Gramaticando escrita por Pokaabu


Capítulo 1
O Julgamento do Vocativo


Notas iniciais do capítulo

Na busca de mais verossimilhança, isto é, mais verdade para a narrativa, abreviações como "né" e "tá" foram utilizadas. Por isso, não se preocupe, todas foram empregadas conscientemente.



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(O NARRADOR E MARIA ESTÃO EM CENA, MARIA ESTÁ ESTUDANDO)

NARRADOR — Hoje, vocês irão conhecer a história de Maria. Uma menina que, como muitas outras, odiava assistir às aulas de sintaxe. Na real? Maria achava tudo aquilo um saco. Eram tantas coisas para decorar! Era verbo, substantivo, adjetivo, sujeito, aposto, vocativo! (VOZ CANSADA) Ela mal podia esperar para tudo aquilo acabar... Até que, num sonho nada convencional, Maria conheceu o outro lado dessa história. Um pedacinho dessa descoberta, vocês assistirão agora.

MARIA — Ah, quer saber de uma coisa? Eu não aguento mais estudar gramática! Acabou, chega, cansei! Já faz horas que estou aqui e não consigo aprender nada. Eu sei, eu sei o que vocês vão me dizer. “Maria, Maria, você vai se ferrar na prova”. (DÁ DE OMBROS) Pelo menos, eu tentei. (BOCEJA) Sabe de uma coisa, eu vou é dormir, qualquer coisa amanhã eu colo do Luquinhas!

NARRADOR — Maria tinha prova no outro dia. Para ela, tudo estava perdido. Mal sabia a menina o que estava prestes a acontecer.

(VOCATIVO E APOSTO SÃO JOGADOS PRA DENTRO DA SALA. MARIA ACORDA ASSUSTADA, PEGA GRAMÁTICA E OBSERVA)

VOCATIVO — Caramba, mas pra que essa violência toda? Ai, minhas costas!

APOSTO — Ai, nossa, que dor! Escutem aqui: nós, funções sintáticas tão renomadas, não merecemos esse tipo de tratamento, tá?!

VOCATIVO — Esquece, Aposto. Vamos aceitar os fatos, eles nunca vão me aceitar como uma função de verdade. Todo o nosso esforço foi em vão... (VOZ CHOROSA)

(MARIA levanta e dá uma gramaticada no VOCATIVO)

MARIA — Quem, quem são vocês?! Olha, eu tenho uma gramática e não tenho medo de usar!

APOSTO — Calma, calma! Me diga você primeiro, qual é o seu nome?

MARIA — Eu sou Maria, a dona dessa casa e desse sonho! (BATE NO APOSTO)

APOSTO — Unf! Nós somos as funções sintáticas, o Aposto e o Vocativo. Bem, pelo menos eu sou, né? Lembra que você nos estudava agora pouco?

MARIA — Ah não, meu! Putz! Sério mesmo? Até em sonho essa gramática dos infernos vem me atormentar!

VOCATIVO — Ninguém me ama! (COMEÇA A CHORAR)

APOSTO — Espera aí, minha querida! Vá com calma! Você não está vendo o estado do Vocativo?

MARIA — Com calma? (BATE NO APOSTO) Com calma? (BATE NO APOSTO) Vocês não sabem quanto tempo eu perdi estudando vocês! (BATE NO APOSTO) Vocês são um saco! E eu achando que conseguiria sonhar com o mundo de batatas fritas de novo!

VOCATIVO — Eu não quero mais viver! (ABRAÇA O APOSTO)

MARIA — Vão embora daqui!

(PAUSA CINCO SEGUNDOS)

NARRADOR — Maria, que não é boba nem nada, ao se lembrar de sua prova muda logo de ideia. Espiem só.

(MARIA VAI ATÉ O APOSTO E VOCATIVO)

MARIA — Ei, esperem! Desculpem a grosseria, sério. Nós começamos com o pé esquerdo, né? Por que vocês não vêm aqui e me contam o que aconteceu? Vem Vocativo, meu querido.

