Safe-Zone escrita por Agatha, Amélia


Capítulo 3
Grimes


Notas iniciais do capítulo

Tentamos atualizar o mais rápido possível, mas a nossa casa virou um hotel e nós somos as empregadas.
Por mais que não seja dessa fic, queremos dizer que estamos super feliz com a nossa indicação ao Emmy Award The Walking Dead. A votação já acabou, mas ainda não temos os resultados. De qualquer forma, nos sentimos muito felizes por estarmos entre as 30 melhores fics de TWD com End of the World.
Agradecemos muito pelos lindos comentários que temos recebido, valeu!
Boa leitura!



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Chocolate era um dos cavalos mais rápidos do Alto do Morro, porém de longe era o mais preguiçoso. Quando decidira marcar suas férias, a jovem tivera a chance de escolher montarias melhores que aquela, entretanto estas poderiam fazer falta na comunidade, e ela acabara por escolher o equino de coloração amarronzada para a viagem. Muito provavelmente a culpa do baixo rendimento dela pertencia a Grimes, que passara dias na estrada com a mesma montaria, parando apenas quando alcançava um posto avançado.

Grace Grimes conhecia muito bem todos os cavalos de que cuidava e conhecia muito mais Chocolate. Tinha pouco mais de onze anos contados pelos outonos passados, quando o animal nascera. A égua era ótima para viagens rápidas e curtas distâncias, com seu galope veloz, mas este não era o caso dessa viagem. A jovem andava distraidamente por postos avançados quase sem rumo, aproveitando a quietude da Zona-Segura. Para tentar compensar o esforço do equino ela lhe fornecia várias maçãs, que custaram quase todo o seu trabalho semanal, e vez ou outra corria pelos campos para satisfazer a vontade dela e evitar que Chocolate ficasse irritadiça.

Não posso culpá-la... Seu coração sempre amolecera pelos animais, às vezes até mais do que pelas pessoas, já que eles costumavam ser mais sinceros. Bateu com os calcanhares na lateral da égua com os estribos, um pouco mais forte do que costumava fazer, e ela entendeu o sinal. Depois de dias viajando, a morena acreditava que deveria estar atrasada para a feira. Grimes deixou que o vento bagunçasse seus cabelos enquanto Chocolate corria, pensando no dia em que batizara o animal. Grace sempre quisera provar um chocolate e nunca havia tido a oportunidade. Para se fazer uma barra era necessário cacau, e diversas plantas eram incompatíveis com o solo e o clima da região, de forma que diversos alimentos e possíveis remédios naturais foram perdidos com o tempo. Tudo que ela sabia sobre chocolate eram informações que sua cunhada fornecia de vez em quando, alimentando mais suas fantasias sobre o sabor daquela comida.

Depois os pensamentos sobre sua família povoaram a mente da criadora de cavalos. Estavam todos separados, dispersos pela Zona-Segura. Sua mãe e Brianna estavam viajando por toda a região cercada, assim como ela, porém com um destino diferente: Alexandria. A respeito do pai, ela desconhecia sua localização exata, pois Rick Grimes não costumava ficar muito tempo no mesmo lugar. Havia saído com o intuito de visitar algum posto avançado, todavia era provável que já tivesse deixado o local. Carl optara por ficar no Alto do Morro ao invés de ir ao Reino. Sua irmã ficara decepcionada, pois era costume participar da grande feira todos os anos. Apesar de tudo, ela sabia que podia contar com ele, principalmente quando precisasse de aulas de tiro ou se sentisse insegura.

Também havia outra irmã, mas eles não falavam muito dela. Grace nunca a conhecera, porém era como se ela estivesse com eles. Estava nos olhares que os pais lhe lançavam algumas vezes, quando não estavam pensando nela, e sim na garota morta. Também era óbvio que Carl pensava nela, especialmente quando estava mal. Tudo que a morena sabia sobre Judith Grimes era que ela morrera antes de completar dois anos de idade por causa de uma doença e que ela era filha da mãe de Carl, não da sua. No fundo, a jovem sabia que não era capaz de sentir falta dela porque já tinha uma irmã.

