Lapso Paradoxal escrita por Kamihate


Capítulo 21
Capítulo 20 - Peão




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“Desde que eu me conheço por gente, sempre fui um mero lacaio, um peão descartável que todos viam utilidade por tempo limitado, quando eu chegava no limite do prazo da minha validade, era mandado pra lixeira, sem remorsos, pelo contrário, os que se dirigiam até a lata riam euforicamente sentindo prazer em me ver sendo triturado por aquelas máquinas pesadas que amassam reciclagem, eu ao menos, era reciclado, mas como todo produto reciclado, ficava pior a cada uso, a cada riso que penetrava meus ouvidos. Aos 18 anos era um mero garçom em um boteco sujo e com donos arrogantes que atrasavam meu salário por dois meses ou mais, sempre fui de uma família pobre, desde cedo tive que trabalhar para ajudar meus pais com as despesas de casa, morava com meu pai, minha mãe e avó por parte de mãe, meu pai era problemático, ele tinha o temperamento bem fervoroso, não se dava bem em seus trabalhos, acho que isso foi algo que eu herdei, mas ao contrário do meu pai, eu era quieto e calado, obedecia qualquer ordem, e mesmo assim, as pessoas não gostavam de mim, acho que por conta da minha aparência, um baixinho narigudo e gordo, é claro que nenhuma empresa iria querer um funcionário assim, por isso apenas aquelas que contratavam peões me aceitavam, depois daquele boteco, fui para uma fábrica de sacolas plásticas, trabalhava quase 11 horas por dia, tive tendinite várias vezes devido aos movimentos repetitivos que realizava, depois foi em um barbeiro, como auxiliar, eu ganhava menos de 300 reais, mas era o que tinha naquela época, passei por inúmeras experiências, mas todos sempre me dispensavam, uns por não gostarem da minha pessoa, outros, por terem achado alguém melhor, mas não era só comigo, eu via outras pessoas que nem emprego de peão conseguiam, tudo por conta de família, aparência, temperamento, as pessoas eram julgados por isso, o caráter era o de menos, até mesmo a experiência em alguma função, se a pessoa tinha boa aparência e uma família influente, conseguia tudo, e eu estava cansado disso já, mas conformado, pois com quarenta anos nas costas, não tinha mais o que fazer. Eu jogava todos os dias nas loterias, era minha ÚNICA esperança, e digo única porque eu não tinha mais jeito, era um motorista funerário, ganhava R$1200,00 por mês trabalhando todos os dias quando fosse preciso, era melhor do que nada, depois de 40 anos era um dos maiores salários que já ganhei, eu era também, nessa empresa, um mero peão que recebia ordens. Levava corpos para todos os lados, todos os cemitérios, eu tinha que lidar com a morte todos os dias, no começo aquilo me dava arrepios, mas eu precisava de dinheiro, não sentia mais nada quando me imaginava como uma mera máquina, que é o que eu realmente era, um motor forçado a fazer o que não quer, me é estabelecida uma função, eu e tantos outros mundo a fora vivem assim, sem controle próprio, eu seguia o comando para sobreviver apenas, para meu sustento, cheirava à cadáveres, não me importava em encarar aqueles presuntos bem vestidos, todo aquele drama de famílias chorando por alguém que não voltará mais, eu ria de alguns, porque tão tolos? Eles tem que sobreviver nesse mundo, e ainda choram pelos que foram? Quem foi está bem melhor, porque assim como eu, várias pessoas por aí são controlados em um tabuleiro cruel, o jogo, ah, ele não tinha fim até alguém sofrer um ataque cardíaco ou tomar uma bala na cabeça, eu nunca pensei em me matar, era covarde demais pra isso, pensei em entrar pra vida do crime também, mas meu físico me impossibilitava, ou seja, minha única alternativa era aceitar e continuar jogando na loteria e perdendo o dinheiro que eu já não tinha, até que ELE apareceu.

Foi em uma tarde de domingo, eu estava vendo o jogo do Corinthians, felizmente naquele dia estava de folga, recebia uma folga só por mês aos domingos, e o pior é que parece que as pessoas gostavam de morrer no domingo, a maioria deixava pra velar os corpos na segunda só pra faltarem no trabalho, eles inventavam desculpas para a própria conveniência e pra mim isso era certo, foda-se quem morreu, logo seremos nós, temos que aproveitar a vida de peões vagando por aí nos mesmos trilhos, eu era um trem preso àqueles fios elétricos em um trilho que dava voltas em círculos, voltava para aquele mesmo sofá afundado e cheirando a cigarro, quando o Corinthians armou um contra-ataque, ele apareceu atrás de mim, me fazendo cair do sofá e se jogar para trás encarando o mesmo com pavor, a casa era sempre trancada, eu moro sozinho e era impossível alguém entrar, pensei que era algum tipo de entidade demoníaca ou fantasma, eu sempre vivia insultando e rindo dos cadáveres que levava, e como cristão, eu acreditava em vida após a morte, e temia que algum dia, um filho da mãe iria vir pra me assombrar.

