A carta de Jane escrita por Escr Taty


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Hei o/
Como dito no desclamer, este é um capítulo único, ou seja, não há continuação.

Não há nenhum aviso no início pq é uma carta ~ohhhh.
Nos vemos lá embaixo.



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— Jane Christina tinha 15 anos e cometeu suicídio.

Ninguém acreditou quando ouviu o professor de história abrir a boca, muitos apenas o olharam esperando que ele contasse mais uma de suas brincadeiras. Estávamos todos no auditório, cada um conversando com quem se importava, cada um sorrindo e agradecendo o fim das aulas. Para uns, era o fim da vida no Ensino Médio, para outros, era o fim de mais um ano letivo. Para Jane, era o fim de sua própria vida.

O professor esperou que todos se silenciassem, se sentassem melhor e parassem para ouvir. Mas muitos não ouviram o que ele disse, e o barulho da conversa retomou devagar, mas antes de tomar grandes proporções, ele respirou fundo, fazendo o ruído entonar nas caixas de som e chamando a atenção de todos nós.

— Jane era uma aluna exemplar do segundo ano. Todos nós, professores, acreditávamos que ela seria um exemplo de futuro brilhante – respirou fundo mais uma vez. Nesse instante, mais ninguém ousava falar.

O professor Jorge era alto com uma barriga de cerveja escondida em sua camisa de tecido semelhante ao jeans. Usava calças jeans desbotadas, tinha os cabelos curtos (e poucos) já grisalhos, mantinha um olhar profundo de quem virava as noites trabalhando, mas o que chamou atenção de todos era que ele sempre foi brincalhão e sorridente, o nosso professor favorito. A direção sabia que, por ele ser tão querido, ele era a pessoa certa para dar lição de vida em todos nós.

O problema é que ele não estava sorrindo, ele mantinha seu rosto, um pouco enrugado, com uma expressão séria e triste.

— Jane era... incrível – continuou após uma longa pausa. – Ninguém jamais diria que ela possuía qualquer tipo de sofrimento. Ela sorria o tempo todo, era prestativa, bastante sociável. Vocês devem ter visto ela uma vez ou outra aqui no palco, nos ajudando, ajudando vocês. Ela mexia com o som durante as peças e apresentações, substituía a estagiária da biblioteca no turno da tarde quando mais ninguém queria. Se vocês queriam usar a quadra em horário fora de aula, era só pedir para Jane ir à diretoria pedir autorização e era certeza de que conseguiriam. Mas seu nome? Vocês não sabiam.

O silêncio ficou cada vez mais pesado. Todos nós sabíamos quem era Jane. A garota prodígio que estava no segundo ano e quebrava o estereótipo de CDF antissocial. Não havia ninguém que não falasse com ela, nem mesmo os professores chatos.

— Vocês a conheciam como Chris, a menina legal. E ela era mesmo, ela era muito legal. Era tão legal que nunca, jamais, em nenhum momento durante toda a minha vida, pude ver tanta alegria em uma pessoa só, tanto desejo de ajudar e de ser útil. Nunca passou pela minha cabeça que, talvez, ela sofresse com alguma coisa. Sempre acreditei que se havia sofrimento nesse mundo, com certeza essa garota não sabia o significado.

“Mas eu me enganei!

“Jane sofria de depressão e estava em um estágio em que ela deveria ter superado. Em que ela aprendeu que o sorriso vale mais do que a lágrima. Essa era, obviamente, a definição de seu estado de espírito, mas Jane só não queria que ninguém perguntasse o por quê.” – Ele parou de falar e respirou fundo novamente, mas sua respiração estava entrecortada.

Todos nós sentimos o peso daquilo. Todos nós já tínhamos visto Jane correr pelos corredores entre risadas e brincadeiras. Qualquer lugar ruim era bom quando ela estava por perto.

— Eu trabalho como professor há 30 anos. Tenho doutorado, magistério, mestrado, licenciatura... Durante estas três décadas eu vi vários pais não darem valor ao que tinham em casa. Seus filhos eram ruins demais, péssimos demais. Eram tão dignos de preocupação, que não se surpreendiam quando faziam X coisa. Mas apenas alguns deles realmente faziam com que seus filhos não se sentissem pior ao falar de depressão. Eles tomavam medidas, ficavam do lado, faziam o que era possível. Os pais de Jane fazem parte desta soma ridiculamente pequena, e então eu lhes pergunto... o que deu errado?