Não era filha de seus pais, mas sangue era o que menos importava. A proximidade e a cumplicidade que compartilhava com sua mãe não eram nada perto do que ela tinha com sua amiga de cabelos ruivos. Brianna Ford passara quase sua infância inteira na casa dos Grimes dividindo o quarto com ela. Os pais de ambas trabalhavam muito desde sempre, e até mesmo Carl era um adulto desde que ela se lembrava. Dividir tudo que era dela com outra garota não era algo tão ruim quando se tinha alguém com quem brincar. Embora também tivesse brincado muito com Sam e Hesh, as duas eram meninas e nunca gostaram de atirar pedras em passarinhos ou fazer esculturas com lama. Quando pequenas, ambas gostavam de quietude, bonecas, inventar penteados umas nas outras e idealizar o futuro, não de matar monstros imaginários com varas de madeira. Os meninos sempre gostaram de ação, aventura e de fugir da realidade na maioria das vezes, Brianna não.

Crescendo juntas, seus pensamentos eram parecidos e a compreensão entre elas era muito grande, por mais que vez ou outra houvesse alguma discórdia. O melhor de tudo na relação delas era que o tempo não as afastara e, mesmo que cada uma tivesse ido para um canto, ainda eram capazes de compartilhar segredos. Por tudo isso, Grace só conseguia pensar em Brianna como sua irmãzinha. As duas se amavam como irmãs, embora tivessem sido geradas por pais diferentes.

Grimes soube que estava chegando quando a estrada de terra deu lugar a uma trilha negra. Asfalto era o nome que davam àquele tipo de chão, embora ele não fosse tão comum. Havia uma ponte que passava por cima do rio principal da Zona-Segura, indo até o interior da comunidade, aquele que fornecia água para as plantações do Reino. Ao redor da ponte era possível ver grandes postes ligados por fios. Grace sabia que, no passado, eles tinham sido importantes para a transmissão de energia elétrica, todavia já não serviam para nada. A floresta ao redor tinha tomado conta de tudo, escondendo os esqueletos de antigas construções.  A jovem reconhecia facilmente as coisas que pertenciam ao antigo mundo, que povoavam o novo como uma lembrança constante para os mais velhos e não significavam nada para os mais novos, apesar de não conseguir compreendê-lo. Para ela, era inconcebível a existência de coisas voadoras chamadas aviões.

Chocolate aumentou o ritmo do galope quando viu os grandiosos portões do Reino. Os do Alto do Morro eram comuns, feitos de madeira, enquanto esses tinham sido construídos com metal. Uma fila imensa nascia deles, repleta de pessoas que, assim como ela, saíram de suas comunidades para comparecer à feira anual. Na entrada, quatro guardas liberavam a passagem gradativamente, revistando os visitantes, recebendo as cargas trazidas e entregando as fichas. Do início ao fim da fila, mensageiros transitavam à procura de pessoas específicas. Grace ficou surpresa ao perceber que era uma dessas.

— Senhorita Grimes – o garoto chamou, do alto de seu cavalo cinza-escuro. Ele tinha olhos castanhos e cabelos volumosos e sem corte da mesma cor que quase alcançavam os ombros. Possuía a pele lisa, exceto por algumas espinhas na testa. O jovem possuía um belo rosto, embora fosse muito comum. Com seus quinze anos, Wirt Banner era novo demais para estar ali, mas estava. Apesar de conhecê-la havia alguns anos, ele usava um tom formal apenas para parecer mais profissional.

— O que você faz aqui, trabalhando como mensageiro?

— Eu não estou trabalhando como mensageiro, não é oficial. Na verdade, eu não estou aqui.

— E desde quando você é um mensageiro informal?

— Desde que esse sistema virou uma bagunça... E quando almas apaixonadas precisam de uma mãozinha, nesse caso – dizendo isso, o garoto enfiou uma mão no bolso do casaco e tirou de dentro um gorro negro. O gorro dele.— Seu namorado parecia meio desesperado para entregar isso, então acho que valeu a pena o esforço. Garanto que um mensageiro comum demoraria mais.

— Obrigada.

— Alguma ideia do que isso significa?

— Sim.

— Então... Eu pensei que você fosse me contar, mas... Aproveite o seu gorro – do mesmo jeito que apareceu, Wirt foi embora.

Banner era muito jovem para ter um ofício, nem sequer havia iniciado seu serviço obrigatório como Salvador. Talvez não fosse necessário, visto que o garoto crescera na Fortaleza, entretanto não costumavam abrir esse tipo de exceção. Por mais que lutasse para ser um adulto e conviver entre eles, não passava de uma criança que sabia lidar com suas responsabilidades, mas mesmo assim estava sempre à procura de diversão, e isso o aproximava de Sam. Era algo meio absurdo devido à diferença de idade dos dois e à seletividade de Dixon para fazer amigos, contudo os pais deles eram muito próximos e a amizade surgira naturalmente. Assim, o filho de Malcom e Rose se tornara companhia inseparável do filho de Daryl e Gabriela.

