Perfeita escrita por Laura H


Capítulo 1
I – Único




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A qualquer um que pusesse os olhos em Ririchiyo Shirakiin naquela tarde, a garota lhes pareceria um tanto distraída. Carregava, em uma de suas mãos, um copo de café; na outra, levava um livro de aparência pesada, e caminhava com determinação pelos corredores, como se já tivesse em mente um destino bem definido.

– Chiyo-chan? – a voz, doce e feminina, soou, despertando-a de seu transe; vinha do alto de uma das escadarias que levava ao segundo andar, para as salas onde ocorriam as aulas. Ririchiyo ergueu os olhos claros, deparando-se com sua colega de teatro, Karuta Roromiya; esta, como na maioria das vezes em que se encontravam, tinha, entre seus dedos, um palito de sorvete (do qual ela, aparentemente, já havia desfrutado). – O que você está fazendo aqui hoje?

Ririchiyo levou o copo de café aos lábios, sorvendo um gole da bebida forte para se recuperar da surpresa; não esperava ver a amiga ali – ao menos não naquele dia.

– Não interessa. – lhe respondeu, o tom seco e frio tomando conta de sua voz; e, embora Roromiya mantivesse a mesma expressão tranquila, Ririchiyo não levou mais do que dois segundos para se arrepender. – Quer dizer... vim tomar aulas extras. – inspirou profundamente; a amiga pendeu a cabeça para o lado, curiosa. – Tenho um papel principal no teatro, então... – deu de ombros, constrangida.

E, antes que pudesse sequer processar os fatos, tinha os braços de Karuta ao redor de seu pescoço.

– Parabéns, Chiyo-chan! Você conseguiu o papel de protagonista! Estou orgulhosa de você! – a garota exclamou, seus cabelos claros anuviando o campo de visão de Ririchiyo; esta última, lutando para equilibrar em suas mãos tanto o livro quanto o copo de café pela metade, não pôde dizer nada além de:

– Como você chegou aqui embaixo tão rápido?!


A aula extra de teatro era, no final das contas, infinitamente mais exagerada do que Ririchiyo imaginara inicialmente. Trinta minutos haviam se passado desde que ela deixara Karuta e seu orgulho ao pé da escadaria e se dirigido a seu destino, o auditório...

Que, exceto por ela, seu professor e outro estudante das famigeradas artes cênicas, estava completamente vazio.

Desde que ela fizera sua matrícula na Escola de Drama Ayakashi, cinco anos antes, o auditório era o local onde se faziam as apresentações; ali, as danças e peças de teatro eram finalmente apresentadas ao público – ou, ao menos, a outros estudantes. Os ensaios ocorriam um andar acima, em salas praticamente vazias que, embora amplas, não detinham sequer um terço do tamanho do imponente auditório.

Estar ali, portanto, com o simples propósito de ensaiar para um papel – ainda que fosse um papel principal –, não parecia fazer muito sentido. Ela sabia, entretanto, que confrontar Natsume-san, seu professor, estava fora de questão; o instrutor de teatro era uma das poucas pessoas com as quais Ririchiyo simplesmente não conseguia lidar.

Então, ali estava ela, o queixo apoiado em uma das mãos e o olhar vagando pelo ambiente escuro enquanto Natsume fazia seu discurso apaixonado. Ela estivera presente a muitas aulas do instrutor para saber que os primeiros quarenta minutos resumiam-se a, quase sempre, diversas informações desnecessárias, e, por tal razão – e porque, além do garoto louro a seu lado, não havia mais ninguém a quem ouvi-lo –, ela não via necessidade alguma de prestar atenção.

Até, é claro, ter seu nome mencionado em meio às palavras do professor.

– Chiyo-chan, é claro, será a nossa Julianne... – ele gesticulou na direção dela, um sorriso de proporções inimagináveis rasgando seu rosto. Ela franziu o cenho, parecendo extremamente confusa.

– Espere, Natsume-san, uh... – interrompeu; ele a encarou, ainda ostentando seu sorriso impecável. – Julianne? Pensei que a peça escolhida para as apresentações de final de ano fosse Romeu e Julieta. – completou, tombando a cabeça para o lado.

A expressão do instrutor pareceu despencar diante de suas palavras.

