Amélia escrita por The Bellie


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Heeey!

Amiga secreta, espero que goste. Apesar do trabalho, eu amei muito escrever essa fic e tenho esperanças de que você ame ela também >.
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/666673/chapter/1

Um vento forte passava por meu corpo desajeitado, causando-me frio e balançando as folhas das poucas árvores que lá haviam. O cheiro intenso e adocicado das flores que trazia junto a mim já não me incomodava, pois eram as mesmas que viviam decorando e perfumando a casa de Amélia, enroscadas docilmente em seu cabelo escuro ou seguras em seu colo, quando ofertadas por mim. Eram jasmins, suas favoritas. Haviam mais dessas quando cheguei, deixadas ali desde minha última visita. Estavam mortas. Podia fantasia-la com exatidão ralhando comigo por permitir "coisas tão delicadas" morrerem, os lábios finos formando uma linha reta e um olhar penetrante cravado em mim; o que eu não daria para tê-la de volta...

Abandonando qualquer formalidade ou educação, sentei de frente para a pedra majestosamente entalhada, observando-a como se fosse a primeira vez; todavia, o mesmo sentimento de impotência se apoderou de mim, como nas outras cem vezes em que olhei para a fria lápide. Nunca a tradição de levar flores aos mortos me soou tão estranha e sem sentido. Não me era claro o motivo de trazê-las comigo. Talvez uma pequenina esperança de que Amélia pudesse gostar, ou, o mais provável, uma tentativa de tornar minha consciência mais leve.

Apesar de meu desejo incontrolável de refazer o passado, é bem claro que nada pode reparar o que eu fiz a ela. A angustia em meu peito aumentava um pouco mais a cada dia e evidenciava todo o meu egoísmo; Amélia havia feito a escolha por si mesma, tinha de concordar, mas... quanto das minhas ações influenciaram naquela decisão?

Ainda me é excepcionalmente claro, e tenho motivos para crer que o será para sempre, o momento em que recebi a notícia, causando-me uma mescla incômoda de sentimentos. Estava em um hospital pequeno e acabara de passar por um acidente de carro; por algum milagre, não sofrera nada mais que alguns cortes e hematomas. Sentado em uma cadeira extremamente desconfortável na sala de espera, eu aguardava por informações da única coisa que me importava no momento: Amélia, que se encontrava no carro comigo.

Depois de uma aparente eternidade, notei um médico pequeno e magro vindo em minha direção, caminhava hesitante e nervoso, suas roupas brancas bem amassadas. Respiro fundo o ar impregnado com o cheiro de álcool e medicamentos, procurando por algum apoio e passando furiosamente as mãos por meus cabelos castanhos, fecho os olhos com firmeza, aguardando pelo pior. Mas, depois de sua titubeação, descobri algo muito mais além do que eu imaginava.

Amélia adquiriu paraplegia.

Tudo mudou naquele novembro. Fora um mês conturbado, para mim, para Amélia, para sua família... Embora todos insistissem em dizer que não fora culpa minha, sabia que era. O homem bêbado que colidira contra nosso carro, soube um pouco mais tarde, morreu por conta de uma hemorragia. Eu causara o acidente que a tinha deixado naquele estado e só conseguia me perguntar: por que ela? Daria tudo para trocarmos de lugar, para ser eu bem ali, incapacitado de me locomover sozinho e passando por todos aqueles exames.

Eu a visitava toda vez que a ocasião permitia, o que incluía entrar clandestinamente em seu quarto quando ninguém estava por perto. Toda vez que lágrimas enchiam seus olhos surpreendentemente negros e percorriam seu rosto fino, eu era tomado por um misto de emoções indescritível. Podia jurar que, por baixo de todas as palavras de conforto que eu recebia, por entre todos os abraços e carícias, no meio de todas as conversas distantes, ocultavam-se sua decepção e ódio. Em algum recanto distante de minha consciência, um pensamento insistente dizia que poderia

ser algo de minha cabeça, não dei ouvidos a ele; não era. Naquele momento me sentia muito mais responsável por ela, tanto quanto me sentia responsável por Jamie e mamãe; passei a cuidá-la sem cessar nos meses seguintes, mesmo sabendo que isso machucava a ambos. Precisava tentar reparar aquele erro.