Grace já sabia o que aquele presente significava. Quando ela saíra em missão para Washington, um ano atrás, David lhe dera seu gorro para dar sorte, brincando que faria isso novamente caso ele fosse para a antiga capital, um dia. Hesh está em D.C., a jovem pensou sem saber se ficava orgulhosa ou preocupada. Apenas os melhores patrulheiros eram escolhidos para ir a Washington, exatamente porque era uma missão de risco. Tudo correra bem na vez dela, todavia era comum que nem todos voltassem para casa vivos.

Grimes sabia que não devia temer por ele, mas era inevitável. David era um bom patrulheiro, bom o suficiente para sobreviver a D.C., porém outros homens bons já tinham perecido. Enquanto a fila andava lentamente, ela se viu pensando em Hesh Rhee e na forma como as coisas tinham acontecido sem que os dois percebessem. O que a jovem mais gostava no relacionamento deles era o fato de nunca terem se importado com o futuro. Parecia que as vidas deles estavam seguindo para caminhos completamente diferentes, no entanto era como se nada tivesse mudado. Eles continuavam juntos e permaneceriam juntos mesmo que nunca mais se vissem, por mais assustadora que a perspectiva fosse. Os dois confiavam um no outro e sabiam que um dia se encontrariam novamente. O único problema, por menor que fosse, era que esse namoro parecia soar meio estranho para os pais deles.

Pensar em David sempre a fazia sorrir, então ela preferiu ignorar as sensações estranhas que essa noticia trazia e continuou o seu caminho na direção do portão principal. Finalmente sua vez havia chegado, então ela saltou da sela e soltou o pesado saco de frutas da lateral da égua. Aquilo era o resultado de uma semana de trabalho no estábulo do Alto do Morro, junto com outro saco de maçãs menor que a jovem usara para alimentar Chocolate. O Reino cobrava a entrada da festa em alimentos, que eram usados para produzir o que seria distribuído nas barracas da feira. Dessa forma, a comunidade não gastava muito na realização do evento e ainda ficaria com o que sobrasse.

— Alguma arma? – o homem que estava na porta perguntou da mesma forma que deveria ter feito dezenas de vezes antes.

Grace trazia uma faca consigo, apenas por precaução. A partir do momento em que se tornara uma garota grande o suficiente para segurar uma arma, o pai lhe ensinara a nunca andar desarmada. De qualquer forma, o Reino proibia armas em sua festa, por isso todas eram confiscadas na entrada. A morena assentiu, abriu o casaco e retirou a faca de dentro do bolso interno. Esse casaco era de sua mãe, um dos poucos que ela tinha do mundo antigo. Ao contrário das novas roupas, feitas de lã, algodão e couro, essa era jeans. Era um casaco antigo e gasto pelo uso, porém continuava sendo confortável e evitava que ela sentisse frio.

— Aproveite a festa – uma guarda falou enquanto entregava as fichas. As primeiras que a jovem usara foram apenas lascas de árvore, que evoluíram com o tempo até se tornarem quadrados de madeira bem talhados e adornados com o selo real de Ezekiel, que consistia na cabeça de um tigre com uma adaga na boca e a palavra Reino logo acima do animal. Cada pessoa que entrava na comunidade para a festa recebia cinco fichas, que poderiam ser gastas em comida, bebida ou jogos. Essa ideia surgira para limitar o custo da feira, impedindo o desastre da primeira vez. Dizia-se que, quando a festa da colheita surgira, não havia fichas e, como resultado, toda a comida tinha acabado no segundo dia.

Grace agradeceu com um sorriso e instou Chocolate a retomar a galope enquanto colocava o gorro de Hesh na cabeça. Seguiu a ponte até o final, onde o asfalto dava lugar a uma grama marrom e pisoteada por pés humanos e patas de cavalos. Logo em seguida ela levou a égua até o estábulo e a prendeu junto com outras montarias. Depois de alguns metros, começaram a surgir pessoas, várias delas, e mais adiante se iniciavam as tendas. Grimes visitara a feira anual do Reino pela primeira vez aos sete anos e, desde quando ela lembrava, as barracas eram feitas da mesma lona. Como resultado, elas consistiam em panos velhos, desbotados e rasgados em alguns pontos, sem contar que algumas delas cheiravam a mofo devido ao tempo que ficaram guardadas. Apesar disso, cada uma delas tinha sua fila, cada uma maior que a outra. A mais disputada era uma com listras vermelhas e algo que um dia deveria ter sido branco: aquela onde eram servidas as cervejas.

