Anjo Mau escrita por annakarenina


Capítulo 22
Morte


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é narrado por Emily Foster



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/662252/chapter/22

O garoto me lembrava Philip de alguma forma. E de alguma forma muito inconveniente, o garoto pareceu invadir meu espaço, tocando em meu queixo na frente de todos, como se já me conhecesse.

Ele era muito atraente, pra falar a verdade. Enquanto ele tocava em meu queixo, seus olhos penetravam os meus bruscamente, como se invadisse a minha alma, de forma muito mais assustadora e perigosa que Philip. Quer dizer, a diferença entre o olhar dos dois meninos era muito evidente, visto que, embora a de Philip aparentasse algo muito estranho — até porque a minha intuição repetia isso diversas vezes — e perigoso, havia leveza em seus olhos acizentados. Enquanto com esse menino, as coisas eram diferentes, eram assustadoras de mais e profundas de mais. Eram invasivas, bruscas, grossas, sem conveniência. Tentadoras. Como se houvesse um significado maior e muito mais amplo por trás disso tudo. Na verdade, essa sensação de haver um significado maior e mais amplo era característico dos dois, visto que com Philip, seu mistério também não deixava a desejar.

Todavia, o que mais me incomodava era essa invasão do menino. Poucos foram os segundos em que ele me tocou, mas pude ter total certeza que ele não estava ali por acaso. E com absoluta afirmação, eu poderia dizer que era a mim que ele procurava — como Philip. E tirar essa conclusão, mesmo que parecesse precipitada, poderia mudar toda a minha trajetória até agora. Poderia mudar meus dezessete anos de vida completamente. E poderia mudar tudo o que eu entendia sobre mim até agora também — o que não era praticamente nada em relação ao que minha intuição dizia que estava por vir.

A questão maior era que Philip muito provavelmente sabia quem eu era de verdade. E olhá-lo dessa forma tornava tudo mais patético e cruel. Mas, porque ele me queria? Digo, seria por causa das minhas habilidades? Como ele sabia delas? E também… por que diabos minha intuição dizia que não era uma boa ideia estar com ele, mesmo o menino ter me ajudado — de alguma forma muito, mas muito esquisita? Seria mesmo coincidência minha dor passar justamente quando nossa pele se tocou? E por que meu cérebro pareceu reconhecer aquele toque na sala de aula, mesmo depois de tantos anos? Seria também uma coincidência?

Quando finalmente o menino soltou meu queixo, consegui visualizar amplamente os dois. Philip vinha em sua direção, suavemente, mas com o olhar atento. A sensação que eu tive foi a de dois predadores, enormes, com exatamente o mesmo porte físico — alto, musculosos e definidos — preparando-se para um duelo. O olhar de ambos era ameaçador, alerta, perigosos. Era uma briga visivelmente anunciada, uma turbulência visivelmente tensa. Os outros alunos se concentraram, e o silêncio mortal pairou no lugar. Por incrível que pareça, o ar tornou-se mais limitado, o tempo tornou-se lento e minha respiração mais ofegante. O ar parecia estar indo embora e dando lugar à um vácuo como o da imensidão do universo. E mesmo tudo acontecendo em câmera lenta, eu conseguia manter-me fixa na expressão dos dois. Uma expressão cada vez mais fria, mais desafiadora.

E então, fui mutilada por quatro olhares. Os dois olhos castanhos quase transparentes do novo menino, e depois, os dois acizentados como o de uma águia de Philip. Ambos me olharam numa mesma sintonia, num mesmo gesto rápido. Eles sincronizavam como o bater das asas de uma borboleta, exatamente no mesmo momento, no mesmo milésimo de segundo. E eu entendi tudo. Eu era a principal daquela história, eu era a pobre caça dos predadores. Eles eram os verdadeiros predadores. Como cheguei à essa conclusão? Não sei, mas eu era forte de mais e inteligente de mais para unir tudo. Além disso, sem deixar de contar com a minha intuição. A que esteve sempre presente dentro de mim, o tempo todo ali, só esperando para ser verdadeiramente escutada.

Peguei no braço de Melanie, que parecia perplexa ao meu lado, e a puxei para o lado oposto deles. Fui para trás, angustiada com minha própria conclusão, angustiada com meu verdadeiro eu, e angustiada por ter sido a escolhida por eles.

Mas da mesma forma em que eu os temia — em especificidade à Philip —, junto com duas sensações opostas (a de perigo e de calmaria), eu queria estar ali. Quando eu via o Philip, meu mundo parecia um lugar melhor, um lugar bom de se estar, um lugar em que ao mesmo tempo que deveria correr dali, eu também deveria enfrentar esse medo e estar com ele, perto dele. Parecia algo sobrenatural, mas a atração que parecia vir de muito tempo por Philip se instalava em mim como um vírus. É um sentimento que jamais senti antes, jamais cogitei em sentir. Um sentimento magnífico, prazeroso e extremamente arriscado.