(TODOS SE SENTAM NAS CADEIRAS, VOCATIVO E APOSTO OLHAM PARA MARIA SEM ENTENDER A MUDANÇA REPENTINA)

MARIA — Afinal, o que aconteceu?

(VOCATIVO CAI EM PRANTOS)

APOSTO — O que aconteceu? Como assim o que aconteceu? Você não está vendo? Nós fomos expulsos, expulsos da gramática! Tudo por culpa daquela falsiane da Ambiguidade!

VOCATIVO — Criaturazinha asquerosa!

MARIA — Espera aí, mas quem é essa tal de Ambiguidade?

APOSTO — Não conhece? É um serzinho desprezível que vive lá na cidade da Semântica e adora causar duplo sentido nas frases alheias. Naquela ali, Maria, ninguém consegue dar jeito. Só que dessa vez ela foi longe demais!

VOCATIVO — Ultrapassou todos os limites! Só de lembrar me dá vontade de esfolar aquela traidora! Imagine só, Maria, que quando eu finalmente seria aceito como função sintática aquela indecente boicotou o meu julgamento!

APOSTO — Olha que nós sempre tivemos muita paciência com ela. Pois é, não dá mesmo pra confiar nesse pessoal da Semântica, são um bando de duas caras!

MARIA — Espera um pouco, mas que história é essa de julgamento?

VOCATIVO ­— Calma Maria, eu explico. (RESPIRA PROFUNDAMENTE)

APOSTO — Espera, amigo. Você não precisa contar se não quiser.

VOCATIVO — É que, é que...

APOSTO — Respira, respira.

VOCATIVO — Eu não uma função sintática de verdade! Pronto, falei!

APOSTO — Admiro tanto a sua coragem, amigo! Que orgulho de te ver assim, se assumindo para o mundo!

MARIA — Tá, mas e daí?

(APOSTO E VOCATIVO FAZEM CARA DE INDIGNAÇÃO)

VOCATIVO — E daí, sua sem coração, que eu havia finalmente conseguido marcar o meu julgamento no supremo tribunal da sintaxe! Eu seria finalmente reconhecido como uma legítima função sintática! Tudo parecia estar ao meu favor, até o dia do julgamento. Parece que Ambiguidade, sabendo da certeza da minha aprovação, modificou todos os papéis! Misturou os sentidos, uma bagunça só! Acabei sendo expulso do país da Gramática por desacato e o Aposto, por ter me defendido, veio junto.

MARIA — Ah, mas pra essa tal de Ambiguidade ter encrencado com vocês alguma coisa vocês aprontaram com ela. Conta aí vai, o que vocês fizeram?

(APOSTO REPONDE INDIGNADO)

APOSTO — A única coisa que nós fizemos foi a nossa função, explicar.

VOCATIVO — Isso mesmo Maria, a nossa função é explicar, esclarecer e identificar. Eu, o Vocativo, esclareço sempre com quem se fala.

APOSTO — E eu, o Aposto, dou informações sobre o que se fala. Nosso trabalho é deixar tudo nos mínimos detalhes.

MARIA — Não entendi a diferença... (COÇA A CABEÇA)

APOSTO — Ah, Maria, Presta atenção! Por exemplo, na frase: “a prova será feita por Maria, uma menina nada estudiosa.” Nesse caso, “uma menina nada estudiosa” é o aposto, porque explica quem é Maria. É por isso que as outras funções sintáticas adoram me chamar de enxerido, só porque eu geralmente as explico, ou específico.

VOCATIVO — Minha vez, minha vez. Maria, olha só essa frase aqui: “Maria, vai estudar!” Nesse caso, a palavra “Maria” é o Vocativo, pois é com quem se fala. Viu, que fácil? Ah, mais uma coisa, tanto eu quanto o Aposto costumamos vir separados por vírgulas.