Ao fundo ficava a verdadeira comunidade. Muitos ainda moravam na espaçosa escola que fora a primeira base do Reino. Ao longo dos anos, os limites e muros foram se expandindo devido ao rápido crescimento vegetativo e à necessidade de novas terras para o cultivo, e assim o Reino acabara se tornando a maior e mais populosa comunidade entre todas as outras. A fachada do edifício, apesar de antiga era muito bonita e diferente de tudo que Grimes já vira. As antigas construções sempre a fascinaram por serem mais sólidas, desenvolvidas e até mais belas do que as construções feitas nos últimos anos exclusivamente para o conforto dos moradores. Enquanto as novas eram feitas de madeira, pedras e materiais de construção velhos, as antigas eram constituídas por cimento, tijolos, concreto, vigas de metal e muito mais.

Caminhando despreocupadamente pelos corredores de barracas, a jovem observava os alimentos que eram servidos. A barraca com listras roxas e beges servia deliciosas tortas de diversas frutas, a verde distribuía água e a vermelha, sucos. Também havia as barracas de churrasco, pão, caldo, bolo e muito mais. A parte de jogos incluía boliche, tiro ao alvo, disputas de cartas, arco e flecha, entre outros. Passou algum tempo até que a criadora de cavalos notasse que o local estava mais vazio do que costumava ficar. Grace lembrava que, nas outras vezes, havia tanta gente que ficava difícil caminhar sem esbarrar em alguém. Dessa vez, entretanto, uma pessoa seria capaz de correr tranquilamente sem se preocupar com o espaço. Talvez eu tenha chegado cedo demais.

Grimes não sabia se comia ou jogava algo. A festa não tinha tanta graça como tivera na sua infância. Ela se lembrava de quando era apenas uma criança e sua maior felicidade na feira era ganhar um prêmio na barraca de boliche. De qualquer forma, a jovem não estava com fome, por isso resolveu ir até a barraca de tiro ao alvo.

A morena podia escolher entre usar bolas, dardos ou arco e flecha. O último era, sem sobra de dúvida, uma perda de tempo. Poucas pessoas na Zona-Segura eram capazes de manejar essa arma, e apenas um décimo delas eram boas de verdade. Wirt era uma dessas. Embora o garoto não gostasse muito, era inegável que havia se tornado um excelente arqueiro. Banner culpava sua mãe por isso. Ele nunca gostara de praticar com o arco, tinha feito isso apenas por insistência dela.

Grace escolheu os dardos, com direito a três tentativas. A jovem acertou o alvo na segunda vez e foi embora, levando seu prêmio no bolso. Depois disso, ela se concentrou em andar pela feira procurando por algum conhecido. A tarefa teve êxito em alguns minutos, quando a criadora de cavalos avistou um homem familiar ao lado da barraca de tortas salgadas, escorado em um poste. Grata por isso, a morena seguiu até ele.

— Grace Grimes! – a morena fez uma careta ao ouvir isso. Não que ela detestasse seu nome ou o sobrenome, longe disso. A pronúncia dos dois juntos era o que a incomodava, a forma com que as primeiras sílabas se assemelhavam. – Você ainda cheira a cavalos.

— Oi, Ezra. O que você faz aqui?

— Estou de férias, assim como você. Braços direitos também merecem um descanso – a voz do jovem era naturalmente alta e vibrante, o que poderia torná-lo mais caloroso ou mais ameaçador, dependendo do momento. Grace gostava daquilo, embora não gostasse quando ele zombava seu nome.

Ezra não tinha sobrenome, assim como a maioria dos órfãos da Fortaleza. O homem possuía cabelos castanhos da mesma cor dos dela, belos olhos verdes salpicados de amarelo, lábios finos, uma testa larga e barba por fazer. Apesar de ter apenas vinte e três anos, ele era o braço direito de Malcom, o que o colocava entre os homens mais poderosos de toda a Zona-Segura. Ezra havia conquistado esse posto por vários motivos: ele conhecia os Salvadores tão bem quanto o próprio líder, era bom estrategista e tivera ótimos resultados quando servira como recruta, além de ter apresentado as características necessárias para liderar. O principal era que o jovem conhecia o apocalipse, tinha sido um sobrevivente antes da guerra, crescendo entre armas e mordedores. Apesar de quase não existirem mais errantes, seu espírito de sobrevivência permanecia enquanto o de muito havia morrido.

