Immortals escrita por babygirl


Capítulo 1
Cherry McQueen


Notas iniciais do capítulo

Agradecimentos á todos que foram pacientes o suficiente para esperar (nem tão paciêntes); obrigada a Lucinda/Charlotte, que corrigiu tudinho e me ajudou com os erros. Eu reli várias vezes o cap, e demorei tanto, porque queria que ele estivesse a altura de vocês. Deixe um milhão de pistas, então prestem atenção em cada uma delas. Bem vindos a Immortals.



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No dicionário inglês, imortal significa ser eterno, ou algo do gênero. Era uma boa definição para uma boa palavra e Demetria Crawford não discordaria. Como qualquer garota da sua idade, ela transbordava sonhos cor-de-rosa envolvendo um futuro não muito distante. Planos escritos em listas telefônicas, cartões postais e mapas sinalizando alguns destinos de viagem; Moscou? Egito? Japão. Quando as pessoas criam expectativas sobre suas vidas e idealizam nelas uma trajetória épica, raramente acreditam na morte como o maior obstáculo. É sempre dinheiro, saúde, falta de amor o ou excesso dele. Nunca a morte. Morrer ainda pode parecer uma ideia absurda na mente de algumas pessoas.

Absurda ou não, ela é real. Todos morrem, uns mais cedo que outros, entretanto, sem exceção, uma a uma, as pessoas vão abandonando suas lembranças, sonhos, expectativas, amizades, amores e histórias. Trocam o acúmulo de uma vida, por um buraco debaixo da terra.

Não parece uma troca justa mas a morte, assim como a vida, não é justa.

Demetria possuía vinte e um anos quando tudo aconteceu, ah, a minha doce garota, parecia um crime existir um mundo sem que ela fizesse parte dele. Ela era, de fato, incandescente, enérgica, literal... E vivia em um universo de descargas elétricas consecutivas.

Um universo sobrenatural que não me permitiu fazer parte dele mas que a acolheu como uma igual. Ela viveu cercada de criaturas místicas, histórias lendárias e caçadores que existem única e exclusivamente para trazer harmonia, embora ás vezes, bem ás vezes, causassem o caos.

Nessa selva, embora existam os mocinhos e os vilões, todos compartilham de um pouco dos dois lados: luz e escuridão. Hipócritas pretenciosos, tão amedrontados que são incapazes de escolher uma única direção. Oh, como eu os odeio. Como eu gostaria de vê-los queimar em um incêndio que eu mesma causei, usando fósforos e o meu sopro agoniante de vida.

É como se a vida estivesse causando a morte. Uma incógnita interessante, não? Se você também acha, vai venerar a que eu vou contar a seguir.

FLASHBACK, agosto de 2012.

Depois de fugir dos subterrâneos da mansão Rasley, eu demorei apenas dois dias para encontrar a localização exata da residência Crawford e, sem que ninguém soubesse, tive acesso aos horários turbulentos de Demetria Winnes Crawford. Dificilmente confessaria em voz alta, mas devia tudo isso aos treinamentos que recebi durante a minha infância roubada. Maldita infância roubada.

Ás oito horas em ponto lá estava ela, deslumbrante em um vestido salmão de seda, maquiagem leve e os cabelos castanhos caindo rebeldes sobre suas costas. A pista de dança e a atenção de todos foram coisas que ela conquistou sem esforço nenhum.

Uma perfeição que implorava para ser violada.

Iniciei o agito. Dancei, pulei e senti meus pulmões arderem com aquela fumaça sufocante. Demetria estava bêbada e vulnerável, e eu esperava que isso fosse suficiente para vê-la cair dentro do meu buraco negro.

Aproximei e ela fez o mesmo, dançamos, rimos e derramamos aquela bebida barata no piso reluzente da Cirque Le Soir, uma casa noturna famosa em Londres. O ritmo era tão idêntico que parecia ser único: uma única pessoa, com uma única alma e um único coração. Irônico, eu pensei, mas Demetria estava descontrolada demais para pensar. Ela abriu seus olhos castanho escuro e olhou fundo pra mim; pareceu assustada, senti suas mãos tremerem. Se ela fosse sensata, se afastaria. Mas Demetria recusava qualquer coisa relacionada à sensatez. Isso lhe causava tédio.

Ela era uma Alice ideal. A minha Alice ideal.

— O que você quer? — sussurrou, fascinada por meus olhos azuis.

Quero que me ajude a planejar o seu funeral.

Minha mente gritava alto, como sempre fazia quando estava consumida pela ansiedade. E eu gostava, ah, como gostava. Eu sempre me sentia assim antes de um homicídio genialmente qualificado.

— Eu quero jogar xadrez — deslizei a mão frívola pelos cabelos e me aproximei de seus ouvidos — E você será a rainha do meu tabuleiro, Demetria Crawford.

Sua confusão mental misturada com medo do desconhecido me fez sorrir, insana.

Caia, caia no buraco. Você está tão perto e é tão desiquilibrada, minha doce garota. Você é errada demais para viver nesse país das maravilhas. Você merece o inferno.

E então ela caiu. Nossos lábios se tocaram e ela me beijou ferozmente, queimando em chamas azuis, como eu sabia que ela era capaz de queimar.

Me afastei, sentindo sua respiração acelerada confinante à minha. Nossos rostos ainda estavam alinhados na mesma sintonia e eu senti. Boca seca, estômago revirado, mãos trémulas. Era o desejo incontrolável de arrasta-la para o meu jogo. O meu tabuleiro de horrores.