“O que fez uma garota de quinze anos tirar a própria vida? O que faria vocês tirarem a própria vida? Jane deixou uma carta para vocês e é por ela que estão aqui hoje.”

Ele se afastou do centro do palco e desceu os degraus em uma fraqueza visível. Uma garota surgiu em seu lugar. Ela era baixa, cabelos negros e armados, encaracolados e longos. Ela se manteve de cabeça baixa enquanto arrumava as folhas na mesa pequena de madeira prensada e se sentava na cadeira azul de professor. Todo mundo já tinha visto-a várias vezes, sempre ao lado de Jane. O diretor ajeitou o suporte do microfone para ficar da altura necessária e de frente para ela. E então, sem nenhum aviso... ela começou a ler a carta de algumas folhas.

Tenho certeza de que agora estão todos assustados com a notícia. Se tudo tiver acontecido como o planejado, meu velório deve estar sendo organizado neste momento ou, em uma outra hipótese, meu corpo deve estar no IML para ter certeza de que não fui assassinada. Mas eu não fui.

Eu resolvi usar um método indolor, o de ingestão de remédios. Não vou falar quais usei, nem quero citar todos os nomes complicados que estão nas caixas. Isso não importa. Se você estiver pensando que tenho sorte por, diferente de você, ter tido coragem, então reveja seus conceitos.

Eu fui covarde, na verdade. Estou ignorando todas as pessoas importantes que ficaram vivas e que, neste momento, estão chorando com a minha perda. Eu abri mão de tudo o que conquistei, inclusive desta imagem bonita que vocês possuem de mim, só para desistir e deixar que tudo escorra por entre os meus dedos. Isso mesmo, eu desisti, e só os fracos desistem.

Eu poderia ter falado com alguém que não fosse os meus terapeutas, mas ninguém entende. Todos pensam que é frescura, que é falta de surra ou de algo melhor para fazer. Bem... eu quebrei a regra, não é? Eu fui muito mais em quinze anos do que todos vocês serão em vinte. Eu sorri mais, eu abracei mais, eu ousei mais... Então como pode ser frescura se eu tinha a vida que muita gente deseja? Notas altas sem precisar ficar me acabando de estudar, altamente sociável, presidente do grêmio estudantil desde o primeiro ano do Ensino Médio e o da minha vida neste colégio. Nunca fui muito bonita e nem cheguei a ser líder de torcida, como nos filmes americanos, mas tive namorados suficientes para a minha idade.

Eu tinha a vida perfeita, porque largar tudo assim?

Acontece que tudo, tudo o que você viu, não passa de fachada.

Ninguém tem uma vida perfeita. Ninguém é feliz em tempo integral. Ninguém está 100% satisfeito com o que tem. A grama do vizinho é mais verde, mas ninguém sabe de todos os sacrifícios feitos para chegar nesse ponto, nem se há raízes ali. Quantos corpos fertilizam a terra que esta grama cobre?

Eu decidi partir porque não aguentei mais sustentar minha vida feliz.

Por que... ser perfeita custa caro.

Para pagar minhas aulas extras que elevam meu altíssimo Q.I ao topo, faz com que meus pais trabalhem em dobro e ignorem os problemas conjugais. Ignorem todo o resto.

“Jane tem que fazer aula de francês, ela é muito inteligente para ficar só no Inglês!”

“Quanto custa a aula de francês?”

“Quem se importa? Ela precisa fazer.”

Jack, meu irmão mais velho, tem dislexia e é hiperativo. Diferente de mim, seu Q.I não é tão alto. Isso não equivale a ser burro, apenas significa que ele tem mais dificuldade de aprender certas coisas do que a maioria. Mas quem se importa? Nós temos a Jane. O que Jack sabe fazer, Jane faz melhor. E o que Jack não sabe fazer? Jane sabe e sabe muito bem.

Minha mãe nunca terminou o curso de psicologia que ela tanto quis. E adivinhem por quem!

Papai... papai nem faz mais questão de esconder seus pecados. Se estiver à sombra de sua filha perfeita, que mal tem?

Se todos eles não fossem tão cegos, teriam notado que Jack só não é bom com interpretação de textos longos, mas ele é terrivelmente inteligente com números. Acontece que, assim que eu nasci expressando todo o meu poder, Jack ficou mais apagado do que já era... e ninguém notou.

