo corpo, havia apenas uma pistola de pequeno porte, já estava carregada e destravada, coloquei no cós da calça e a cobri com a camisa.

Já devia passar das cinco da tarde, o sol manchava o céu com tons de vermelho intenso e alguns mendigos já começavam a circular para encontrar um lugar para ficar. Um velho com nada menos que setenta anos e vestido com a mesma roupa de provavelmente semana passada se aproximou devagar e mancando.

– Não esperava que você fosse chegar tão longe. - sua voz era meio arrastada e rouca.

– O que disse? - perguntei.

– Eu disse que era para você ter morrido quando invadiram sua casa. - ele soltou uma risada amarga. - Mas tudo bem, a velha guarda é a melhor para trabalhos deste tipo.

Não tive tempo para pensar ou mesmo para reagir, o velho saltou sobre mim com uma força inumana e me derrubou. Suas mãos apertavam minha garganta com tanta força que até me mexer era impossível, consegui pegar um punhal que estava no meu tornozelo e cortar o velho no pulso. Ele afrouxou o aperto na minha garganta e chutei-o para longe.

– Você é mais durão que eu pensava, garoto. - ele riu.

– Você não faz a menor ideia. - respondi entre dentes.

Ele tentou me derrubar outra vez, mas foi lento demais e consegui acertá-lo um soco nas costelas e depois outro no maxilar fazendo cambalear e se encurvar, chute-o no peito e derrubei-o. Tentei mantê-lo na mesma posição que ele havia me mantido, segurando com firmeza seu corpo no chão, ele se debatia e xingava numa língua estranha.

– Quem é você? E por que quer me matar? - perguntei.

– Ah garoto, seus pais erraram em tentar afastá-lo deste mundo. O mundo ao qual você pertence. - ele tossiu e arquejou, estava sem ar, mas não soltei minha mão de seu pescoço.

– O que quer dizer? - perguntei apertando ainda mais seu pescoço.

– Quero dizer que você recebeu o Chamado.

Num instante de distração ele me socou no estômago fazendo com que eu caísse de lado, tentei vomitar, mas não havia nada em meu estômago para sair. Vi de relance um sorriso transpassar o rosto do velho e ele alcançar o punhal que eu havia deixado cair.

– Você quase me enganou, garoto. Quase.

Repassei em minha mente tudo que o velho havia dito, vi os rostos de meu pai e Sarah que podiam ou não estar vivos e o rosto de minha mãe em uma foto meio borrada ao lado de minha cabeceira. O que viria a seguir eu já podia prever, o velho levantou o punhal e o mirou em mim com um sorriso triunfante.

– Não lamente garoto, você não é digno. Não merece viver.

De repente o tempo pareceu parar e eu sabia que tinha todo o tempo do mundo, ele atirou a faca e assisti ela vir diretamente para mim, a arma na minha cintura estava apenas alguns centímetros da minha mão, mas eu não conseguia pegá-la. E então o tempo voltou ao normal, me estiquei para pegar a arma e o punhal me acertou no ombro, o velho pareceu surpreso por ter errado e se lançou para mim outra vez, não vi o que aconteceu em seguida e a única coisa que consegui ouvir foram os cinco tiros no peito do velho. Ele caiu em cima de mim em convulsões, o sangue quente saía dele em goles molhando minhas roupas.

– Você passou, garoto. - foi tudo que ele conseguiu dizer antes que a vida o deixasse.

Arrastei seu corpo até um canto escuro, o achariam pela manhã e pensariam que havia sido uma briga entre moradores de rua. Tirei o punhal do meu ombro tentando abafar um grito de dor, limpei-o na calça e coloquei na mochila. Minhas roupas estavam molhadas de sangue, mas tudo que eu conseguia pensar era na dor.

– Eu não esperava esse final, juro que não. - aquela voz me acertou em cheio.

Instintivamente olhei para o céu, o sol já havia se posto. Pontual. Ela estava com calça jeans e uma blusa vermelha apertada, suas botas de cano alto iam até o joelho. Exibia um sorriso estonteante, como se estivesse realmente feliz por eu estar vivo.

– Houve um momento ali que eu realmente achei que o Seletor iria matá-lo, aí de repente você atira. Foi uma estratégia arriscada mas admito, funcionou. - ela pegou o kit de primeiros socorros e começou a limpar o corte no meu ombro.

– Ah, você é a doida que me beijou no terraço e começou todos os meus problemas até agora. - murmurei.

– Eu vejo por outro lado, vejo uma garota que foi a uma festa adolescente realmente estúpida alertar um garoto mimado sobre a possibilidade de ele ser atacado, contrariando as regras de sigilo, vale a pena mencionar. Então parece que eu salvei a sua vida. - ela jogou álcool na ferida e riu quando me contorci de dor.

– E qual é o seu nome? Já que você sabe o meu, nada parece mais justo. - ela colocou a linha na agulha e enfiou na minha pele com tanta rapidez que eu nem ao menos sentia a linha deslizar sobre o ferimento.

– Sou Alexandria.


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