— Você quer o que!? – Eu não conseguia olhar para os olhos daquele homem, era um rapaz loiro de cabelos curtos, parecia baixo, trajava uma roupa branca e um relógio dourado em seu pulso, o que estava acontecendo ali? Foi quando ele me disse tudo. Me contou da chave, me contou do desejo que eu poderia ganhar, caso vencesse esse ‘jogo’. Mas que merda, hein? Outro jogo, eu já estava preso na merda de um tabuleiro, ele não entendia que eu não tinha a opção de sair? Era como uma fita encravada no vídeo-game com uma tv que nunca podia ser desligada, eu era forçado a jogar até ir pra debaixo da terra, se eu deixasse meu emprego, eu já era, com quarenta anos, ninguém iria me querer mais, eu fiquei pensando muito, achando que era uma piada, até que ele me demonstrou aquele poder. Droga, aquilo era mesmo real, aquele poder de tirar a vida e controlar um ser humano. Controlar as pessoas não era tão difícil, bastava ter dinheiro e poder, mas fazer isso com uma só seringa, isso já era um grande avanço. Eu podia escolher agora, deixar esse tabuleiro único de lado e me jogar no inferno, de onde eu não tinha mais volta. Tiraria a vida de várias pessoas, arriscaria a minha, e caso eu sobrevivesse e perdesse o jogo, eu não teria mais tabuleiro, seria uma peça jogada no lixo esperando pra tragédia que precede à morte. Alheio a isso tudo, como recusar um convite de controlar as pessoas? Eu sempre, sempre quis isso, mais do que ser rico, mais do que ter um trabalho que eu gostava, eu queria ser o chefe, queria mandar em alguém, ter meus próprios lacaios, se eu pudesse controlar uma pessoa como eu queria, isso já me faria pagar para mim mesmo a penitência de todos esses anos só ouvindo ordens e desaforos. Era minha vez de criar meu exército.