Na Fortaleza, corriam boatos acerca da paternidade dele. Nada era dito na presença de Ezra, mas falavam muito e ainda mais pelas costas do jovem. Era de conhecimento geral que ele era filho de uma das “esposas” de Negan, que havia morrido ao dá-lo à luz. A mãe havia atribuído a paternidade a um homem que negava isso enfaticamente, de forma que o garoto nascera sem pai. Havia quem dissesse que Ezra era, na verdade, filho de Negan, apesar de muitos contestarem isso, inclusive o próprio Ezra. Grace não acreditava nisso e achava uma brincadeira de mau gosto. Apesar disso, para ela não fazia a diferença. Ser filho de Negan não fazia dele uma pessoa pior, assim como ser filha de Rick não fazia dela uma pessoa melhor.

— Algum plano em mente? – Ezra perguntou casualmente.

— Não, só estou olhando.

— Nós também. Na verdade, os meninos foram jogar cartas e me abandonaram aqui – o braço direito de Malcom andava sempre rodeado por um pequeno grupo de rapazes e diziam as más línguas que cada um era pior que o outro. Ele sorriu e fez menção de sair, porém Grace o interrompeu.

— Ei, espera. Você sabe alguma coisa da missão de Washington?

— Nada demais, só a patrulha de rotina. O velho Malcom não aceita que aquela cidade é um cemitério. Mas dessa vez ele quer ir além e checar o litoral. Seu namorado estava animado.

— Eu posso imaginar. Obrigada – ela se despediu e deixou que ele fosse, retomando sua caminhada pelo Reino.

As filas finalmente começaram a aparecer nas barracas de alimentos, e Grace decidiu se unir a elas. Não sabia dizer ao certo, mas não estava tão animada quanto das vezes anteriores e não era por conta do céu mais cinzento denunciando o início do inverno, e sim pela aura que pairava sobre toda a comunidade. De qualquer forma, ela optou por pegar um churrasco, já que isso provavelmente seria seu almoço e talvez até mesmo o jantar. Assim que terminou de comer, a morena escutou uma voz familiar.

— Com licença – o senhor pediu passando entre as centenas de pessoas. Andando calmamente por entre as pessoas um tanto apressadas, Rick Grimes parecia se destoar da multidão, contudo Grace sempre o enxergara dessa forma. Com algo próximo de sessenta anos, ele tinha cabelos cinzentos e bem cortados se tornando brancos, uma barba curta e bem cuidada, algumas rugas pelo rosto e um andar lento, entretanto os anos não tinham roubado seu porte ereto de dignidade. Seus olhos azuis transmitiam uma força que a filha admirava muito, enquanto a forma de falar era tudo que se esperava de um líder do Alto do Morro.

— Papai!

— Oi, filha – Rick a abraçou, beijando sua testa.

— Também de férias?

— Não, viagem de negócios – Grace não deveria ter ficado surpresa. Com o trabalho que tinha, Grimes passava pouco tempo em casa e a filha não se lembrava de tê-lo visto de férias em algum momento. Ele era um homem muito dedicado à sua comunidade, isso ninguém podia contestar.

Rick segurava um pêssego em uma mão e a bengala na outra. Grace gostava da bengala porque fazia seu pai parecer mais senhorial apesar do andar lento. O homem ferira a perna direita no fim da guerra, de acordo com o que a jovem sabia, e desde então mancava penosamente. Carl havia feito a bengala para ele havia muitos anos, quando começara a se tornar um ferreiro, toda trabalhada em metal. O cabo era em forma de um revólver cheio de detalhes, igual ao que Grimes possuía e guardava como relíquia. Dentro desse revólver havia uma faca escondida, que ele tomava o cuidado de deixar sempre bem afiada. Foi essa faca que ele usou para partir seu pêssego casualmente, ignorando o fato de que armas de qualquer tipo eram proibidas na festa do Reino.

— O que foi? Quer? – ele ofereceu um pedaço da fruta, parecendo se divertir com o olhar assustado da filha. Grace não deveria estar surpresa mais uma vez, Rick Grimes nunca andava desarmado. – Pensei que você só não gostasse de uvas... Você amava pêssego.

— Ezekiel não permite objetos cortantes na feira.

— Isso? É só por precaução, querida, mas ninguém precisa saber – o homem limpou a faca na blusa e a escondeu novamente com um sorriso vitorioso nos lábios. Ela sabia que o pai nunca abaixaria a guarda. Era como se a ideia de um lugar cheio de pessoas desarmadas vivendo pacificamente fosse um absurdo para ele.

— Você não acha que essa festa está muito vazia? – Grace precisava saber se não era a única a pensar dessa forma. Não podia ser mera impressão.

— É o primeiro dia e os casamentos ainda não aconteceram. Não há casamentos como os do Reino.

