Filhas de Dandara escrita por Luna Nebulosa


Capítulo 1
O aço das novas correntes não aprisiona a mente


Notas iniciais do capítulo

A música: https://www.youtube.com/watch?v=122kwdWN-v0



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I



Enquanto o couro do chicote cortava a carne,

A dor metabolizada fortificava o caráter;

A colônia produziu muito mais que cativos,

Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos;

Josefa caminhava tropega para os fundos da casa, o líquido translúcido escorria por entre suas pernas e ela sentia a dor tomar conta de cada um de seus poros. Correu o mais rapidamente que conseguia − mesmo com a dor excruciante que a tomava por inteiro − e chegou próxima a uma árvore, já no meio da mata, sentindo aquele ser que lutava para vir ao mundo, escorrendo por entre suas pernas.

Deixou-se cair no chão − exausta −, rasgou a barra do vestido surrado e amassou o pano para enfiá-lo na boca. Fez força. Sentia como se seu corpo fosse estourar por completo, o grito agudo era abafado pelo pano sujo. Respirou profundamente, e fez força mais uma vez, seu corpo se contraía por inteiro e o suor escorria pesado pela pele escura. Ela sentiu que a cabeça finalmente estava saindo, subiu o vestido e puxou a criança pela cabeça de forma desajeitada, melando as mãos com o sangue que vinha junto; continuou a fazer força, respirou fundo e pariu os ombros − especialmente dolorosos − e finalmente as pernas.

A criança chorava alto, com agudeza. Josefa o embalou no pano velho que trouxera consigo e cortou o cordão umbilical com o facão que usara para cortar as batatas do almoço. Sentia-se fraca, o sangue escorria por entre suas pernas, Josefa segurou a criança em seus braços magros e a fitou por um instante, era mais clara que ela, mas não tão clara quanto o pai − o senhor da fazenda que a dominava diariamente para lhe usar e depois jogar fora como a um par de botas velhas.

Josefa agradeceu pela gravidez, pois assim ele não se aproximava dela; barrigas grandes e redondas não eram atrativas, então ele se voltava para outras escravas − as mais moças e mais bonitas, geralmente. Ali, no entanto, ela estava derrotada, não conseguia se levantar, mas precisava terminar de preparar o almoço que deixara nas mãos da velha ama, Joana, caso contrário, iria para o tronco, não importando os motivos. Respirou fundo e enrolou o cordão umbilical ao redor do pescoço da criança; era uma menina, ela quis se certificar antes. Não deixaria que sua filha vivesse naquele mundo e sofresse o mesmo que ela sofrera.

Apertou o cordão ao redor do pescoço da criança e permaneceu assim, observando com as lágrimas grossas a lhe escorrerem dos olhos sem parar, enquanto o pequeno rostinho começava a ficar levemente arroxeado. Finalmente, após alguns instantes, ela parou de respirar e Josefa pôde, finalmente, adormecer.

O sangue que escorria por suas pernas continuou a escorrer, até formar uma enorme poça vermelha ao seu redor. Os dois corpos foram encontrados dias depois pelo filho do senhor da fazenda.

As duas − mãe e filha − foram jogadas em uma vala comunitária e esquecidas ali, apodrecendo e sendo devoradas por urubus e outras pestes similares.



II



Não fomos vencidas pela anulação social,

Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial;

O sistema pode até me transformar em empregada,

Mas não pode me fazer raciocinar como criada;

Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,

As negras duelam pra vencer o machismo,

O preconceito, o racismo;

Lutam pra reverter o processo de aniquilação

Que encarcera afros descendentes em cubículos na prisão;

Não existe lei maria da penha que nos proteja,

Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza;

De ler nos banheiros das faculdades hitleristas,

Fora macacos cotistas;

Angela esfregava o chão da faculdade com força, sabia que dali há meia hora os burgueses metidos iriam arrumar algum jeito de sujar tudo apenas para obrigá-la a limpar tudo de novo: eu estou sujando para dar emprego para a mulher da limpeza. Angela tinha vontade de morrer − ou de matar, também.

Quando o intervalo entre as aulas chegava, Angela podia descansar alguns minutos ou comer alguma coisa, mas, ao invés disso, corria para a biblioteca e observava os livros pousados um a um nas prateleiras de madeira. Eram poucos os alunos que passavam o intervalo ali − eram também, geralmente, os mais gentis, que precisavam de bolsa de estudos e por isso estudavam dobrado; eram aqueles que conheciam a vida de Angela, ou chegavam perto de conhecê-la.

Os patrões não permitiam que Angela lesse no horário de trabalho − mesmo que o trabalho todo estivesse feito −, mas a bibliotecária, dona Ana, sempre permitia que ela levasse os livros para ler em casa quando desejava. Angela pegou um livro e levou para que dona Ana marcasse, então voltou para o corredor ouvindo enquanto alguns garotos − filhos de pais ricos − sussurravam − não tão baixo assim − coisas como ‘macaca’, ‘cabelo de esfregão’ e ‘mulata’.