— Para onde está indo? — Perguntou Melanie, quase não terminado a frase. — Emy, me solta…

Eu a puxava em desespero para longe dali.

— Emy, o que está acontecendo? — Perguntou ela novamente. — Tem outro gato no colégio e você está fugindo…?

— Não é um gato — eu disse. — Só preciso de um ar.

— Você está tonta de novo? — Ela tocou minha testa. — Por Deus, você está suando frio!

Eu assenti.

— Acho que estou ficando doente de novo.

— Você estava doente?

Balancei a cabeça, espremendo meus olhos.

— Deixa pra lá.

Mas eles ainda estavam na minha cabeça. Ambos estavam fincado na minha cabeça.

— Ele é lindo — disse Melanie. — Sério, você já o conhecia? Por que ele tocou logo em você?

Ela fez uma careta.

— Eu não sei — mas eu desconfiava. — Eu nunca o vi antes. E acredite se quiser, senti algo estranho quando ele tocou em mim.

— Ah, eu sei, você quase teve um orgasmo! — Ela soltou um risinho, e quando percebeu que eu falava sério, ela parou de rir. — Emy, acho que você só ficou nervosa, até porque isso nunca aconteceu com você. Talvez ele tenha se interessado, achado você bonita, ou talvez foi só porque você estava passando por ali, na hora errada e no momento errado.

Seria tudo mais fácil se eu conseguisse acreditar nisso.

— É, talvez seja só isso mesmo — menti. Mentir para Melanie era assustador. Era horrível. Ela é minha melhor amiga, mas o pior dos problemas é que ela não sabia sobre meu segredo. Sobre quem eu sou. E eu tenho medo de contar quem eu sou, tenho medo dela achar que eu sou maluca, das trevas, satânica… e ela iria se afastar de mim. Por isso guardo isso comigo.

Nós não tínhamos o tempo de biologia juntas, então assim que ela chegou na sala dela, ela me deu um abraço e sussurrou que tudo iria ficar bem, embora suas palavras saíssem quase como se fosse um simples consolo sobre algo inevitável.

Quando dei meia volta, foi tudo rápido de mais antes de eu colocar minha cabeça no lugar.

— Acho que não fomos apresentados devidamente — o garoto misterioso estendeu a mão para um cumprimento.

— Meu nome é Hedrick Bertrand, tenho dezessete anos e estou em busca de novos amigos. Quer ser minha amiga?

Eu fiquei sem palavras num primeiro instante. Logo depois, percebi que ele esperava uma resposta. Sem saber o que dizer, respondi:

— Ah… sim, podemos ser amigos… — A resposta saiu quase como uma dúvida da minha boca.

Ele sorriu. Uma fileira preenchida por dentes extremamente brancos apareceram para mim.

— Que ótimo! Qual a sua sala, Emily?

— Espera… como sabe meu nome?

Ele demorou uns dois segundos para responder:

— Ouvi sua amiga falando seu nome.

A resposta não me convenceu, mas como eu não tinha escolhas ao tentar não ser monstruosamente antipática, respondi:

— Tenho aula de biologia agora, na sala 7.

Ele voltou a sorrir.

— Que coincidência! Somos da mesma sala! — Ele olhou em um papel com algumas coisas escritas na sua mão antes de responder.

Eu ainda estava com aquela sensação de que eu estava fazendo algo muito, muito errado.

— Você é novo, não é? — Perguntei, depois de notar um silêncio medonho.

— Sim, acabei de chegar de Boston. Viagem cansativa. Tive que correr contra o tempo para chegar aqui.

— Por que saiu de Boston para vir pra cá?

Ele coçou a testa.

— Meus pais se mudaram — ele parecia ter uns vinte anos, e nada dependente dos pais. — Então tive que trocar de escola também. Essa foi a mais próxima de onde moro. Mas e você? Estuda aqui há quanto tempo?

Espera, eu não queria responder perguntas.

— Há dois anos.

E então apressei-me para entrar na sala de aula e sentar no mesmo lugar de sempre, esperando que Philip também se apressasse para sentar do meu lado. Mas Hedrick foi mais rápido: ele sentou exatamente onde Philip senta, e eu quis expulsá-lo dali.

Como ousa?

— Acho que alguém senta aí — alertei.

Ele deu de ombros.

— Tanto faz.

Olhei para a porta, quase implorando para que o garoto aparecesse na sala de aula, o que não aconteceu. Passaram-se uma, duas horas depois, nada de Philip chegar. Onde ele estava? Ele estava na sala de informática hoje de manhã… O que diabos estava acontecendo? Por que ele foi embora? Eu não iria mesmo vê-lo…?