APOSTO — Ah, mas nem sempre, Vocativo. Quer ver, Maria? Presta atenção, por exemplo, na frase: “O bairro de Jucutuquara”, não há vírgula separando o aposto “de Jucutuquara”, do seu referente “o bairro”, nessas ocasiões especiais me chamam de aposto de especificação.

VOCATIVO E APOSTO — Entendeu?

MARIA — Ah, agora sim eu entendi! Então é por isso que sempre explicam vocês dois juntos na escola, né?

APOSTO E VOCATIVO — Isso!

MARIA — Bem, pelo que eu estou vendo, vocês são muito importantes, não podem ficar de fora da gramática!

APOSTO — Pois é, Maria. (SUSPIRA) Só um milagre pode nos salvar agora!

(OUVEM BARULHOS, DENOTAÇÃO ENTRA NO QUARTO SEGURANDO A AMBIGUIDADE PELA ORELHA E VAI ATÉ O APOSTO E O VOCATIVO)

DENOTAÇÃO — Ei, vocês dois aí!

APOSTO E VOCATIVO – Quem, Nós?

DENOTAÇÃO — Vocês dois não são o Aposto e o Vocativo?

(APOSTO E VOCATIVO CONCORDAM COM A CABEÇA)

DENOTAÇÃO — É com vocês mesmo que eu quero falar! Vejam só, vocês acreditam que eu peguei essa ordinária da Ambiguidade futucando em todos os processos do tribunal da sintaxe?

AMBIGUIDADE — Não fui eu não, foi a cachorra da sua mãe!

DENOTAÇÃO — Fica quieta! Essa daqui estava colocando duplo sentido em tudo que via pela frente, desorganizando tudo! A juíza Sintaxe está furiosa! Por isso, ela me mandou aqui para avisar a vocês que...

(MARIA A INTERROMPE)

MARIA — Espera aí, mas quem é você?

DENOTAÇÃO — Eu sou a Denotação, ora bolas!

MARIA – Quem?

DENOTAÇÃO – A Denotação, minha querida! A não ambivalente. A mãe dos dicionários. Rainha dos sete reinos da significação, dos sentidos e dos primeiros significados. Eu cuido para que as palavras tenham sempre o sentido exato, o do dicionário! O problema é a minha irmã, a Conotação, que vive viajando na maionese e deixando as palavras com outros significados. Eu aposto que foi ela que deixou a salafrária da Ambiguidade escapar, mas agora já está tudo resolvido. A Ambiguidade vai pra cadeia e você, Vocativo, vai ter uma nova chance no tribunal!

VOCATIVO — Sério?

DENOTAÇÃO — Eu lá sou de fazer brincadeiras? Só tem um porém, você tem que se apressar. O julgamento foi marcado para daqui a pouquinho e você sabe que a juíza Sintaxe não gosta de esperar.

APOSTO E VOCATIVO — Então vamos!

MARIA — Ei, mas e eu?

APOSTO — Vem com a gente!

MARIA — Mas eu tenho prova amanhã!

APOSTO — Melhor ainda! Lá no país da Gramática você vai poder fazer uma revisão completa e com certeza vai fechar essa prova!

MARIA — É mesmo! O que estamos esperando? Vamos logo!

NARRADOR — Aquele foi o passeio mais divertido que Maria já fez. Esperta, a menina aproveitou a visita para tirar todas as suas dúvidas gramaticais. No país da Gramática, conheceu o Sujeito, o Predicado, o Adjunto Adnominal e mais um bocado de funções sintáticas diferentes! Depois de toda essa experiência, a prova no dia seguinte foi fichinha. (NARRADOR ANDA ATÉ A SAÍDA, MAS, NO MEIO DO CAMINHA, VOLTA) Ah, vocês devem estar se perguntando se o Vocativo foi aceito como função sintática, né? Bem, isso fica para outra história.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ter lido! Espero, sinceramente, que tenha se divertido!



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