Minha mão seguiu até o seu pescoço e meus dedos se fecharam ali, como se eu quisesse sufoca-la — e eu queria — mas o relógio não parava de correr.

Tic tac, tic tac.

— O jogo começou — sussurrei.

Ela não sabia, mas havia acabado de beijar o próprio diabo.

FLASHBACK, 03 junho de 2020.

— Demetria! — Charlie Crawford gritou do hall de entrada — Você está nos atrasando!

Demetria revirou os olhos e entrou no seu quarto de cores pastéis. Ela havia se esquecido do arco e flecha; um deslize que eu esperei que ela cometesse.

— Demetria! — foi a vez de Jeremy Roberts esbravejar.

O relacionamento deles causava questionamento em algumas pessoas. “Olhe mamãe, aqueles são Demetria Crawford e Jeremy Roberts. Primos, mas se beijam quando ninguém está olhando”. Margaret James pagou caro por aquelas palavras, pois Demetria a fez engolir até as vírgulas. Os rumores eram falsos, se você quer saber. Apesar de serem inegavelmente próximos e lutarem um pelo outro, Jeremy e Demetria não passavam de parceiros de crime. Guerreiros de um mesmo ideal, uma mesma guerra. Ah, ele realmente sofreria depois que ela se fosse. Trágico. Jeremy possuía um rostinho bonito demais para desperdiça-lo com lágrimas.

— Dá um tempo! — respondeu ela, uma oitava a cima — Eu só preciso encontrar o meu...

Seus lábios se fecharam assim que ela vislumbrou a janela aberta. Demetria recordava-se bem de tê-la fechado. Ela era uma garota observadora, e isso, sem sombra de dúvidas, aumentava o nível de dificuldade da minha jogada.

Retirou a adaga da cinta, mirando-a no invisível, e vasculhou cada canto do quarto à procura do intruso. Contudo, eu estava do lado de fora, acompanhando-a de longe. Por fim, andou até a janela, apoiou-se no parapeito e olhou para o quintal. Nada. Talvez estivesse ficando maluca.

Um livro sobre a escrivaninha chamou a sua atenção. Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Ele estava velho e empoeirado mas ela não ligou para isso, limitou-se a abrir a capa e leu o que continha gravado nela:

“Atenciosamente, C.M”.

Deslizou a ponta dos dedos gélidos pelas iniciais, e o arco e flecha foram varridos da cabeça. Sua visão tornou-se turva e seu corpo leve, solto, como se fosse um barco a deriva no oceano. Ela cambaleou para trás, fazendo o livro despencar da sua mão e cair no chão com um baque alto. Sua consciência estava lhe deixando tão rápido quanto um passarinho foge da gaiola, rumo à liberdade.

— Que droga você está... — Alaric entrou tagarelando mas não demorou a perceber que algo estava errado. Correu para salvar a donzela em perigo, tomando-a para si — Demetria! Ei, Demetria! Jeremy!

Ah sim, este é Alaric Daggerfall. Uma dos peões importantes do meu xadrez. O amor que ele sentia por ela o tornava fraco, um inválido. Tanto talento desperdiçado em prol de um romance adolescente, um romance que eu, impiedosamente, teria o prazer de interromper. Ele continuou chamando por ela, enlouquecido, preocupado, olhando para o seu rosto como se fosse uma câmera fotográfica e pudesse capturá-lo para sempre. E aí estava outra fraqueza: o medo obsessivo de perde-la. Alaric e eu éramos mais parecidos do que eu gostaria de admitir.

Demetria não respondia. Sua língua estava travada e seus pulmões pareciam não transportar oxigênio suficiente, os olhos estavam fechados mas ela estava ali. Continuava ali.

— O que foi que aconteceu? — Jeremy entrou no quarto e espantou-se— Demetria?

Ela abriu seus olhos e puxou o oxigênio com força. Estava confusa, e mesmo assim, comportava mais força do que eles dois juntos. Encarou-os e se afastou.

— Estou bem — mentiu.

Alaric seguiu-a.

— Você desmaiou.

— Desmaiei?

Os dois se encararam preocupados.

— Deveríamos levar você para o hospital, isso nunca aconteceu antes. Vou chamar o Adam... — Jeremy ia saindo do quarto quando ouviu um clique que o fez parar.

Ela estava com o arco e flecha na mão, e ele era o alvo.

— Fique onde está — ameaçou — Eu já disse que estou bem. Não somos mais crianças Roberts, não preciso que você vá correndo buscar o papai— abaixou o arco — Estão aí parados por quê? Temos uma matilha de lobisomens para caçar.

Jeremy levantou as mãos, rendido, e abandonou o quarto.

— Tem certeza de que está bem? — Alaric insistiu.

Demetria o puxou pela mão, trazendo-o para perto. Ele colocou uma mecha de cabelo dela para trás da orelha, suavemente. Ela encostou os seus lábios devagar, e, depois de consumar o ato, sussurrou com eles ainda selados.

— Se perguntar outra vez, arranco sua língua.

Alaric sorriu na boca dela.

— É, você está ótima.

Ela sorriu também, colocando a alça do arco sobre o ombro e entrelaçando a mão livre na dele.

— Vem, vamos matar uns vira-latas.

FLASHBACK, 12 de junho de 2020.