Angela engolia em seco, fingia que não ouvia.

Corria para o banheiro, e lia seu livro de páginas amareladas sobre Dandara e suas capoeiristas, e chorava baixinho até o intervalo acabar.

III



Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão,

Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação;

Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador

Falharam na missão de me dar complexo de inferior;

Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu,

Meu lugar não é nos calvários do brasil;

Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro,

É porque a lei áurea não passa de um texto morto;

A existência de Niara era, por si só, um desafio. Mulher, negra, lésbica, feminista, universitária, orgulhosa e atrevida. Seu cabelo era um black power enorme para chamar toda a atenção, quanto mais tentavam anular sua identidade, mais ela se fortalecia. Niara cresceu estudando em escolas particulares − sempre como bolsista − e era, invariavelmente, a única aluna negra da classe em todos os anos em que estudou. Na infância, estava acostumada a ouvir gracinhas como ‘cabelo de bombril’ ou ‘volta para a senzala’; naquela época, as palavras a feriam como lâminas afiadas, mas com o tempo − e muitas repetições de sua mãe de que ela era perfeita exatamente como era − Niara aprendeu a transformar o preconceito em sua força.

Assim, quando adentrou na universidade e era − novamente − a única aluna negra da turma, ela decidiu que faria disso a sua marca registrada. Parou de fazer progressiva, de escrever em formulários que se considerava ‘parda’ e passou a aprofundar seu conhecimento em relação a cultura africana − algo que ia muito além das duas páginas dos livro de História falando sobre a escravidão e sobre a abolição da escravidão. Descobriu que a Africa, e a negritude em si, não eram apenas subalternas de pessoas brancas. Descobriu que o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, era negro, filho de um mulato e de uma lavadeira. Encontrou Martim Luther King, Nelson Mandela e Dandara, ah, Dandara − a capoeirista que lutou até morte para libertar os escravos e deu sua vida por aquilo que acreditava.

Niara ainda era vista com desconfiança por alguns alunos burgueses de classe média, ainda era o alvo favorito dos policiais, ainda sofria descriminação quando entrava em uma loja de grife, ainda ouvia gente perguntando porque ela não alisava o cabelo ou porque não parava de usar aqueles turbantes enormes. Mas nada disso fazia com que se desanimasse, juntava-se aos seus irmãos e irmãs de cor, com os cartazes, o orgulho e suas vozes entrelaçadas, e gritava:

− Eu sou da África!

IV



Não precisa se esconder segurança,

Sei que cê tá me seguindo, pela minha feição, minha trança;

Sei que no seu curso de protetor de dono praia,

Ensinaram que as negras saem do mercado

Com produtos em baixo da saia;

Não quero um pote de manteiga ou um xampu,

Quero frear o maquinário que me dá rodo e uru;

Fazer o meu povo entender que é inadmissível,

Se contentar com as bolsas estudantis do péssimo ensino;

Cansei de ver a minha gente nas estatísticas,

Das mães solteiras, detentas, diaristas.

O aço das novas correntes não aprisiona minha mente,

Não me compra e não me faz mostrar os dentes;

Mulher negra não se acostume com termo depreciativo,

Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino;

Nossos traços faciais são como letras de um documento,

Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos;

Fique de pé pelos que no mar foram jogados,

Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.

Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria

É atrair gringo turista interpretando mulata;

Podem pagar menos pelos os mesmos serviços,

Atacar nossas religiões, acusar de feitiços;

Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira,

Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra;

[Refrão]

Mulheres negras são como mantas kevlar,

Preparadas pela vida para suportar;

O racismo, os tiros, o eurocentrismo,

Abalam mais não deixam nossos neurônios cativos.

Elas são apenas algumas das que sofreram tanto. Das mães que choram pelos filhos mortos, e que matam os filhos por ser o melhor, que tiram os filhos por falta de tudo, principalmente de amor e compreensão. Elas são soldados, são sobreviventes, são guerreiras, são mulheres, são a força. Foram escravizadas, mortas, exploradas, abandonadas, largadas, deixadas de lado, usadas e reutilizadas. Objetificadas.

Elas são a prova de crimes centenários, de crueldades ilimitadas, de sonhos quebrados, de vidas ceifadas, de sorrisos roubados, de choro frio. É a escrava explorada, a criada humilhada, a estudante de fibra. A mulher negra que levanta a cabeça, carregando todas as suas feridas abertas, e grita.

Grita pro mundo escutar.

As filhas de Dandara resistem.


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Notas finais do capítulo

Eu realmente espero que tenha ficado legal!
Comentem, critiquem, façam o que quiserem, só não me deixem no vácuo!
Beeeeeijos! :3



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