Sentado na grama molhada, flores ainda em mãos e observando seu nome gravado na pedra, eu só conseguia notar novamente que aquele não havia sido o meu único e maior erro. Antes que pudesse mergulhar em mais devaneios, sinto o celular vibrando em meu bolso; era Chad, provavelmente tentando me convencer a trabalhar mais um pouco. Não o atendi, sem vontade de falar com alguém naquele momento.

Minha mente ainda estava nos acontecimentos de alguns meses antes, quando Amélia passava a receber seu tratamento em casa. Eu a visitava diariamente e ficava o máximo que podia, quando não tinha de trabalhar, passava o dia inteiro ajudando-a, notava como doía para ela não poder se mexer sem ajuda. Sua mãe havia abandonado o trabalho para cuidá-la e seu pai logo faria o mesmo, as dívidas criadas para pagar o tratamento da filha estavam aumentando e eu enxergava tudo isso refletido nos rostos daquela família que eu amava.

Eu era o culpado.

Um de nossos momentos mais vívidos, por motivos errados, aconteceu numa manhã fria de abril, em que eu acabara de chegar na casa dos Thompson e encontrei Amélia chorando desamparada, foram longos minutos para finalmente convencê-la a falar. Suas palavras — pronunciadas pela voz doce que antigamente conhecia e que, naquele momento, estava enfraquecida e receosa — criaram em mim uma cicatriz que, se sumir, não o fará tão cedo. Eu não seria capaz de acreditar em meus ouvidos se não houvesse visto seus lábios, que já haviam sido rosados, se mexendo e formando a sentença que me paralisou: “Me mate”, disse. Nunca, em toda a minha vida, fora tomado por uma tristeza tão profunda e avassaladora; o chão pareceu sumir, meu corpo fora imobilizado e minha voz desapareceu, todos os meus sentidos e pensamentos rodaram em torno daquele pedido inesperado.

As consequências dos meus atos haviam chegado.

Fora uma longa tarde tentando fazê-la desistir da ideia. As memórias de uma linda, e outrora alegre, Amélia fazendo biquinho, teimando e batendo o pé sobre assuntos triviais me invadira e, por mais atraente que fosse, não poderia haver pior hora para que sua teimosia se manifestasse. Não me importava se eu devia estar trabalhando naquele momento, nem se estava tentando adiar o inevitável ou até mesmo se mamãe e Jamie pudessem sofrer com isso posteriormente. Lá estava eu, lutando contra meu egoísmo ao mesmo tempo em que tentava convencer Amélia a ter um pouco mais de esperança, a Terceira Guerra estava ocorrendo dentro de mim.

Os romancistas devem pensar que, por mágica, eu havia conseguido pensar em um belo e válido argumento que a convenceu de que a vida não era lá tão ruim, mas eu duvido que teria aguentado tanto tempo quanto ela naquela situação, sendo privada de se locomover sozinha. Meu último fio de esperança de ajudá-la morreu quando ela citou sua música favorita: This Is Gospel, do Panic! At The Disco. "Se você me ama, deixe-me ir" ela cantarolou e entendi imediatamente o que queria dizer.

Se eu a amava o suficiente, se queria realmente reparar meu erro, devia permitir que vá embora. Mas ela não entendia como eu era egoísta? Não compreendia que queria ela ao meu lado, independente de tudo?

A ideia passou a perturbar-me constantemente, nunca antes eu me sentira tão ansioso para visitá-la diariamente. Contudo, Amélia parecia mais alegre a cada dia, aparentando aceitar que não a ajudaria. Os momentos melancólicos, em que ela chorava e eu a consolava, ou até mesmo o contrário, foram substituídos por momentos que fizeram com que eu me sentisse, pela primeira vez depois do acidente, realmente amado. Jogávamos cartas, rindo de piadas sem graça e de imitações que Amélia fazia de seu próprio pai; assistíamos bobagens na TV, com ela aninhada em meu peito; passeávamos no parque ─ tive a ajuda da família dela, para encorajá-la ─, eu empurrava a cadeira enquanto ela olhava, com ar sonhador, as folhas jovens das copas das árvores.