Estávamos brincando de caça ao tesouro, Demetria Crawford e eu. Eu lhe mandava pistas e ela as farejava até encontrar o que eu queria que ela encontrasse. Sempre a seguia, pois fazia questão de assistir as suas reações dos bastidores. A minha protagonista atuava muito bem, e eu sempre a aplaudia, como a boa espectadora que eu era.

Ela estava na estrada, dirigindo trinta quilômetros a cima do permitido naquela rodovia. O bilhete, cujo um endereço estava rabiscado em vermelho, tremia na mesma mão que conduzia o volante.

Minhas iniciais estavam em sangue ao lado do endereço: “C.M”. Oh, por favor, não me condenem pelo drama, eu esperei tempo demais para ver esse roteiro se desenrolar. Os exageros não serão dispensados.

“Fleet Street, n° 66.

P.S olhe no porão.”

Quando estacionou em frente à casa, conferiu se o endereço estava correto. E estava. Essa era uma residência que Demetria conhecia bem: a residência abandonada dos Daggerfall. Alaric mudou-se dela depois que os pais morreram em um trágico acidente de carro.

Ele era um bom contador de mentiras, e talvez isso fosse uma herança familiar.

Ela entrou na casa, cautelosa, e vislumbrou a parede cimentada e repleta de quadros antigos no hall de entrada. Faziam quatro anos mas o chão continuava intacto, assim como os móveis antigos e emadeirados da senhora Scarlet Daggerfall. Depois que eles morreram, Alaric só retornava para dormir e comer e, de vez em quando, optava por ficar na casa da namorada, alegando sentir-se sozinho no antigo lar. Apesar de tudo, parecia ser uma casa comum, com uma família grande e feliz. Essa é a razão pela qual eu detesto aparências. Elas agradam nossos olhos, mas escondem aquilo que realmente importa: a verdade.

E ela estava ali, oculta um andar abaixo de Demetria, no porão.

Não perdeu tempo e afastou o tapete de couro que ficava na sala. Um alçapão revelou-se no chão. Ela estava perto, sabia que quem quer que lhe estivesse mandando as cartas, tinha uma boa história para contar. As desconfianças a levaram à beira do precipício.

Abriu e entrou. A poeira e cheiro de mofo a fizeram tossir uma ou duas vezes e, além disso, a escuridão impedia que ela tivesse uma visão ampla de onde estava pisando. Acendeu o flash do Iphone, apanhou a adaga na cinta de sua calça e avançou rumo ao desconhecido.

Parecia uma masmorra habitável. Havia archotes chamejantes postos nas paredes de pedras e correntes de aço dependuradas do teto até o chão e ela observou, a medida que avançava, que aquele lugar estava abarrotado de silhuetas. Mas não eram silhuetas humanas, eram objetos grandes. Alguns pontiagudos, outros de estruturas estranhas.

Mirou a luz em um deles e viu uma cadeira elétrica. O seu coração parou de bater, como eu previ que pararia, mas ela não recuou, continuou desbravando o inferno centímetro por centímetro. Direcionou a luz na parede e havia machados, facas, serras elétricas, algemas e mordaças posicionadas lado a lado, como se fossem parte de um arsenal de tortura — e eram.

Um barulho vindo da ala norte do porão interrompeu o seu tour. Ela tapou a boca para evitar que o som de seu grito se propagasse. Pensou, analisou, tentou desesperadamente ignorar o seus instintos.

No entanto, eles a venceram.

Atravessou um corredor estreito e deparou-se com uma prisão improvisada. Haviam três selas, uma estava vazia e as outras duas abrigavam uma pessoa, cada uma.

Uma mulher de cabelos grisalhos e roupas rasgadas alcançou a grade de repente. Mirou Demetria com os olhos negros, assustando-a, e então começou a chacoalhar o ferro violentamente, espalhando aquele som estridente por todo o porão.

— Ele vai matar você, Crawford! Ele vai matar você! Vai matar todos nós! — começou a chorar e a berrar, descontrolada. Demetria estava pregada no chão sem reação nenhuma, se ousasse se afastar, provavelmente não conseguiria sustentar o próprio peso — Me tire daqui! ME TIRE DAQUI SUA VADIAZINHA! VAMOS MATAR VOCÊ!

O prisioneiro da outra sela a alcançou também, agarrando-se nela como se a usasse como apoio. Ele sorriu, amarelo, e Demetria o reconheceu quase que imediatamente: era o pai de Alaric. O rosto dele estava no túmulo do cemitério municipal de Northbury. Anthony Daggerfall, 1961 – 2016. “Homem honesto, pai e marido exemplar”.

Não, não, não. A cabeça dela girava. Ele está morto! Você foi no enterro dele!

Ele não estava. E essa era só a ponta do iceberg de mentiras que Alaric Daggerfall havia contado para ela.

Ela abandonou o porão, e passou correndo rápido pela porta de entrada. Perguntas afligiam seu cérebro e esmagavam seu coração, mas ela se recusava a olhar para trás. Esgueirou-se para fora do quintal, indo de encontro com o seu carro do outro lado da rua, tão apressadamente, que quase foi atropelada por um táxi.

Ele buzinou e ela sinalizou pedindo desculpas, visivelmente atordoada. Uma pessoa oculta atrás de uma árvore de raízes largas chamou a sua atenção. Era eu. A nossa troca de olhares faiscou na atmosfera, como se fossem luzes iluminando o caos. Ela achou meu rosto parcialmente familiar, eu achei o seu absolutamente familiar. Demetria piscou algumas vezes mas já havia desaparecido.

O táxi tornou a buzinar.

