Terreiro de Pai José (One) escrita por Evo Gonzales


Capítulo 1
Terreiro de Pai José


Notas iniciais do capítulo

Sem delongas...



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Niccolay, como todos os dias, saiu apressado da escola.

Ele não possuía nenhum amigo naquele lugar, mas ao menos ninguém mais o zoava como faziam até há um ano atrás. Depois que começou a namorar Jeremia, tudo mudou.

Enquanto isso, Jeremia terminava seu turno na boca de fumo do Odilário, onde trabalhava entregando crack e recolhendo dinheiro dos viciados da comunidade e de alguns turistas burgueses.

Até bem pouco tempo era olheiro, mas foi promovido quando matou um homem para defender a boca. Odilário viu nisso um ato de nobreza e lhe deu trabalho mais digno.

Niccolay e Jeremia se encontraram em uma das vielas do bairro. Ainda que suas almas clamassem por um abraço, limitaram a um comprimento distante e seguiram caminhando como bons amigos. Laurêncio, pai de Niccolay, além de misionário era pedreiro e trabalhava por ali.

Eles caminharam sorrateiros pelo bairro, subindo uma das muitas ladeiras do Leme. Conversavam despreocupados e, ainda que bem próximos um do outro, cuidavam para que suas mãos não entrelaçassem, mesmo que o desejo para isso fosse grande.

Logo entraram no beco do Almirante. No lugar, pouca gente transitava, um convite para o romance.

Jeremia, de maior estatura, envolveu Niccolay em sua musculatura robusta. O sorriso logo se desfez em um beijo alongado e profundo, tal qual a paixão que sentiam um pelo outro.

Após o calor do beijo, Niccolay pousou a cabeça nos ombros suaves de Jeremia, sentindo o pulsar do coração daquele que tanto amava.

Jeremia acariciava os cabelos negros de Niccolay, suspirando fundo por tê-lo tão próximo.

Porém, por sobre os ombros do amado, Jeremia identificou na entrada do beco, a silhueta fornida de Laurêncio. Estava ele parado, por certo estarrecido com o que via. Mas logo pôs-se em movimento em direção aos amantes.

— Meu pai. - Murmurou o menino, deixando o aconchego dos braços de Jeremia.

Ele virou o corpo e avistou Laurêncio vindo. Valente que ele só, decidiu por enfrentar o homem. Já não gostava mesmo dele por ser um empecilho ao seu amor por Niccolay.

— Não, Jeremia! Se fizer algo a meu pai os fiéis da igreja vão atrás de você e com certeza o lincharão. - Puxou os braços do rapaz tentando tirá-lo dali. - Eu não quero te perder, vamos fugir daqui.

Jeremia, tomado pelo raio da razão, viu que o amado estava certo. Laurêncio era missionário de uma igreja da comunidade e com certeza seu rebanho ergueria em seu favor. Puseram a correr.

Ao fim do beco, pularam o muro que dava para uma alameda e deixaram o homem para trás, ouvindo alguns gritos de blasfêmia.

— Vamos descer o morro, Niccolay. Ficaremos lá até que seu pai acalme. - Iniciou de pronto a descer, certo de que o menino o seguiria.

— Não Jeremia. Meu pai não vai se acalmar, eu conheço bem aquele homem. Precisamos de ajuda. - Argumentou parado, assustado enquanto tentava organizar os pensamentos.

— Ninguém pode nos ajudar, Niccolay. Nem mesmo Odilário já que frequenta a igreja de teu pai. - Protestou tentando fazer com que o rapaz o seguisse na fuga. - Venha logo, vamos descer o morro.

— Não. Vou procurar Pai José.

— Você tá louco? Teu pai já vai te condenar por ser gay, se souber que frequenta terreiro também, aí é que te mata mesmo. - Contestou. - Vamos descer logo o morro, não temos tempo a perder.

— Vá indo, depois vou. Primeiro preciso recorrer a Pai José. - Concluiu já iniciando a subida, deixando ali o amado.

Jeremia pensou em seguir Niccolay, já que não conseguiria mesmo convencer aquele menino teimoso em o seguir na fuga. Mas achou por bem descer o morro e tentar encontrar alguém que os ajudassem. Começou a chover.

Niccolay subiu correndo as ladeiras do Leme. Percorreu por entre os amontoados de barracos com a respiração quase lhe faltando, até que chegou ao destino. Era início da noite quando encontrou Pai José sentado com as pernas cruzadas pitando seu farto cachimbo.

— Pai José, preciso intercessão. - Disse afoito curvando-se atrás do velho.

O homem voltou o corpo e viu um menino apavorado.

— Teu coração aflige, meu filho. Me conte o sucedido. - Respondeu quase catado, já que tinha alma cigana. Tragou forte o cachimbo e mandou fumaça ao céu.

— Meu pai soube de forma errada que não gosto de mulher. Preciso que Oxum me proteja do ódio daquele homem. - Tremia o menino de pouca idade e corpo frágil, pingando dos cabelos compridos, gotículas de água pela roupa também ensopada.

— Teu pai tem o corpo fechado pela fé que professa, precisa de macumba forte, só Oxum não vai resolver. - Levantou e foi aos Orixás que ficavam em um altar bem arrumado aos fundos do barraco pequeno.

— Me fale como foi que ele soube para ver de que Orixás preciso intercessão. - Pegou ervas em alguns potes dispostos em uma prateleira.

