Querida escrita por Maffle


Capítulo 1
Você


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura (:



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Querida,

Você me deixa doente.

Toda vez que te vejo, sinto que vou vomitar ou desmaiar ou chorar, ou tudo ao mesmo tempo. Você deitada nesta cama é tóxica.

Você, maldita como é, disse a mim que estava cansada e não aguentava mais me olhar. Disse-me que nunca me amara, fez um baita drama. E saiu, toda satisfeita, levando consigo todos os meses que passei com você.

Eu quis te matar. Fui à sua casa, até. Fiquei de pé em frente à sua cerquinha branca do quintal, aquela que você me fez pintar umas quinhentas vezes. Enlouqueço só de pensar no quanto eu te amava e pintava a porra de uma cerca quantas vezes você quisesse para provar isso. E depois pensei em você toda feliz com a cerca recém pintada e voltei para casa.

E você, desgraçada, não parou de me amar coisa nenhuma. Achou que estava me fazendo um belo de um favor ao se afastar de mim para que eu não tivesse que assisti-la perder os movimentos das pernas e passar a ter dificuldade para falar.

Falar, querida, você amava falar. E isso também foi tirado de você, não?

Dói quando você respira, querida? Disseram-me que não, mas que você sente falta de ar.

Quando olho para você, inerte como está, também sinto falta de ar.

Sinto muita raiva de você agora. Queria que tivesse sido eu a carrega-la até o banho e pentear seus cabelos.

Por que você achou que eu não poderia fazer isso, querida?

Eu queria que você tivesse guardado seu último sorriso para mim. Sei que sorriria para mim se os lábios permitissem. Agora não tem volta, querida.

Só sei que você não está morta porque hora ou outra puxa minha mão para ver se ainda estou aqui. É como estar cega, querida? Não poder abrir os olhos?

Você parece estar morta. Não vou te dizer isso porque ambos sabemos disso, e não é um pensamento agradável.

Como dói, querida.

Você sente dor?

Você quer ir embora?

Você está presa ao seu corpo?

Querida, por que você me mandou embora? Eu te daria comida para até que não conseguisse mais engolir. E então eu te ajudaria com a sonda.

Não acreditei quando me disseram que você estava morrendo. Até cheguei a rir.

Merda.

Você está me ouvindo escrever, não está? Disseram-me que você passou a escrever depois que parou de falar. Se você houvesse permitido, eu te ajudaria a segurar o lápis.

Quando me dizem que você não sente dor, quero acreditar. Encaro seus olhos fechados e espero que você esteja meditando, preparando-se para a morte.

Morte.

Você acredita em reencarnação, querida? Nunca perguntei a você. Talvez possamos nos encontrar daqui alguns anos. Espero que demore bastante, porque estou com muita raiva de você.

Tenho certeza de que não está meditando.

Você está com medo?

Gostaria de dizer que estou com você nisso, mas nosso tempo já acabou.

Odeio você. Odeio sua doença.

Em que momento você se tornou sua doença?

Chego a tremer, não sei se de raiva ou de nervosismo, ao pensar em você, querida, acordando numa manhã sem poder abrir os olhos.

Tenho certeza de que você quis gritar.

Quero gritar por você, querida, mas tenho medo de entrar em colapso se abrir a boca.

Querida, estou com medo.

Você quer que eu leia o que estou escrevendo em voz alta. Sei disso porque seus dedos estão batucando o colchão, impacientes. Você tem pressa?

Não vou ler essa carta para você.

Não vou terminar essa carta.

Inventarei outra, então. Vou dizer que te amo e que vou ficar ao seu lado até seu último suspiro. Talvez isso te acalme, mas vai me matar.

Porque é a verdade.

E tem cheiro de despedida.


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Notas finais do capítulo

Sendo sincera, essa história foi um dos únicos meios que me possibilitou escrever sobre a doença ELA (Esclerose lateral amiotrófica). Acompanhei seu desenvolvimento de perto, e posso dizer que é terrível e enfurecedora. Boa parte do que foi escrito foi baseado no que presenciei. De qualquer forma, obrigada por ter lido até aqui. Até a próxima ♥