— Vai se foder! — Ergueu o dedo, foi até o carro, entrou nele e deu a partida.

Atravessou sinaleiros fechados, acelerou a mais de cem quilômetros por hora, cruzou ruas que nunca havia visto antes. Precisava fugir, só não sabia do que.

05 de agosto de 2020, Hospital St. Mary, Londres.

Fazia um mês e meio desde o diagnóstico que obrigou Demetria Crawford a trocar seu quarto confortável em Northbury, por um leito hospitalar no St. Mary, quarto 202, terceiro andar.

Primeiro foram os episódios de tontura e falta de ar, e, com o tempo, a palidez, fraqueza, desmaios, imunidade baixa e perca da jovialidade. Um milhão de exames e uma rotina repleta de “você vai ficar bem” para no fim, receber um diagnóstico patético: insuficiência cardíaca aguda. Um papel pardo de caligrafia confusa transformou a invencível Demetria Crawford numa doente terminal, com uma data de validade mínima. Depois de enfrentar extraordinários demônios, criaturas, família, clãs de caçadores rivais e inimigos mortais, ela foi derrotada por uma simples doença humana. Tão clichê e viral, tão... Medíocre. Ela, justo ela, que se sentia um jovem deus, reinando em uma terra de um trono só, estava se quebrando como se fosse vidro.

E ela gritou. Gritou alto suficiente para ser ouvida em outra galáxia, outra dimensão. Demetria Crawford lutou com todo o seu coração defeituoso e sentimental. Submeteu-se aos tratamentos mais intensos, com as drogas mais intensas; e elas destruíram-na não só fisicamente como deterioraram os seus órgãos e a debilitaram por inteiro. Tudo doía. Tudo latejava. Tudo suplicava por um tempo, uma pausa. Mas ela não parou, Demetria manteve sua bandeira branca guardada e seu sorriso doce e orgulhoso exposto, para que todos o vissem e o usassem como uma fonte – ainda que escassa – de fé. Vagou de hospital em hospital a procura de algo que nunca achou que precisaria: uma cura. Algo que a mantivesse ali, intacta, respirando...

Simultaneamente, enquanto Demetria brigava por si mesma, ela também se despedia. Havia um número grande de coisas, pessoas e memórias que necessitavam de um adeus formal, com direito a lágrimas e todo aquele drama barato. Ela achava agoniante partir, sem antes agradecer a tudo aquilo que a fez bem ou condenar, uma última vez, tudo aquilo que fez mal. Era como romper uma linha invisível entre ela e as coisas das quais ela um dia já fez parte. Visitou lugares, andou de pés descalços na areia da praia, olhou todas as fases da lua, plantou margaridas no jardim, dançou, cantou, releu cartas antigas, colou fotos em um mural, abraçou, beijou, riu, sorriu. Não queria deixar nada para trás.

Antes de tudo ficar cinza e Demetria ser finalmente condenada ao quarto 202, ela esteve perdida. Iniciava suas noites em boates e as terminava na emergência, drogada, bêbada e com lágrimas no rosto. Alaric sempre a perdoava, aliás, todos perdoavam. Não havia muito a ser feito além de deixa-la se vingar; nem que fosse dela mesma. Ninguém se atrevia a entrar em seu caminho e dizer o que ela devia ou não fazer. Talvez porque não quisessem interferir no grande ponto final que ela estava dando a sua história, talvez porque apenas não sabiam o que dizer.

Adam e Alaric decidiram entre si, que seriam eles a acompanhar Demetria no quarto todos os dias. Praticamente haviam se mudado para lá com ela. Kallet, por outro lado, continuou trabalhando, como se nada demais estivesse acontecendo. Vadia sem coração, Alícia cuspiu para ela durante uma discussão rotineira na dollhouse; Kallet ajustou o terninho e respondeu-lhe com calma “apenas não finjo que tenho um, querida”. Jeremy manteve-se muito ocupado nesses últimos dois meses, porque quase nunca ia visita-la. A tia Katherine até tentou conversar, entender, mas ele permaneceu impenetrável e longe, tanto da residência Crawford como do Hospital St. Mary. Anne e Charlotte visitavam-na todos os dias de tardezinha, contra a vontade de Charlie é claro, ele gostava de repetir que aquele não era um bom lugar para as filhas estarem. Elas levavam flores, conversas e risadas.

Naquela quarta-feira em especial, Adam deixou Demetria sozinha enquanto a mesma dormia e desceu pra tomar café uns andares a baixo. Estava tudo bem, pensou, Alaric não demoraria a chegar com as margaridas que Demetria quase o obrigou a comprar e ela estaria acompanhada outra vez.

Quando Alaric retornou com o buquê de margaridas nas mãos, o quarto estava vazio. Os lençóis brancos e azuis estavam bagunçados, os fios e tubos que estavam conectados á Demetria foram arrancados e jogados no chão. A máquina de oxigênio estava desligada.

O buquê caiu no chão e o sorriso se desfez. Confiar em uma Winnes-Crawford era erro de principiante.

Alaric desatou a correr pelo corredor, esbarrando em pessoas de jalecos brancos e feições neutras, — quase desumanas — invadindo quartos de outros pacientes e chamando pelo nome dela em cada um deles.

— O senhor não pode correr aqui! — Uma enfermeira tentou detê-lo.

Ele a empurrou contra a parede, enfurecido, fazendo-a colidir com força e cair no chão. Ela ergueu o olhar para ele, apavorada, e Alaric arrependeu-se na mesma hora. Tentou se aproximar, mas um grupo de seguranças cruzou o corredor correndo na direção deles.