— Agora há pouco tava eu mais Jeremia no Beco do Almirante. Ele nos viu beijando. Viu de longe e nós corremos. Pulamos o muro que dá na alameda e foi Jeremia pros lados da Mangueira Baixa e eu vi para cá. Só pensei no Senhor para que possa nos ajudar. - Sentia a alma afligir vendo nos Orixás a única forma de proteger sua vida e a de Jeremia.

— Muito bem. Então, além de Oxum, evocarei Xangô, Iansã e Oxóssi. Também bom rezar para Oxalá, já que ele é do amor e protege aqueles que amam. - O preto pegou os santos e os colocou em outro altar, pondo ao lado algumas velas vermelhas e ramos de alecrim.

— Jeremia é menino bom. - Continuou Pai José. - Tu também é boa gente. Vocês se amam, Niccolay? Ou só ficam, como fazem a gente moderna? - Quis saber o preto velho enquanto preparava o altar.

— Estamos namorando. Nos encontramos já pra mais de um ano, mas bem escondido. Meu pai não gosta de preto nem de gay. Nunca vi homem mais preconceituoso que aquele velho desgraçado. - Virava os olhos de um lado a outro pelo medo que sentia. Sabia muito bem o que seu pai seria capaz de fazer com o ódio que estava sentindo.

— Jeremia é preto mas tem dignidade. - Seguiu dizendo Pai José. - Tá certo que ele tá no tráfico, mas isso também é trabalho digno, não vejo mal algum. - Batizou água com cachaça e acendeu três velas vermelhas.

— Aquele velho desgraçado não tá nem aí pra dignidade. Se é preto ou se é gay, pra ele tá condenado ao fogo do inferno. Eu faço que não ligo, mas não tava mais suportando. Acho que foi até bom ele me ver beijando Jeremia. - Ainda que tivesse com medo, estava um pouco aliviado. - Pelo menos não preciso mais esconder de meu pai o que sou.

O preto não disse mais nada. Terminou de arrumar o altar, pôs de lado o cachimbo e começou uma cantoria em língua esquisita. Eram os símbolos linguísticos da África que ele cuidava com fervor e zelo.

Pôs fogo nos ramos verdes de alecrim e o cheiro impregnou o lugar. Os Orixás eram, então, evocados. No terreiro de Pai José iniciavam os trabalhos para trazer proteção àqueles que se amavam.

Sentado no meio da sala, Niccolay recebia fumaça do alecrim, sendo benzido por Pai José.

Mas logo o ritual foi interrompido pelos gritos de um homem lá fora. Nem o barulho da chuva afogou os sons de blasfêmia.

— Niccolay, seu herege maldito. Sei que está nesse antro de anticristo. Saia já e venha aqui fora, não me faça entrar neste lugar maldito e te arrancar daí. - Gritou Laurêncio bufando ódio em cada palavra.

Niccolay tremeu de vez. Sabia que o pai não o perdoaria jamais. Mal sentia o peso do corpo enquanto levantava do chão para olhar por uma pequena janela. Lá fora, Laurêncio acompanhado de alguns fiéis. Odilário estava entre eles, de arma em punho e feição de poucos amigos.

Pai José parou o benzimento e fez intenção aos Santos. Clamou que lhes guiassem o pensamento e as palavras que ia dizer. Foi o primeiro a sair, antes ainda que o menino.

— Este lugar que tu diz ser maldito é terra sagradas dos Orixás. Eu respeito o teu lugar, respeite o meu também. - Disse assim que se pôs para fora, defendendo seu terreiro.

— Isso é terra do demônio e eu não tenho que respeitar lugar onde Deus não habita. Se eu soubesse que meu filho frequentava esse lugar, já tinha acabado com ele era a muito tempo. - Caminhou em direção ao velho, pegado um pau que estava ali no chão.

Pai José, apesar de corajoso, era velho e de pouca força. Mas ainda assim, não sentiu medo e ficou ali, com a força de teus Orixás.

Os fiéis que acompanhavam o pastor apenas observavam, mas fervorosos por verem o fim daquele terreiro que afrontava toda a fé que professavam.

— Se meu filho tá nesse caminho, foi por influência desse velho maldito e desses santos do demônio. - Levantou o pau e com toda força que tinha, desceu rumo à cabeça do preto.

Porém, Niccolay veio em socorro do velho. Entrou na frente e recebeu a pancada. Ela lhe rachou a cabeça e ele, já sem vida, caiu sobre Pai José.

Jeremia que havia voltado, presenciou o ocorrido. Viu o amado caído, morto pelo próprio pai. Atordoado, foi até ele. Abaixou e acariciou a face ensanguentada de Niccolay.

— Veja o q fez com teu filho, homem. Ele apenas queria amar. - Disse Pai José ali caído no chão, olhando Laurêncio em pé.

— Eu não tenho filho gay, nem que frequenta candomblé. Se morreu, melhor que seja assim, ao menos não me envergonha. Mas não só ele merece partir desse mundo. - Voltou os olhos para Odilário, como se esperasse reação.

Mas o traficante achou por bem não tomar partido. Matar um Pai de Santo poderia trazer azar.

Laurêncio, então, foi até ele e lhe retirou a arma. Caminhou alguns passos e descarregou a pistola. Matou Pai José e Jeremia. O moço caiu sobre Niccolay. Os corpos que tanto amavam, estavam unos novamente.

***


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Notas finais do capítulo

Trágico, eu sei. Mas, em meus escritos conotam sempre um final assim. Deve ser uma sina minha....