— Não é isso... Sei lá, parece que esse lugar ficou estranho de repente, os organizadores não estão muito animados.

— Eu também não estaria na situação deles. A colheita não foi tão boa assim esse ano, houve uma queda de dois quintos em relação ao ano passado. Acham que o solo está se tornando improdutivo. Além disso, Ezekiel quer deixar o trono. Não que os cidadãos estejam contentes com o governo dele nos últimos tempos, mas mudanças na liderança sempre geram instabilidade política.

— Por isso você veio.

— Sim. Ezekiel precisa escolher um sucessor e quer que eu o ajude.

Grace não se lembrava da última vez em que vira o Rei Ezekiel. Certamente fora havia muitos anos, quando ela ainda era uma criança. Nos primeiros anos pós-guerra, os líderes das quatro comunidades fizeram reuniões frequentes, algumas vezes na casa de Rick. Antigamente sua mãe fora uma participante assídua da política da Zona-Segura, até começar a se afastar gradativamente para dedicar seu tempo aos aprendizes. Ezekiel era um homem grande, negro e com longos dreads brancos. Na infância, a garota julgara que ele falava de um jeito estranho, embora na adolescência tivesse aprendido que a fala dele não era nada além de polida. Apesar disso, o tempo não mudara a impressão de que o Rei era uma pessoa diferente das outras, assim como todos os cidadãos do Reino. Grace ainda se lembrava da primeira vez que se viram, quando o pai a levara para conhecer os outros líderes. Ezekiel havia dito que ela era parecida com a mãe e apertado suas bochechas, o que fora o suficiente para deixá-la em parte assustada com ele.

— Rick Grimes e sua adorável filha – um homem saudou enquanto se aproximava, Sua Graça em pessoa. A jovem demorou algum tempo para reconhecê-lo, apesar dos trajes reais e do inseparável bastão de madeira que terminava em uma cabeça de tigre. No lugar dos dreads, os cabelos brancos de Ezekiel estavam bastante curtos, ao contrário da barba espessa que chegava ao peito. Além disso, ele parecia menor do que antes. Ele está velho demais.— Fico feliz que tenham vindo. Entrem comigo para que possamos conversar melhor.

A morena se sentiu confusa com o convite. Sou apenas uma criadora de cavalos, pensou em dizer. Grace não via motivos para que o Rei quisesse incluí-la nos assuntos políticos da sua comunidade, aquilo não fazia sentido. Apesar disso, ela se limitou a seguir os dois enquanto se dirigiam ao enorme prédio velho e cinzento que um dia fora uma escola, uma garota de vinte e um anos ao lado de duas lendas. Ao lado da entrada havia um longo mastro de madeira com um pano esfarrapado no topo, azul, branco e vermelho, adornado com listras e estrelas. A bandeira dos Estados Unidos da América. Carl havia dito aquilo uma vez, quando ela se deparara com a mesma imagem em um livro antigo. A jovem não entendia nada de como as coisas funcionaram antes da chegada dos mortos-vivos, todavia, pelo que ela tinha entendido o mundo um dia fora dividido em enormes comunidades chamadas nações.

Os três seguiram por um enorme corredor até uma sala ampla e arejada, o local onde Ezekiel fazia suas reuniões. Havia uma mesa de madeira retangular ao centro, com uma cadeira giratória e almofadada atrás e quatro cadeiras de madeira na frente. Uma porta dupla de vidro levava à varanda, um espaço aberto que tinha vista para todo o Reino.

— Você me chamou porque estava em um impasse. Podíamos começar com uma apresentação dos candidatos – seu pai disse enquanto eles se sentavam.

— Certo, certo. Pensei que seria melhor se eu falasse deles antes que você os conheça. Eu tinha uma lista bem extensa, no começo, mas consegui reduzir os pretendentes a duas pessoas. São os cidadãos do Reino mais aptos ao governo – o homem fez uma pausa que fez Grace se sentir mais desconfortável. Aquele não era o seu lugar, ela sabia disso, e mesmo assim estava lá. – Stella é a minha intendente, cuida dos meus assuntos quando estou fora e me dá conselhos quando preciso. Ela é parcial como juíza e muito inteligente. Tive muitos intendentes incompetentes, mas nunca tive problemas com ela.

— Mas... – Rick interrompeu.

— Às vezes ela parece ser a escolha ideal para me suceder, mas não sei se meu povo a seguiria. A mulher não tem carisma nenhum, é muito rígida e não tem amigos. Ela pode governar bem, mas as pessoas podem não gostar das coisas que ela vai fazer.