— Eu sinto...

Afastou-se dela tropeçando, e correu para o elevador no final do corredor. Apertou todos os botões, mas a demora o fez desistir. A placa que sinalizava a escada de emergência chamou a sua atenção. Estava em vermelho e piscava repetidas vezes.

Arrombou-a e correu escada acima.

Correu tão rápido que não demorou a deixar os seguranças e todo o aquele barulho para trás, escutando agora, apenas o som de seu coração sem ritmo. Precisava encontra-la. Precisava saber se ela estava bem.

A escada levava a uma porta, da qual luzes do dia saiam das frestas. Alaric calculou que ela dava para a cobertura do edifício St. Mary. Pensou em arromba-la também mas a fechadura já tinha sido violada por outra pessoa e a porta estava entreaberta, balançando com a ventania que sucumbia lá fora.

A ficha caiu e foi em queda livre.

— Demetria! — chamou-a, entrando debaixo do céu cinza e tempestuoso.

Ela estava de costas e sentada no concreto que beirava um precipício de mais de vinte metros, os cabelos bagunçados e castanhos movimentando-se atrás dela como se fossem um furacão. Tragava um cigarro.

— Se pular, eu termino com você — Alaric demorou a quebrar o silêncio. Precisava ser minucioso. Demetria fechou os olhos, jogou a cabeça para trás e sorriu — Nada pessoal, amor, você sabe... As suicidas não fazem o meu tipo. Prefiro as homicidas, sarcásticas e agressivas. Conhece alguma pra me apresentar?

Demetria lançou o cigarro e ficou olhando-o cair na calçada dura lá em baixo. Girou seu corpo para ao lado, ainda sentada, e ficou de frente para Alaric. Ela estava pálida. Respirava com dificuldade.

— Não vou pular.

Alaric soltou o ar dos pulmões.

— Fantástico — disse sorrindo — Porque eu comprei dois ingressos para Star Wars 9 e eles não aceitam devolução.

Demetria não sorriu. Abaixou a cabeça e lágrimas começaram a cair de seus olhos. Estava tão cansada de fingir acreditar nele, ou nas mentiras que tão constantemente ele contava para ela. Cansada de fingir que sua mãe não dava a mínima pra ela, ou da sua irmã, que se trancou em um mundinho só para que ela não pudesse entrar nele. Casada de Jeremy, que decidiu não fazer parte da vida dela quando ela mais precisou, e principalmente, de fingir que o entendia e o perdoava por isso. Fingir fazia parte do seu dia-a-dia. Fingia risadas, fingia conversas, fingia interesses, desinteresses, gostos, desgostos. Fingiu tanto, que não sabia mais como era não estar fingindo.

— Demetria...

— Não — disse, colocando-se de pé — Me poupe do seu discursinho sobre a vida e como ela pode ser longa e feliz se eu quiser que ela seja. Nem sempre as pessoas têm aquilo que querem. Não preciso que você queira que eu viva, Alaric — nessa altura, o tom de voz dela era alto e alguns raios riscavam o céu — Mas sabe do que eu preciso? Que você pare de tentar tão desesperadamente mudar o que é inevitável. Eu sou um cadáver andando. Eu mal consigo respirar sem ajuda de máquinas — engasgou-se nas lágrimas — Sou tão dependente de todos que chega a ser patético. Não estou vivendo... Estou sobrevivendo. Demetria Crawford já morreu há muito tempo. Não sou a garota que você conhecia.

Ela costumava não saber a proporção que suas palavras tinham nas pessoas. O quão fundo elas eram capaz de chegar, e quanto elas poderiam machucar. Mas ali, naquele momento, ela sabia. Ela queria feri-lo e isso ficou evidente para ele. Alaric queria começar uma guerra, faze-la engolir as suas palavras e mostrar o quanto elas estavam erradas. Contudo, elas não estavam.

— Não finja que desistiu — ele quebrou a distância entre eles sem se importar — Isso não vai tornar as coisas mais fáceis e compreensíveis, e você sabe! Não tente negar, Demetria. Você odeia magoar as pessoas. Odeia causar nelas o que elas sempre acabam causando em você — Alaric colocou ambas as mãos no ombro dela — Alícia e Kallet nunca mereceram nem metade das suas tentativas de aproximação e, mesmo assim, você nunca desistiu delas. Porque essa é você. Você não desiste. Você não se importa com o quanto a guerra vai te destruir, porque você tem esperança de que ela resulte em algo. Nem que seja em um bom dia, ou um abraço. Você sempre foi a mais humana de todos e é por isso que eu te amo.

As lágrimas caiam mais violentas que a chuva que se iniciou, lavando toda a cidade de Londres. Colocou a mão sobre as dele, retirando-as de seus ombros. Ergueu olhar.

— Minha humanidade não vai me manter viva — fria, amarga, cruel— Um coração saudável e suficiente, vai. E eu não sei se você leu o meu diagnóstico, amor, mas isso está em falta por aqui — as gotas da chuva escorriam pela sua pele alva, tocando os seus lábios sem vida. Demetria ofegava pela constante falta de ar, tossindo vez ou outra — Não se trata de lutar ou desistir Alaric, se trata de ser realista. Aceitar aquilo que nem você e seu amor, ou os médicos, ou a minha família de bonecas podem mudar. O meu fim.