Jack sorri mesmo assim.

E diferente de mim, Jack é sincero.

Desculpe, Jack. Naquilo que você foi melhor do que eu, ninguém notou.

Os pais de Natália, a garota que está lendo isso para vocês, e que fui cruel ao fazê-la prometer ler até o fim, nunca viram o potencial que ela tem. Natália cresceu comigo e com Jack, ela é incrivelmente inteligente, mas eu sou a perfeita, se lembram?

O choro que ela escondeu várias vezes sempre que ouvia que era uma inútil, não se compara com a mágoa e a dor que ela vem guardando. Mas ela é mais forte do que eu, é uma guerreira. Diferente de mim, que vivi me perguntando como é morrer, Natália vive se perguntando como será quando for mais velha e viver por conta própria.

Ela quer ser o orgulho de alguém, nem que seja só uma vez na vida. O que ela não sabe, mas vai descobrir agora, é que ela é o meu eterno orgulho e o orgulho de Jack.

Os pais de Natália nunca verão ela sorrir como ela sorriu para mim e para o Jack, porque eles sempre queriam mais. Assim como meus pais, eles não viam futuro em apenas sorrir, tem que sorrir e ser alguém.

Eles nunca verão esse sorriso.

Se um dia vocês vierem a serem pais, nunca digam que seus filhos não sabem fazer nada de bom. Veem? A Natália continua lendo isso para vocês, mesmo sofrendo a minha perda e achando que está sozinha de vez. Ela é ou não é mais capaz do que todos jamais puderam imaginar?

Mas Nath, você tem o Jack ainda, cuida dele por mim.

A razão de eu ter morrido realmente não importa. O que me levou ao fim precoce da minha vida madura, também não é concreto.

Basta vocês saberem que, se estiverem em uma situação parecida ou igual a minha hoje, amanhã ou depois... Seja melhor do que eu.

Continue tentando, continue seguindo, continue estampando esse sorriso falso e continue jogando toda a dor através de lágrimas no meio da noite quando ninguém está vendo.

Pare de se cortar (isso vai ficar feio com o tempo, você vai sentir vergonha de si mesmo e vai continuar nesse ciclo vicioso), pare de sonhar com a morte (um dia ela vai te sentir chamando e vai se confundir, vai achar que está na sua hora e virá te buscar. Mas quando ela descobrir que você não está na lista, algo pior pode acontecer), pare de achar que está na hora (você não sabe quando é a hora)... Talvez, eu vou ser sincera, somente talvez... um dia essa mágoa vire lembrança e o sorriso se torne real. Seja mais forte, você consegue.

É meio hipócrita eu dizer tudo isso, não é? Afinal, eu não estou mais viva para comprovar tudo isso. Mas eu tenho fé de que um dia mais ninguém use este último recurso.

Natália parou de ler. Se levantou devagar e fui até aos degraus do palco. Ajudei-a a descer e começamos a sair de lá. Todos estavam mudos, todos estavam chocados, alguns choravam compulsivamente. Mas Jane era a atenção, e eu e Natália sabíamos que, quando Jane é a atenção, ninguém vai notar se a gente sair pela porta da frente.

O fim de ano estava aqui, dizendo que acabou. Para nós dois, a despedida do Ensino Médio foi mais amarga do que o da maioria.


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Notas finais do capítulo

Não sei se vocês entenderam a ligação da capa com o que leram, se sim, me contem qual foi *-*Eu tive a ideia de escrever isso quando vi um gif do filme Orações para Bobby. Não vi ao filme e fui pesquisar mais para achar o trecho que me chamou a atenção. Ironicamente, enquanto eu escrevo esta nota, descobri que uma das personagens também se chama Jane. Talvez tenha sido um ato inconsciente, já que li o trecho apenas uma vez e fui escrever. Ou só coincidência mesmo.Segue o trecho que me inspirou:“A todos os Bobbies e Janes por aí...Digo-vos estas palavras, como as diria aos meus preciosos filhos.Por favor, não desistam da vida.Nem de vocês. Vocês são muito especiais para mim.E eu estou a trabalhar para fazer dessa vida um lugar melhor a mais seguro para vocês viverem. Prometam-me que vão continuar a tentar.O Bobby desistiu do amor. Espero que vocês não o façam.Estarão sempre no meu coração.”



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