Coração De Seda escrita por Maria Fernanda Beorlegui


Capítulo 83
Capítulo 83


Notas iniciais do capítulo

Continuando...



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—Anippe. —Ouço uma voz masculina chamar por mim enquanto ando pelo palácio. Eu então me deparo com Seti. —Você sabe quem eu sou, não sabe?


—Apesar de nunca ter visto de verdade, sei quem você é. —Falo ao ficar frente a frente com o homem. —Por que estou aqui?


—Esse é seu lugar. —Seti fala ríspido me fazendo perder a paciência. —Seu lugar é aqui, não em meio a um povo imundo.


—Meu povo. —Falo alterada o fazendo rir. —Você morreu sem o perdão da sua filha. Acaso estamos no inferno?


—É para onde toda a nossa família vem. —Meu avô fala me assustando. —Até mesmo os de boa índole.


—Não acredito em você. —Falo incrédula. —Minha mãe não merece ir ao inferno quando morrer.


—Quando ela morrer? —Seti indaga ao vir até mim. —Seu lugar é comigo, Anippe.


—Porque? —Pergunto e então ele olha para o vago.


—Porque você é como eu, Anippe. —Seti fala ao olhar para mim. —Mesmo tendo sangue hebreu, eu te admiro pelo fato de ser quem é.


—Farsa. —Falo ao olhar bem nos olhos de meu avô enquanto o vento sopra as cortinas das janelas do corredor. —Porque o palácio mudou? Não deu ao entender que estamos em um inferno particular? Ou era apenas um...


—Era assim quando sua mãe nasceu. —Meu avô fala e então atravessa a cortina clara e me deparo com o Egito e o Nilo adiante. —O Nilo vinha até aqui nas cheias.


—É lindo. —Falo. —Não pode ser o inferno.


—Mas é o meu. —Seti fala com a voz embargada. —Consegue ver e sentir a paz? Ela é na verdade o meu tormento.


—Como? A paz é a melhor coisa que existe. —Falo e então o meu avô fica ao meu lado.


—Mas eu não vou ter paz enquanto a sua mãe não tiver. —Meu avô fala me fazendo sorri de lado. —Ah Anippe, sua mãe nasceu em meio a uma obra da natureza. Quando rio Nilo transbordou... —Ele fala e então eu posso ouvir gritos.


Eu então vejo o Nilo chegar próximo ao palácio, mas logo vejo também uma mulher grávida acompanhada por outras mulheres e um jovem rei. Logo eu entendo tudo, estou em um sonho e nesse sonho estou vendo o nascimento de minha mãe.


—Vai nascer. —A rainha fala ao ver algum líquido descer por suas pernas. —Pelos deuses, vai nascer!


—Quando o Nilo transbordou, Tuya entrou em trabalho de parto. —Meu avô fala enquanto a imagem do rei e da rainha passam por nós. Totalmente intocáveis.


—Minha mãe. —Falo ao chorar de alegria ao ver tal coisa.


—Espere um pouco. —Meu avô pede ao ver que quero ir atrás de Tuya. —Eles não podem nos ver.


—Eu notei. —Falo enquanto ando de um lado para o outro. —Mas eu não sei se quero ver. —Falo assustada fazendo meu avô rir.


—É essa lembrança que me faz ficar aqui. —Seti fala prestes a chorar. —Todos os dias, eu vejo essa memória e me lembro de Henutmire.


—Faça força. —Ouço uma voz feminina falar enquanto o rei sai dos aposentos da rainha.


—Eu mal sabia o que era ter medo. —Meu avô fala ao olhar para ele mesmo no passado. —Tive medo, receio, alegria, amor. Todos os sentimentos ao saber que tive uma filha. Mas Tuya tinha o sentimento de culpa por ter me dado uma filha, não um filho.


—Não se sentiu desapontado? —Indago.


—Não. Apenas o choro da sua mãe me foi suficiente. —Meu avô fala e então ouvimos o choro de uma criança recém nascida ecoar.


—A rainha teve uma menina? —Ouço a parteira falar ao ver o sexo da criança.


A parteira então embala minha mãe nos braços, digo, a criança. Ela então passa pela rainha Tuya e sai dos aposentos com a criança nos braços e olha para o faraó Seti. —Meu avô então se vai me deixando sozinha com a miragem. Então eu posso ver o rei embalar a princesa nos braços. —Seti pegou sua filha nos braços e sorriu mesmo com o temor nos olhos da parteira.


—Não é uma príncipe herdeiro, soberano. —A parteira fala enquanto Seti passa pelo corredor com a filha nos braços. Eu o sigo e então posso ver o quanto emocionado ele está.


—É minha filha. —Seti fala ao voltar sua atenção para a parteira. Ele então olha e ergue a filha para o alto próximo a janela, fazendo a parteira pensar o que não deve pensar.


—Ele vai matá-la. —A parteira fala baixo enquanto olha para Seti assim como eu.