Ele não queria ouvir, não queria acreditar. A possibilidade de não estar com ela o torturava mais do que se tivesse uma lâmina enterrada no estômago.

— Por favor... — Colocou as mãos no rosto dela, mas ela o deteve.

— Essa é a última coisa que eu posso fazer por você, Daggerfall. — Não conseguia sorrir, por mais que quisesse faze-lo. Demetria não tinha duvidas do amor que ele sentia por ela mas, perto de tudo, amor não parecia ter tanto peso assim — Viva a sua vida e pare de tentar salvar a minha.

Ele se calou, queria responder a altura, ou apenas sequestra-la e sair do meio daquela tempestade para algum lugar ensolarado e distante. Talvez para o passado. Acenou negativamente, empurrando-a para trás e beijando-a como se fosse a primeira vez.

Um raio iluminou o céu.

Ela tinha gosto de remédio e sangue, mas ele não ligava. Demetria nem sequer tentou se esquivar, assim como não se esquivou de nenhuma das suas despedidas. Deixou que todas elas viessem naturalmente e Alaric ainda não havia recebido o seu adeus. Bem, agora estava feito.

Ela o empurrou para trás, utilizando uma força que já não possuía. Um barulho vindo da escada os fez olhar para lá. Seguranças uniformizados com o símbolo do St. Mary saíram por ela, acompanhados de policiais londrinos. Alaric buscou o olhar de Demetria mas ela estava no chão, com os olhos fechados e inconscientes. Tentou correr até ela, mas os policiais o algemaram.

— Me solta! — se debatia frenéticamente — Fique longe dela! NÃO TOQUE NELA, FILHO DA PUTA! FIQUE LONGE DELA!

Um dos seguranças a apanhou no colo, levando-a às pressas para dentro do hospital. Alaric ainda chamava pelo seu nome.

***

Quando os olhos dela se abriram, os Crawfords estavam todos em volta da cama. Adam suspirou aliviado, seu rosto estava cansado, a barba por fazer e os olhos fundos faziam-no parecer um bêbado. Charlotte segurava a mão dela, olhando-a com um sorriso sincero, porém triste. Ambas eram tão diferentes e iguais ao mesmo tempo. Demetria gostaria de ter tempo para descobrir o por quê. Na verdade, tempo, era tudo que ela gostaria de ter tido.

Anne estava do outro lado do leito, quieta, chorando timidamente. O globo de neve que Demetria havia lhe dado de aniversário estava em suas mãos. A neve caindo sem pressa, sem compromisso. De certa forma, esse foi o modo que Anne encontrou de levar Louise consigo, na esperança de que o gelo confortasse e aquecesse o seu coração.

Alícia manteve-se afastada da cama de Demetria. Era quase torturante olha-la assim, ouvir um coração tão puro e genuíno parar de bater. Ela queria dizer. Queria que Demetria soubesse que ela lhe era grata, que sentiria a sua falta e que isso tudo quase a impedia de respirar. Queria dizer que nada, nem o seu mundinho escuro, as brigas ou o enorme precipício que existia entre as duas, foi capaz de impedir que ela a amasse. No entanto, Alícia engoliu as palavras mais uma vez. Uma ultima vez.

Katherine, Brad e Charlie olhavam a cena como se não pudessem acreditar nela. Demetria foi o ser humano mais cheio de vida que eles tiveram a chance de conhecer, e agora, nada havia restado. Nem luz. Nem trevas. Só o silêncio. Um silêncio, que Kallet Winnes conhecia bem. Ele tinha gosto de ervas amargas e queimava na garganta. Contudo, como o aço, ele era difícil de quebrar. Às vezes o barulho, por mais estridente, agudo e irritante que seja, ainda é melhor do que o nada. O menor ruído que seja, ainda é mais confortante e menos solitário do que o silêncio.

O olhar de Kallet e Demetria se cruzaram. Todo o ressentimento estava exposto como se estivesse nu. Kallet lutou para afasta-lo, não queria que todos percebessem o quanto ele a envergonhava. O quanto ela estava errada e talvez até arrependida. O quanto ela admirava a filha e sua força inabalável. O quanto as duas eram tão inegavelmente semelhantes. Kallet sentia-se desprotegida mas Demetria fazia questão. Era essa a imagem que ela queria guardar de sua adorável mãe. Frágil, quebrável, destrutível.

Ela sorriu e seus olhos se fecharam. Estava pronta.

O monitor cardíaco marcou zero, e uma luz de emergência disparou no quarto 202. Vários médicos juntaram-se aquele que já estava lá dentro. Katherine conduziu Charlotte e Alícia para longe. As três máquinas, tão imunes a sentimentos, sentiam-nos desabar sobre os seus ombros de uma só vez. Charlie puxou Anne contra a sua vontade e o globo de neve caiu no chão, espalhando neve e vidro pelo piso de mármore do St. Mary. Os joelhos de Adam Crawford cederam e ele ajoelhou-se, sem tirar os olhos de Demetria. A sua eterna branca de neve. Nenhum dos médicos teve força o suficiente para privar um pai de assistir a morte da sua filha. Deixaram-no ali, no chão, acompanhado de uma dama de ferro incapaz de se mover. Kallet estava sem reação, pela primeira vez em muitos anos.

— Quarto 202, Demetria Crawford — Jeremy disse uns andares a baixo, na recepção, enquanto ajustava sua jaqueta de couro. Sentia um incomodo incomum, como se fosse difícil manter-se de pé. Como se estivesse anos sem dormir, comer ou beber.