— De qualquer forma, nenhum substituto será o cara que tem o tigre – havia lendas por toda a Zona-Segura. Dizia-se que Ezekiel tivera um tigre que tinha salvado a sua vida no começo do apocalipse, isso explicaria a fixação que o Rei tinha pela imagem daquele felino. Alguns chegavam a acreditar que ele ainda tinha o tigre trancado em algum porão secreto ou algo do tipo. Também havia quem sussurrasse que Negan estava vivo e esperando o momento da revanche, enquanto outros diziam que Jesus era de fato a figura bíblica que lhe dera a alcunha, simplesmente por ter ajudado a vencer a guerra com um discurso. Não que seu pai acreditasse no tigre, a própria Grace não acreditava, entretanto deveria haver um fundo de verdade naquilo já que Sua Graça havia sobrevivido sozinho por um longo tempo antes de chegar ao lugar que conheciam como Reino.

— Sabe, foi ela quem me aconselhou a reduzir as exportações esse ano. Sei que vocês estavam precisando disso, mas eu não posso deixar meu povo passar fome apenas para ajudar o seu.

— Entendo – pela expressão de Grimes, ele parecia mais descontente do que compreensivo. Com a queimada que ocorrera nas plantações do Alto do Morro e sem a ajuda do Reino, era certo que a comunidade faria racionamento nesse ano. As pessoas não costumavam receber bem essa notícia.

— Não é só isso. Você sabe, todos pensam que ela é dura demais. Stella tentou me convencer a cancelar a feira desse ano por causa da má colheita. Talvez ela estivesse certa, nossos estoques não estão bons, entretanto... – a escolha das palavras e a pausa dramática eram sua marca registrada, e ele costumava abusar muito delas. – Fomos os pioneiros nas festividades, todas as comunidades vêm participar e arrisco a dizer que o festival é o momento mais esperado do ano depois das colheitas! O povo adora as festas, como podemos continuar sem elas?

— Se você renunciar por Stella é certo que ela acabará com o festival?

— Praticamente.

— Isso nos leva ao segundo candidato.

— Muitos dizem que Ralph é a melhor escolha. Ele tem contato com as pessoas, já que trabalha na administração, e se dá bem com todos. Mas o que ele entende de política? Ralph conhece o Reino, conhece as pessoas, mas estou quase certo de que não sabe governar.

— Isso vem com o tempo, você sabe bem.

O que eu entendo de política? Apesar da dúvida, ela sabia o que teria feito no lugar de Ezekiel. Grace nomearia Stella. Podiam gostar de Ralph, porém nem sempre as pessoas precisavam do que gostavam e raramente gostavam do que precisavam. Por algum motivo, a jovem imaginava que o pai estava pensando o mesmo e sabia que ele não diria isso. Se conhecia bem o pai, sabia que ele tentaria induzir o Rei à escolha correta. Ele quer Ralph, mas sabe que precisa de Stella.

— Com licença – a criadora de cavalos se levantou da cadeira, desejando mais que tudo se afastar da discussão.

— Eu pensei que... – Grimes sabia muito bem o que Ezekiel tinha pensado.

— Não, eu só estava acompanhando meu pai.

O homem pareceu decepcionado com a resposta. O que eu entendo de política? Grace conhecia bem a política da Zona-Segura. As quatro comunidades possuíam um pequeno código de leis, mas tinham certa liberdade para algumas decisões. Os líderes podiam intermediar problemas internos da maneira que quisessem e investir em determinado produto, por exemplo, mas as regras eram as mesmas em todos os lugares quando se tratava de roubo, deserção ou recusa ao trabalho, entre outros.

As comunidades também tinham formas de governo diferentes. O Alto do Morro fora presidido inicialmente por Gregory, um homem fraco que havia morrido uma década atrás. Antes disso, porém, ele tinha se posicionado ao lado de Negan na Guerra Total, enquanto Rick e Jesus tinham liderado a luta contra os Salvadores. Um ano após o término do conflito, fora realizada uma eleição na qual Grimes e Monroe tinham sido escolhidos como governantes. Jesus costumava cuidar dos assuntos internos da comunidade, dando audiências aos cidadãos e checando as produções, além de treinar pessoas para longas jornadas em busca de sobreviventes, enquanto Rick era responsável pela política externa, o que incluía viagens constantes às outras comunidades.