—Henutmire. —Seti fala ao dar voltas com a filha erguida para o céu enquanto o Nilo transborda. —Princesa Henutmire. —Ele fala no momento em que a criança para de chorar, no entanto ela ergue seus braços e seus olhos observam tudo a sua volta. Seti beijou o rosto da criança totalmente emocionado. Quando me dei conta já estava chorando como minha mãe sempre chora.


Acordo desvairada no meio da noite após sonhar e ver algo muito parecido como uma conversa entre mim e meu avô. Era tudo muito real, como se sua alma me pedisse para ver o dia em que minha mãe nasceu. Tento não me assustar, mas de fato foi muito real. Seti está preso. Ou melhor, sua alma está. E todos os dias ele vê aquela lembrança para se acalmar. Mas eu vi no seu olhar, bem logo no início, que Seti queria mesmo era ver outra pessoa, certamente minha mãe. Não posso acreditar que há uma ligação entre os vivos e os mortos, não como é retratado nas crenças egípcias. —Mas foi o que aconteceu. Seti e eu estávamos em uma conexão espiritual muito forte. Foi como se eu estivesse falando com uma pessoa que viu minha mãe nascer e crescer. —O sorriso de meu avô, o Nilo transbordando, o choro do bebê Henutmire, o espanto da parteira ao ver que o herdeiro do rei era uma menina, o palácio totalmente diferente do que é hoje, todos esses detalhes me fazem acreditar que foi apenas um sonho, mas ao mesmo tempo me fazem acreditar que tudo foi muito real.


—Anippe. —Ouço alguém me chamar e então me levanto, quando saio me deparo com Miriã.


—Me deixa em paz, Miriã. —Falo de imediato mesmo vendo que ela está calma. —Sonho com os mortos e me aparece você.


—Sonhou com seu pai? —Miriã pergunta curiosa.


—Não, foi com meu avô Seti. —Falo.


—Sonha com ele mesmo sem conhecer. —Miriã fala intrigada. —Bom, mas eu não vim falar de Seti. —Ela fala enquanto eu olho para ela dos pés à cabeça e enrolo a ponta do meu cabelo em meus dedos. —Vim falar de nós duas. —Suas palavras me causam espanto, talvez um certo asco. —Não me olhe assim.


—Esperava que eu olhasse para você como sempre esperou que meu pai olhasse? —Pergunto sem pensar. —Sinto muito, não gosto de ser conivente com isso. Deve ser doloroso ver que não sou como ele, não é?


—Você e Uri são a mesma coisa. Ouvi dizer que eram carne e unha. —Miriã fala me fazendo lembrar do meu irmão. —Hur deveria ter muito orgulho de vocês dois.


—Nem tanto. Eu e Uri juntos dávamos muita dor de cabeça ao nosso pai. —Falo. —Djoser era o que mais se parecia com meu pai e com minha mãe. Uri herdou o lado negativo que meu pai nunca demonstrou, assim como eu herdei a rebeldia que minha mãe um dka teve.


—Já Djoser não. —Miriã fala e eu posso ver um brilho no seu olhar. —Uma mistura física de Henutmire e Hur, com a mesma bondade, a mesma compreensão. Eu me lembro de quando vi você e ele pela primeira vez. —Ela fala. —No cortejo do rei, pareciam um rei e uma rainha, você de mãos dadas com seu irmão, e seus pais também. —Ela fala nostálgica. —Seti ficaria orgulhoso por ter vocês como netos, mesmo que com sangue hebreu, mesmo que... Mesmo que qualquer coisa, Seti amava tudo o que vinha de Henutmire. Se ele pudesse ver Djoser, certamente ficaria orgulhoso.


—Djoser é hebreu, Miriã. Seti nunca iria aceitar o meu irmão. —Falo. —Mas Djoser nasceu para ser rei.


—Henutmire deu para Hur o que nenhuma mulher poderia dar, nem mesmo Léia, mãe de Uri. Henutmire deu um filho que mais tarde será rei, senhor absoluto do Egito. O que mais me dói é ver que Djoser é a cópia ambulante dos pais, e que vai se tornar rei! —Miriã fala brava. —Eu passei a odiar Djoser desde que a gravidez da sua mãe foi anunciada. Desejei todos os dias que ele não nascesse com vida, somente para Hur sofrer. Mas logo me arrependi porque sabia que sua mãe iria sofrer ainda mais. Então, quando soube que a princesa sofreu um princípio de aborto na época em que os príncipes da Núbia estavam no Egito, orei pedindo a Deus que deixasse seu irmão nascer vivo. E que eu sempre iria orar pelo filho do homem que eu amo, mesmo ele sendo de outra mulher.


—Não venha me dizer que Djoser se salvou por isso, Miriã. Meu irmão nunca se importou com você, se lhe dirigiu a palavra, foram duas ou três. —Falo estarrecida. —Sou grata pelo meu irmão não ter se abatido tanto com você.