– Chiyo-chan... Você não ouviu sequer uma palavra do que eu disse? – ele interrogou, seu lábio inferior tremendo; parecia, sinceramente, à beira das lágrimas. Ririchiyo entreabriu os lábios, procurando algo para dizer; estava indecisa entre elogiar o professor por suas perfeitas habilidades de atuação ou estapeá-lo por ser tão dramático.

– Não se preocupe, professor, eu posso explicar para ela – o garoto ao lado dela se manifestou pela primeira vez, fazendo com que um breve som de surpresa escapasse por entre os lábios da garota. Ele parecia realmente disposto a ajudá-la; para falar a verdade, ela não se lembrava de jamais ter conhecido alguém tão prestativo na Ayakashi.

– Oh, Sou-tan, eu ficaria muito agradecido! – o instrutor assentiu veementemente, pousando a mão esquerda em sua testa de forma teatralmente dramática. Ririchiyo sequer teve tempo de dizer algo antes que seu colega agarrasse seu pulso delicadamente, atraindo a atenção dela para si.

– Eh, eu...

– Nossa nova trama consiste em uma releitura modernizada de Romeu e Julieta – ele começou, cortando suas palavras. – O casal principal se encontra em uma rave de atores amadores na cidade e se apaixona à primeira vista...

– Ao primeiro beijo! – Natsume corrigiu, usando o tom de voz de um pai orgulhoso. Ririchiyo praticamente saltou de sua cadeira; acostumara-se à voz tranquila de seu colega, e a exclamação repentina do instrutor a assustara. Além disso, ainda estava ligeiramente perdida; não tinha certeza se existia algo como uma rave de atores amadores.

–... Mas, depois de alguns dias e muitas mensagens de texto, eles descobrem que trabalham para companhias de teatro rivais... – o louro voltou a falar, como se nada tivesse acontecido, apenas para ser novamente interrompido segundos depois:

–... e o resto da trama consiste em seu romance proibido, que ambos mantém em segredo dos diretores das companhias! – Natsume concluiu, os olhos brilhantes com expectativa voltados para Ririchiyo como se esperassem por uma reação extremamente positiva.

Após alguns segundos, entretanto, tudo o que ela fez foi dizer:

– E por que eles não poderiam contar aos chefes que estão juntos?! São diretores de uma companhia de teatro, não ditadores! – pousou o dedo indicador no canto dos lábios, pensativa. – Acho que seria melhor se atuássemos com o roteiro original. – opinou, finalmente, encarando o instrutor nos olhos.

Ela nunca o vira com uma expressão mais chocada.

– Oh! Sou-tan! Você ouviu isso? Passei horas planejando nosso novo roteiro, e ela prefere aquela peça clichê! – choramingou, como se a estudante houvesse cometido um crime horrível. – Ela está nos rejeitando, Sou-tan! Ela não quer ser a nossa Julianne!

Ririchiyo arregalou os olhos, horrorizada, ao notar lágrimas reais brotando no canto dos olhos do professor. Ela podia não ter fraquezas demais, mas as tinha em bom número, e uma delas eram as lágrimas alheias.

– Não! Natsume-san, eu não disse que não quero interpretar a Julianne... é claro que eu quero, eu só estava...

– Ótimo! – o instrutor interrompeu a sua frase; quaisquer traços de lágrimas haviam desaparecido de seu rosto, e ele, agora, ostentava outro de seus enormes sorrisos. Ririchiyo desejou poder dar um tapa em seu próprio rosto; havia momentos em que ela poderia jurar que Natsume era a cria do demônio. – Então, muito bem! Começaremos a ensaiar para o nosso Rudolph e Julianne imediatamente! E, Chiyo-chan, não se esqueça... Você tem de ser perfeita.

E, com essa frase e uma piscadela marota, Zange Natsume deu as costas para seus estudantes.


Qualquer um que tivesse o mínimo vislumbre de Ririchiyo Shirakiin naquela tarde pensaria, com toda a certeza, que a garota estava louca. Embora fosse um dia frio de inverno, a única peça que cobria o corpo da garota era um vestido lilás, sem mangas; estava caracterizada como Julianne, sua personagem para a peça de final de ano – e, naquele momento, estava também atrasada.

Levava as sandálias prateadas debaixo dos braços: seus pés já não suportavam caminhar sobre os saltos altos. Ensaiar para a última peça do ano era, em geral, sua atividade favorita: daquela vez, entretanto, parecia-se mais com uma espécie de tortura.