ELE me explicou tudo, como matar, como controlar, tudo que eu precisava saber, e agora, a caçada estava iniciada. Eu não sabia por onde começar, felizmente, aquele maldito criou o chat, e pude saber mais um pouco sobre o que estava acontecendo, visto que ELE não disse muita coisa, não sabíamos o nome do portador da chave, só que ele morava na nossa cidade, não seria tão difícil de descobrir, mas um deles, em busca de emoção, acabou revelando a identidade, Naiara, uma garota que parecia ser presa fácil. Desde quando descobri sobre ela comecei a colocar meus planos em prática, somente um dos portadores não fazia parte do chat criado, e descobrimos mais tarde, que ele havia chegado primeiro até Naiara, mas felizmente, foi morto. Percebi que ela não era uma garota bonitinha somente, mesmo sem nenhum poder, ela tinha vontade de vencer, acho que por isso ELE havia feito tal escolha, que merda, eu estava com medo, por mais que meu poder fosse quase divino, depois de ver fotos daquele cara morto, senti que aquilo não era uma brincadeira, era um jogo de vida ou morte, mas eu tinha meus lacaios, eu finalmente estava no topo, bravejando a hierarquia máxima, os tempos de pregação haviam terminado, eu precisava, antes de tudo, testar esse novo poder, e nada melhor do que começar colocando meu plano em prática, eu não podia deixar que ninguém chegasse na frente, pelo que soube, todos os portadores tem poderes ‘paranormais’, se todos eles tivessem um poder parecido com o meu, duvido muito que a Naiara sobreviveria a mais uma investida, ela havia dado sorte pelo portador ser tão idiota na primeira vez, mas na segunda não teria como, eu precisava ser rápido, comecei a ficar ansioso, peguei a seringa que ganhei e fui até Limeira, na casa da minha mãe. Eu teria que fazer alguma vítima por lá, pegar alguém de Americana seria arriscado, eu poderia ser observado pelos outros portadores e por Naiara, ok que havia a regra de um portador não matar o outro, mas eles poderiam me dedurar, imagino que o maldito do chat poderia passar nossos nomes com fotos para Naiara, isso a deixaria atenta, menos com ele, acho que esse era o plano do maldito, ele sabia sobre cada um de nós. Chegando à Limeira, pensei em ir até o necrotério falar com um antigo amigo meu, Rubens, eu havia trabalhado naquela cidade a anos como motorista da funerária que ficava na frente do necrotério, pensei em testar isso em algum cadáver, enquanto Rubens havia ido ao banheiro em uma das brechas que tive enquanto batia papo com ele, usei a seringa em um dos cadáveres, escolhi um aleatoriamente, voltei a me sentar, e quando fechei meus olhos, podia ver claramente o que o presunto via, o teto do necrotério. Quando abri novamente meus olhos, o cadáver deu um salto para frente, Rubens caiu no chão, ele havia desmaiado de susto, o cadáver era de um homem chamado João, aparentemente um desses marginaizinhos da quebrada, ele havia tomado um tiro de um traficante pelo que Rubens havia me falado, ele não sabia o que estava acontecendo, foi quando pensei no que ELE havia me dito, que eu podia controlar as memórias dessas pessoas, foi então que fechei meus olhos novamente e tentei fazer isso, para minha surpresa, eu tinha controle daquele rapaz, eu me levantei de onde estava deitado e andei por toda aquela sala, foi como se estivesse em um vídeo-game, logo, me acostumei com isso, e então tentei criar novas memórias para ele, demorei 10 minutos para criar uma ‘história de vida’ para aquele cara, fiz dele amigo de outro cadáver, outro marginalzinho qualquer, mas eu não podia deixa-los ‘livres’, eles iriam se questionar, foi então que tive uma ideia. Fiz de Rubens meu lacaio também, ele e dois outros que trabalham no necrotério, criei memórias falsas neles, percebi que tanto os vivos como os mortos podiam ser controlados, dei soníferos que haviam lá naquela ala pros dois marginais que eu havia ‘ressucitado’, fiz os três funcionários me obedecerem como se eu fosse o chefe deles, foi então que tive uma ligação inesperada. O criador do chat, aquele filho da puta queria minha ajuda. Pensei, até então, que nenhum de nós iria se aliar, não havia vantagem, todos eram gananciosos, nem eu queria isso, queria o desejo só pra mim, mas o maldito me disse que não queria o desejo, ele só queria ver Naiara sofrer. Não entendi o porquê disso, mas eu decidi confiar nele, ele parecia estar falando sério, é claro que poderia ser uma armadilha, mas quem poderia ir contra meu poder? Eu tinha vários escravos prontos para matarem por mim, não tinha mais medo, eu não sentia mais nada, apenas o poder da dominação total. O filho da puta me ajudou com todo meu plano, ele sabia que Naiara iria viajar pra Minas Gerais, e isso era mais do que o destino falando para EU por uma corda no pescoço dela, afinal, eu também era motorista de ônibus. Controlei o motorista atual que fazia aquela rota na viação Andorinha, fiz ele dormir o dia todo em sua casa e tomei lugar naquele ônibus, fui até Limeira e peguei 6 pessoas do necrotério, incluindo os dois marginais (todos dopados, só acordaram no ônibus pensando que iriam pra uma viagem), mas deixando os funcionários lá, no final, estávamos todos no ônibus, Naiara e seus dois amiguinhos, enquanto o restante, eram meus fantoches e outro portador, que tinha o poder de criar um espaço com um loop infinito, ou quase infinito. O plano era simples, o hacker maldito iria nos prender naquele espaço e eu brincaria com Naiara o quanto eu conseguisse, a condição para ele me ajudar era de não matá-la, mas fazê-la entrar em choque, ficar aterrorizada e com medo, depois, eu poderia pegar a chave e dar a guria para ele. Era uma troca justa, eu pouco me lixava para ela, só queria a chave. No começo fiz ela e seus amigos serem incriminados, mas como isso foi acontecer? Aquela virada repentina, de alguma forma ela previu meus movimentos, e aquele hacker maldito, ele não fez nada pra me ajudar! O filho da puta só assistia, mas no final pensei que estava tudo sob controle, até que ela me ‘pegou’, eu estava sozinho novamente, e minha única opção foi fugir, mas eu estava preparado para um plano B, sabia da cidade que ela iria, Poços de Caldas, lá eu controlei um segurança, depois um policial, um médico, uma camareira, um taxisista e um marginalzinho drogado, mantive o filho da camareira como refém para ela me ajudar estando sob controle ou não, claro que automaticamente, injetando a seringa nos malditos, eles morriam na hora, então eram todos cadáveres ambulantes, eles estavam vivos apenas porque eu estava, mesmo sem o meu controle quando fecho os olhos, eles tinham autonomia própria, todos com suas memórias modificadas, eu trocava de pessoa a cada momento procurando por aqueles três, e caso eu morresse, os bastardos morreriam também, eu pensei que isso iria durar alguns dias, até que Naiara cansou de correr, e então a peguei. Eu já havia vencido, afinal, quem tem o poder tem tudo, eu sempre fui um subordinado a vida toda, mas agora era a virada do jogo, estava ali, com a arma apontada para os dois amiguinhos dela enquanto ela sorria ao vê-los pendurados em cordas balançando no ar.

— Sinto muito Naiara, mas está atrasada.


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