— Só um momento — a recepcionista lhe lançou um olhar estranho. Levantou-se, discou um número no telefone e conversou por alguns instantes.

Retornou.

— Não sei como dizer, senhor... A paciente do 202.... Ela...

Jeremy empalideceu.

— Demetria... — ele falou baixo. Virou-se e correu, mesmo com todo o seu cansaço físico, na direção do quarto 202.

A recepcionista apoiou-se no balcão.

— Senhor, não é permitido... Correr.

Vários médicos estavam posicionados na porta do 202. Charlotte e Anne choravam abraçadas, a mais velha deslizava a mão pelo cabelo da caçula, tentando inutilmente acalma-la. Alícia estava no canto, seu rosto estava vermelho, ela soluçava, mas não queria que ninguém a consolasse. Charlie estava sentado, pensativo e distante, como sempre fazia quando não queria enfrentar uma situação. Katherine e Brad o encararam assim que ele conseguiu alcança-los.

— Mãe...?— ofegou. Katherine cobriu seus lábios e assentiu — Não. NÃO. DEMETRIA!

Brad tentou abraça-lo mas ele fugiu de seus braços.

Aproximou-se da porta, encontrando caminho entre aquele emaranhado de jalecos brancos. Seu rosto refletia culpa, desespero e saudade. Jeremy chegou a tempo de ver o último médico afastar-se dela, recitando as palavras que ele jamais esqueceria “Perdemos ela. Sinto muito, fizemos tudo o que podíamos”. Adam chorou alto, esmurrou o chão, empurrou Kallet para longe. Não conseguia raciocinar. Não conseguia se conformar. Jeremy, por outro lado, conseguiu entender o que aquele cansaço representava: o rompimento da ligação que ele possuía, desde criança, com a sua prima Demetria Crawford. A sensação era péssima. Fazia seu corpo inteiro fraquejar e seu cérebro doer.

Encarou o corpo pálido e frio de Demetria sobre a cama e saiu pela porta, desaparecendo de vista.

— Jeremy! — Katherine tentou mas Brad a segurou.

— Ele precisa de um tempo, Kath. Todos nós precisamos.

Nos minutos que se seguiram, todos os Crawford foram retirados do quarto para que Demetria fosse levada ao necrotério. Adam negou-se mas Kallet, por algum milagre, conseguiu convencer o marido a deixa-la partir. A família da falecida foi reunida na sala de espera, que ficava um pouco depois do número 202. Estavam quietos, alguns ainda possuíam lágrimas e as derramavam deliberadamente. Naquele momento, nenhum deles era feito de porcelana. Nenhum deles carregava sua máscara de mentiras e segredos. Não eram bonecos, eram seres humanos.

O médico particular de Demetria os alcançou com um papel nas mãos. Todos se ergueram para escutar o que ele tinha a dizer. Uma tempestade torrencial voltou a se manifestar lá fora.

— Sentimos pela sua perda. — O médico era jovem, de mais ou menos 25 anos, tinha um sorriso branco e até um pouco cínico. Sua pele era clara, os cabelos castanhos e os olhos da mesma cor. Ele pigarreou antes de prosseguir — O certificado de óbito apontou a causa da morte como parada cardiorrespiratória. Tentamos reanima-la com o desfibrilador e conseguimos na primeira tentativa mas ela teve outra parada. Tentamos outra vez mas não foi suficiente — Anne escondeu seu rosto no peito de Charlie, que a abraçou. O médico fez uma pausa — Sei quem vocês são. Sei que são caçadores e que fazem parte de um mundo sobrenatural.

Uma atmosfera de tensão se formou.

— O que disse? — Adam foi rude.

O médico não sorriu. Ele realmente falava sério.

— Foi o que o senhor escutou, senhor Crawford — aproximou-se — E digo mais. Sua filha não morreu de causas inteiramente naturais. — Os Crawford pareciam ter perdido o chão. Olhavam uns para os outros, tensos, com as bocas entreabertas e sem imitir som algum. O médico concluiu. — Demetria Crawford morreu porque seu coração não era mais capaz de filtrar tantas emoções.

Kallet quebrou o silêncio.

— O senhor está insinuando que...

Ele desviou o olhar para a mulher.

— Demetria era uma criatura cujo os poderes se manifestavam através dos sentimento, as emoções. Contudo, ela não era uma veela comum. — Ninguém além de Kallet entendeu o que ele disse. A reação dela foi súbita, cambaleou para trás e esbarrou na mesinha, derrubando um vaso de flores amarelas. Virou-se de costas para todos. — Demetria Crawford morreu porque possuía duas descendências de veela e não era capaz de administra-las mais. O seu gene a matou, senhorita Winnes.

Todos olharam para Kallet. O seu pulmão descia e subia rapidamente, as mãos estavam fechadas e sangue começou a escorrer delas. Ás vezes, as pessoas simplesmente bloqueiam suas emoções ou as mantém afastadas por algum tempo. Isso não significa que elas não existam, significa que estão reprimidas em algum lugar. Kallet as evitou por muito tempo, tanto tempo, que o tal lugar lotou-se delas. Raiva, amor, alegria, tristeza, insegurança. Eram tantas emoções compactadas, que uma hora ou outra, elas explodiriam. Uma hora tudo se tornaria tão insuportável de segurar, que Kallet apenas as soltaria.

Ela se virou. Seus olhos resplandeciam em dourado vivo.