E então Hedrick me cutucou.

— É sempre cheio assim?

Demorei para entender sua pergunta, meus pensamentos não me deixavam escutar direito.

— A sala de aula, é sempre tão cheia?

Ele estava querendo puxar assunto.

— Sim.

E então fingi estar escrevendo alguma coisa.

Mas por um momento, quando lembrei-me de Philip e da sua suposta ida à sala de informática, meu coração acelerou-se. O que será que ele estava fazendo lá? Seria a nossa pesquisa? Não… ele não aparentou precisar de um computador para realizá-la visto que ele entendia de mapas… Talvez ele fora passar o tempo?

A curiosidade começou a lampejar na minha cabeça. As inúmeras possibilidades da sua pesquisa também começaram a surgir como num flash contínuo e interminável. Minha mente girava e eu não consegui me conter.

Guardei minhas coisas na mochila, apressada. Eu senti o olhar de Hedrick queimar em mim, mas eu o ignorei. Saí apressada da sala de aula sem lhe dar alguma satisfação — não que eu devesse.

Atravessei todo o corredor, já vazio. Fui até o final e virei à esquerda, entrando na sala de computadores. De lá, avistei o organizador Smith. Ele olhou para mim como se já me esperasse.

Engoli em seco.

— Oi… hã… hoje de manhã — busquei escolher bem as palavras —, um menino alto… Philip Cambridge — eu estava nervosa — esteve nessa sala e acessou um desses computadores. Ele me pediu para acessar exatamente o mesmo computador que ele acessou porque queria que eu… — Mas antes que eu pudesse terminar a frase, o inspetor aprontou-se a falar:

— Foi aquele ali do canto — ele apontou para o computador mais escondido.

— Obrigada — agradeci e disparei até ele.

Liguei o computador. Era a minha chave, minha única chance talvez. Acessei a web e visualizei o último histórico. Por mais estranho que parecesse, a pergunta era: sons estranhos encontrados ao redor do mundo. Por que diabos ele estaria procurando isso?

Joguei na caixa de pesquisa e de lá, saíram inúmeros resultados.

Depois de alguns minutos, encontrei alguns sites que dizia que o som ainda não fora explicado, embora a ciência esteja tentando encontrar alguns indícios que se relacionem com o magma da Terra. Mas de repente, em um deles afirmava algo sobre trombetas.

As sete trombetas.

Cliquei.

O computador foi rápido, mas meus olhos, lentos. As trombetas angelicais. Os sete anjos. Anjos.

Anjos? Philip se interessava por anjos? Ele era teólogo ou…

Anjos expulsos do céu por contestarem a ordem divina. Há milênios os anjos caíram…

Os anjos convivem entre nós, porém, dificilmente são identificados, pois possuem o único e incontestável desejo de possuir as mulheres, sucumbindo-as, fazendo-lhe filhos.

Algumas características que podemos encontrar nos anjos são: olhos penetrantes; corpo alto e musculoso, marcas nas costas de suas asas quebradas (um anjo caído obrigatoriamente possui suas asas arrancadas como forma de punição); constantes variações de temperatura; poderes sobrenaturais, incontestáveis; sensação de perigo;

Meu coração disparou. Meu corpo inteiro estava estremecido. Grande parte das características se enquadravam nele. O quê diabos estava acontecendo? Seria esse menino… seria…

Sensação de perigo.

Essa frase em específico foi como um golpe dentro de mim. Era exatamente a sensação que eu tinha quando estava com ele… era uma sensação que jamais sentira antes. Imprimi essas páginas e limpei o histórico, certificando-me que ninguém soubesse.

Saí apressada da escola e peguei um taxi até em casa.

Seria Philip mesmo um anjo? Por que isso estava acontecendo? Quem ele era realmente? O que afinal ele queria comigo?

— Vinte e um dólares — respondeu o taxista. Peguei o dinheiro e o troco.

Quando saí do carro e respirei o ar fresco novamente, nada estava bom. Por algum motivo, a sensação de desespero me invadiu, mesmo tudo parecendo bem dentro do possível.

De repente meus pais me vieram à cabeça. E tudo o que eu consegui fazer foi correr. Subi alguns lances da entrada da casa. O ar ficou pesado, minha cabeça latejou. A chave não entrava, eu não conseguia achar a chave.

Quando abri a porta, eu desmoronei.

Ali, vi duas figuras caídas em poças de sangue com suas gargantas cortadas. O mundo girou, meu coração apertou e meu estômago revirou.

Era os meus pais.

Mortos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então? Comentem o que acharam!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Anjo Mau" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.