Alexandria tinha sido liderada por Douglas Monroe desde o início do apocalipse até a sua morte, no ano 21 D.A. Ele fora substituído por seu filho, Spencer, e por Tom Irons. Um ano e meio atrás, a população havia exigido uma nova votação para incluir Caroline Ludwig no poder, estabelecendo a tríade de Alexandria. Monroe cuidava dos assuntos externos da Zona-Segura, assim como Rick. Tom, por sua vez, tinha seu trabalho voltado para tudo que era produzido dentro da comunidade. Ao entrar, Carol havia sido responsabilizada pela vida cotidiana, escutando as reclamações do povo, apesar de sempre se intrometer na área de Irons.

Havia o Reino que, diferente das outras comunidades, era uma monarquia controlada por Ezekiel. Enquanto os outros optaram por dividir o poder, o Rei havia permanecido como soberano em seu território. Com o tempo, ele tinha se tornado cada vez mais difícil de lidar, e as reclamações cresceram nos últimos anos. Segundo relatos de moradores insatisfeitos, Sua Graça começara a tomar medidas um tanto excêntricas. A saída de Ezekiel tinha chegado em boa hora, talvez até um pouco atrasada.

A Fortaleza era um caso à parte. Antigamente chamada de Santuário, a comunidade fora inicialmente a base dos Salvadores, um grupo de pessoas cruéis que usaram a força para subordinar as demais comunidades. Depois da morte de Negan e do fim da Guerra Total, Malcom Banner havia assumido como novo líder e, como primeira medida, mudara o nome do local para Fortaleza. Embora fosse o único líder, Malcom tinha Ezra como seu braço direito e um grupo de sete pessoas com quem se reunia frequentemente para discutir a situação da comunidade.

Não que Grace não gostasse de política. Ela achava interessante o modo como o mundo podia ser mudado para o bem ou para o mal dependendo das decisões de determinadas pessoas. Por outro lado, a jovem conhecia o meio político bem o suficiente para saber que era um caminho desgastante e querer manter distância. Grimes havia crescido vendo seus pais se doando pela Zona-Segura. Tiveram longas reuniões, viagens de última hora e problemas infinitos para resolver. Eles nunca se queixaram, mas a filha sabia que às vezes sentiam a falta de uma vida pessoal. A criadora de cavalos não queria aquilo para ela. Ao mesmo tempo, tinha algo dentro dela que parecia sempre levá-la por esse caminho. Havia em Grace uma vontade de mudar as coisas para melhor, assim como o pai fizera.

Grimes voltou seu olhar para baixo, onde o resto da comunidade corria. A feira continuava um pouco mais movimentada que antes, porém não chegava a ser algo tão grande como fora nos outros anos. A jovem queria ficar otimista, dizendo a si mesma que nos próximos dias isso melhoraria, contudo não era verdade. Pelo que ouvira da conversa dos dois, o Reino não estava bem de provisões. Enquanto a festa acontecia, a maioria dos cidadãos da comunidade estava trabalhando incessantemente por ordem do Rei. Com a proximidade do inverno, nenhum tempo poderia ser desperdiçado.

A essa altura, ela já não podia ouvir a conversa que ocorria na sala ao lado. O barulho do lado de fora se intensificava conforme o Sol descia no horizonte. Talvez a chegada da noite e das fogueiras melhorasse as coisas. Grace torcia para que o pai estivesse certo quando dissera que os casamentos animariam a festa. Todos os anos casais se juntavam no Reino para fazer uma cerimônia conjunta, não podia ser diferente dessa vez. De repente Ezekiel apareceu ao seu lado e, com um tom casual, apoiou os braços na grade da varanda.

— Eu tenho ótimas opções aqui no Reino – ele começou. Por favor, não peça a minha ajuda para tomar essa decisão. Grace sabia qual era a escolha certa, todavia sentia que não era capaz de dizer para ele. – Mas tenho observado muito o que vem acontecendo na Fortaleza. Eu preciso de uma pessoa jovem para o cargo. Stella e Ralph já estão na faixa dos quarenta, cinquenta anos, e logo precisarão de sucessores. Quero alguém que possa governar por muito tempo – naquele instante, a jovem percebeu que o Rei estava pensando em Ezra. – Pensei bastante e concluí que você é a melhor pessoa para liderar o Reino – dessa vez, a pausa que o homem fez foi bem-vinda. As palavras dele foram mais que inesperadas, foram assustadoras. O mundo se desmanchou ao redor de Grace enquanto ela tentava entender se tinha escutado direito. – Então, o que me diz? Você será minha rainha?


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Notas finais do capítulo

Os novos personagens já estão no Tumblr, assim como uma arte que fizemos do capítulo (com spoiler!). Passem lá e deem uma olhada.
Beijos e até mais! Não se esqueçam de comentar!



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