Ocorreu-me que ela poderia ter passado a ver sua situação com outros olhos depois daquela longa tarde de conversa. Amélia voltara a cantarolar como não a via fazendo há tempos, passara a sair mais de seu quarto e a ajudar a preparar as refeições o máximo que sua condição permitia; retornaram até mesmo aquelas antigas conversas, levadas com um longínquo tom sonhador, onde ela falava sobre sua vontade incubada de ser uma renomada chef de cozinha. Ela estava visivelmente mais alegre, fazendo com que todos ao seu redor explodissem de felicidade junto.

Eu não podia estar mais enganado.

Esta devia ser a minha memória mais confusa, e ao mesmo tempo a mais clara, de Amélia; era, também, a última. Estávamos tendo uma noite agradável, seus pais estavam irradiando alegria por verem a filha tão feliz nos últimos tempos assim como eu; a atmosfera na casa era leve e aconchegante. Cheguei em sua casa pouco antes do jantar; Amélia agitava as mãos frequentemente e de modo ansioso, parecia um pouco distante e distraída, deixando cair vários objetos e se perdendo em devaneios muitas vezes, não estava agindo normalmente e parecia nervosa.

Naquele momento, resolvi ignorar tais atitudes, erro da qual me arrependo profundamente até os dias de hoje. Não dei atenção ao comportamento estranho de Amélia, nem suspeitei quando sua mãe a chamou para tomar seus habituais medicamentos, logo, estávamos todos reunidos na mesa de jantar, comemorando a melhora de Amélia com um banquete excepcional feito pela Sra. Thompson, que cozinhava tão bem quanto a filha; naquele momento, a última coisa que eu lembraria era de que a mistura de remédios e álcool era fatal.

─ Um brinde ─ disse Amélia, com o rosto afetado, levantando sua taça de vinho quase desprovida do líquido. Piscou para mim, que sorria antes que o entendimento da situação caísse sobre mim.

As taças, preenchidas com vinho tinto, deveriam estar dispostas apenas para os pais de Amélia e eu; não deveria haver uma das taças com Amélia. Ela não devia estar tomando aquilo! Os acontecimentos seguintes não passam de borrões em minha mente: Amélia tornando-se zonza e, depois de alguns segundos, desabando, seus pais entrando em pânico, médicos entrando na casa e me examinando... Minha única vontade era de gritar e correr para Amélia, fazê-la voltar para mim, pedir pelo seu perdão por tudo que havia feito. Tudo o que eu podia fazer, entretanto, era observar; o zumbido em meu ouvido e o descontrole sobre meu corpo fizeram com que eu me tornasse uma estaca, imóvel.

Entendi tarde demais que não havia volta. Dizem que, naquela noite, os paramédicos tiveram de medicar-me com um calmante forte, e que assim como os Thompson, eu tivera um ataque de pânico, motivo pelo qual minhas memórias daquele dia são tão turvas; efeito parecido com uma forte pancada na cabeça. Nem agora, meses depois de sua partida, conseguia me lembrar da minha reação e do que aconteceu depois de Amélia desabar sobre a mesa.

Senti o filete da lágrima no meu rosto; a brisa, insistente, estava me fazendo companhia. Lá estava eu, chorando como uma criança perdida; dessa vez não havia Amélia para me confortar com seu jeito especial. Ela se fora e, mesmo assim, continuo procurando seu rosto por onde passava, visitando sua casa, esperando encontrá-la separando os próximos episódios para uma maratona de séries ou andando de bicicleta pelo parque. Meu coração transbordava saudades, a ferida que ela deixara em mim era enorme e não se curaria nunca; como eu sentia sua falta...

Com as mãos trêmulas, retirei alguns comprimidos e um cantil com cerveja do bolso, um alarme de “traidor” apitava em algum lugar de minha mente, mas eu o ignorei; o conflito interno que carregava comigo há tempos pareceu se intensificar, os sentimentos confusos que tomavam meu peito eram indescritíveis. Tentando não ouvir uma parte de mim que gritava para que parasse com aquela besteira, engoli todos os remédios devagar, senti o gosto amargo e incômodo deles. Deitei-me sobre a grama, observando o céu; estava bonito. Nuvens aqui e ali, mas nada que roubasse a beleza daquele azul. Já ouvi falar que uma nuvem chega a pesar 5 toneladas, mas quem liga?

─ Um brinde, Amélia ─ disse quase sem voz, levantando a lata para o céu. Tomei um generoso gole, sujando-me; pisquei o olho direito, para o nada, logo antes de fechar ambos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!