— O que isso significa, papai? — Anne sussurrou entre lágrimas.

— Significa que temos outro demônio entre nós.

Kallet havia ativado sua descendência.

***

DIAS ATUAIS, 6 de Agosto de 2020. Cemitério municipal de Northbury.

[A narradora recomenda essa música a partir daqui]

As gotas da chuva caiam das folhagens, embaladas pela brisa agradável que percorria Londres naquela quinta-feira. O sol apareceu, tímido e grandioso, aquecendo a cidade a baixo dele. Os Crawfords — menos Charlotte, que decidiu enfrentar o luto à sua maneira — e amigos próximos. O namorado, Alaric Daggerfall, havia desaparecido. Tentaram encontra-lo, mas a residência em que ele vivia estava vazia. Juntos, marcharam por uma estradinha de pedras que levava ao alto de uma colina gramada, perfumada por flores e assombreada por árvores silvestres. Existia uma energia muito boa correndo ali.

— Ela iria gostar, Adam. — Katherine apertou o ombro dele, compreensiva e doce.

Ele apenas assentiu, olhando para o buquê de margaridas que carregava nas mãos.

A cerimônia iniciou-se assim que o caixão foi sobreposto sobre a cova. Demetria pediu para que não houvesse velório, ou que a vissem morta; gelada. Queria que fosse simples e que só estivessem ali pessoas que ela realmente amou, e que realmente a amaram. Uma música lenta do Kodaline tocava bem ao fundo, misturando-se ao som fraco proporcionado pelo vento.

— Estamos reunidos aqui, para nos despedirmos da jovem e corajosa Demetria Crawford, que lutou por sua vida até o último suspiro — o padre iniciou o discurso fúnebre. Alícia andou até o caixão, deixando-se sobre ele a lanterna que as duas costumavam usar para brincar de acampamento. Sussurrou alguma coisa e se afastou — Nem sempre entendemos os motivos que levam Deus a chamar seus anjos para o céu tão cedo mas temos a certeza de que eles ficarão para sempre em nossas memórias e corações. — Anne se aproximou do caixão, acompanhada de Charlie, depositou os cacos do globo de neve e disse baixinho “Se vir a mamãe, diga que eu a amo. Adeus, Dem” — O Salmos vinte e três diz: O senhor é o meu pastor, e nada me faltará. Deitar-me faz em pastos verdes, guia-me mensamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome... — Jeremy foi até o caixão, neutro, sem lágrimas ou tristeza aparente. Deixou sobre ele uma garrafa de Jack Daniels, — O padre quase se perdeu em sua leitura, desconfortável —, e então, antes de se afastar, deslizou a mão pela caixa preta e emadeirada. Sorriu. O padre prosseguiu — Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque o Senhor está comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam... — Foi a vez de Adam despedir-se. Foi até o caixão, deixando o buquê de margaridas sobre ele. Afundou a mão no bolso, retirando uma maçã vermelha e suculenta de lá; limpou-a, e colocou-a ao lado do buquê, afastando-se em seguida —.... preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unge a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda... — Theresa e Summer, de mãos dadas, chegaram até o caixão. Uma chorava desconsolada, a outra sorria entre as lágrimas. Deixaram sobre ele o colar de uma meia-lua de Demetria e um álbum de fotos intitulado “Verão de 2016”. Afastaram-se — Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida e habitarei na casa do Senhor por longos dias. Oremos.

Todos abaixaram suas cabeças e fecharam os olhos. Kallet, contudo, adiantou-se até o caixão levando o arco e flecha de Demetria Crawford. Havia uma meia lua gravada na madeira. Lágrimas corriam pelos olhos de Kallet Winnes, que depois de tanto tempo sem derrama-las, soube o que era sentir a infelicidade sufoca-la. A descendência de veela fez seu coração bater outra vez e ela não se importou em parecer uma patética sentimental, apenas queria despedir-se de Demetria da forma que ela merecia.

Depositou o arco em cima da madeira.

— Eu. amo. você — disse pausadamente, com os olhos bem fechados — E sinto muito, Demetria. Eu. Sinto. Muito.

Kallet chorou porque ela morreu, chorou porque ela viveu, chorou porque sabia que não escutaria sua voz outra vez, e chorou, principalmente, porque jamais teria o seu perdão.

A oração terminou e o padre concluiu:

— E todos dizem amém.

— Amém — fizeram um coro.

Depois de uma hora, o caixão já havia descido. Coroas e arranjos de flores — rosas e margaridas na maioria — foram colocadas em cima do túmulo recém selado. Não existia mais ninguém ali, nem família, nem amigos, nem líderes religiosos. Demetria estava finalmente sozinha.

Aproximei-me dela, levando apenas uma rosa.

Encarei o retrato da garota de cabelos castanhos, olhos escuros, pele clara e sorriso doce. Ela não precisava das minhas lágrimas, palavras decoradas em guardanapos, objetos que a caracterizavam enquanto viva. Demetria não precisava de nada, além de uma grande e caprichada dose de paz. E isso, meus caros, era a única coisa que ela teria. Para sempre.

— Ninguém vai sentir mais a sua falta do que eu, Demetria Crawford — joguei a rosa sobre o concreto que abrigava seu cadáver. Virei-me, tomando o caminho das pedras outra vez.

Tolinhos.

Pensaram mesmo que essa história era sobre Demetria Crawford?

Eu sou Cherry McQueen. Essa história é minha.


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Notas finais do capítulo

O QUE ACHARAM?



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