– Chiyo-chan! – Karuta a chamou do topo da escadaria, como era de costume; tinha em mãos um saco de batatas chip, do qual Ririchiyo adoraria poder roubar uma. Se ao menos não estivesse tão tarde...

– Roromiya-san! – ofegou, parando por um momento ao pé da escada. – Desculpe, não posso conversar muito agora, tenho que ir ao ensaio! Nossa estreia é em uma semana!

Karuta enrolou uma mecha cor-de-rosa em seu dedo indicador, e então lhe deu um sorriso.

– Conversamos mais tarde, então. Amo você, Chiyo-chan!

A outra mal teve tempo de lhe sorrir.

Deu um gole em seu copo de café – pedira um extra-grande daquela vez; não tinha certeza se poderia se manter acordada durante as duas horas e meia de ensaio –, caminhando o mais rápido possível na direção do auditório. Não havia tempo a perder.

Ela precisava ser perfeita.


As constantes questões quanto a estar sentindo frio ou não a estavam frustrando; respondera, nas últimas duas horas, ao menos sete dessas, vindas de diversas pessoas – conhecidas ou não.

Faltava um dia para a estreia, e o ensaio geral era dali a cinco minutos; estava, novamente, atrasada. O sono não a permitira ouvir seu despertador no horário correto, e ter-se atrapalhado com o espartilho do vestido de Julianne não a ajudava muito. Nos últimos minutos, correra tanto, e para tantos lugares, que “frio” não era sequer uma palavra existente em seu vocabulário.

Não havia cafés naquele dia, apenas seu livro – o exemplar de Romeu e Julieta que levara consigo no primeiro ensaio e que, atualmente, a fazia companhia nos momentos em que lamentava não ter sido mais firme no pedido a seu instrutor; após aquele ensaio e a apresentação do dia seguinte, fariam uma pausa de três dias, e ela mal podia conter sua própria ansiedade.

– Chiyo-chan? – a voz doce soou do topo da escadaria, mas, naquele momento, Ririchiyo estava realmente sem tempo. Lançou um breve olhar para Karuta, que a encarava com certa confusão, e, ainda em disparada, gritou-lhe, quase sem fôlego:

– Ensaio... atrasada... desculpe!

Era uma tortura, afinal, mas – ela veria no dia seguinte – os resultados valeriam a pena. Mais tarde, quando se reunisse a todos os outros estudantes de sua classe, os elogios compensariam todas as semanas de sofrimento.

Afinal, Ririchiyo seria perfeita.


Ela não fora perfeita, no final das contas.

O cansaço tomara seu corpo – suportara por um longo tempo, mas, na última cena do último ato, enquanto clamava ao diretor da companhia de Rudolph o quão injusto era que, por sua causa, ela não pudesse ser feliz junto ao amado, simplesmente desfalecera.

Não, não estava doente, repetira – e ainda tinha de repetir – diversas vezes para todos os que a cercavam, preocupados; apenas cansada, dizia, esperando se livrar logo de todos eles. Dormira, diziam, por algumas horas, no sofá do escritório do diretor, mas ainda se sentia como uma boneca de porcelana quebrada. Parecia irreparável.

Por isso, ao ouvir o som da porta deslizante se abrindo, teve vontade de mandar ao inferno quem quer que a houvesse vindo visitá-la – mas ficou contente de não fazê-lo porque, afinal, era Karuta que estava ali.

Sem dizer uma palavra, a garota se sentou ao seu lado, observando-a com sua costumeira tranquilidade. Trouxe Ririchiyo para junto de si, acariciando seus cabelos escuros, os olhos desviando-se de seu rosto para encarar o teto por alguns momentos.

Manteve o silêncio por algum tempo, o que agradou Ririchiyo – suportara tanta pressão e tanto barulho por tanto tempo, que não ouvir som nenhum lhe parecia extremamente agradável. Mas não sentiu nenhuma vontade de reclamar quando, em um tom de voz muito baixo, Karuta lhe confidenciou:

– Chiyo-chan? Acho que você foi perfeita.

Um sorriso nasceu nos lábios da garota. Naquele exato momento – sem sandálias altas, livros pesados e cafés expressos extra-grandes, tendo apenas Roromiya e suas palavras –, era exatamente assim que Ririchiyo se sentia; perfeita.


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