—Mas ele deveria.


—Não, não deveria. Djoser não liga para pouca coisa. —Acabo menosprezando Miriã.


—Anippe, você está amargurada. —Miriã fala me fazendo rir. —Eu entendo e por isso vim aqui me desculpar.


—Miriã, eu acho que qualquer outra pessoa iria entender que você não é nada para mim. Não importa o que aconteceu com você e meu pai, nem que você seja irmã de Moisés, você é como uma pessoa comum para mim. Não adianta você querer se aproximar de mim, ou me odiar. Eu simplesmente não quero ser nada sua. Nem sua amiga, nem sua inimiga, nem sua irmã... —Falo de uma vez sem parar, talvez assim Miriã entenda. —Por isso evite me dirigir a palavra.


—Eu só quero me desculpar por ter batido em você. —Miriã fala de cabeça baixa. —Bom dia. —Ela fala antes de me dar as costas. Me deito novamente e tento não pensar em Miriã.


(...)


—Quer mais trigo? —Pergunto para Leila.


—Não, já é o suficiente. —Leila fala agradecida. —Já sabe como vai voltar para casa?


—Já mandei uma resposta para Djoser, mas até agora nada. Espero que ele venha logo. —Falo. —Quero conhecer o meu irmão, ou irmã.


—Já deve ter nascido. —Leila fala risonha. —Gostaria de ir e ajudar sua mãe, mas acho que seria inadequado.

 

—Claro que não. —Falo e então um sorriso cresce no rosto de Leila. —Logo voltaríamos para cá.


—Gostaria de ajudar a sua mãe. Agora que Hur morreu, o que deve estar se passando na mente dela? —Leila pergunta.


—Eu não sei. Eu estou completamente perdida com tudo isso. —Falo. —Eu pensei que meu pai nunca fosse morrer.


—Não era para ele ter morrido agora, não da forma como morreu. Seu pai não tolerava violência, e morrer da forma bruta como morreu... —Leila fala pensativa. —O que foi isso no seu braço? —Ela pergunta ao ver o arranhão.

—Eu estava no rio, quase me afoguei. —Falo. Leila então larga tudo o que está fazendo e vem até mim. —Até que um homem desconhecido me salvou.


—Homem desconhecido? —Leila pergunta assustada.


—Nunca vi esse homem, no entanto, ele me salvou. —Falo, deixando Leila assustada.


—Não vá mais para o rio. Só Deus sabe quem é esse homem.


—Ele trajava vestes escuras, não vi seu rosto. Apenas sei que ele me salvou. —Falo. —Não pode ser daqui.


—Ou pode e você não sabe. —Leila fala pensativa.


—Mas agora eu estou bem. —Falo. —Foi apenas um susto.


—Não se meta em nenhuma confusão. Já basta saber que seu pai morreu, ninguém vai aguentar saber que você morreu também. —Leila fala ao voltar para seus afazeres.


—Eu quase morri. —Falo. —Quem poderia ajudar um desconhecido?


—Seu pai faria o mesmo, Anippe. —Leila fala como uma reflexão. —Não importava quem fosse, seu pai era bom com todos.


—E eu sendo injusta com ele. —Falo. —Ainda bem que antes de sair do Egito, tive o perdão dele.


—Não foi como Henutmire e Seti. Que ele morreu, e ela não deu seu perdão. —Leila compara. —Eu me lembro bem pouco da relação deles. Mas meu sogro falava que, desde que chegou ao palácio, ouvia que filha do rei era a única que nunca acatava ordens.


—Meu pai disse que Uri sempre o repreendia quando ele olhava para minha mãe.


—Uri estava certo. Até então sua mãe era casada com o general, sabe-se lá o que ele poderia fazer. —Leila fala apreensiva.

—Se não fosse um pecado, agradeceria todos os dias por Yunet ter matado Disebek. —Falo, causando espanto em Leila.


—Tudo aconteceu muito rápido. A morte de Disebek, o noivado dos seus pais, o casamento, a cerimônia... —Leila fala nostálgica. —Uri estava nervoso, chegou a chorar de felicidade por ver o pai casado.


—E como foi depois do casamento?


—Parecia que era o fim. Digo "fim" porque era a maior felicidade, até sua mãe começar a passar mal, enjoar... —A cada palavra de Leila, meu sorriso aumenta. —E quando eu dei conta estava ao lado dela trazendo Djoser ao mundo. —Fala. —Quando você e Djoser eram crianças, a melhor parte do dia era ir até a oficina do pai de vocês com a senhora Henutmire. —Leila fala, mas logo volta ao seu trabalho ao ver Yaffa entrar na cozinha.


—Atrapalho? —Yaffa pergunta e então Leila me lança um olhar repreendendo a garota.


—Claro que não. —Falo.


—Djoser mandou papiro para você. Moisés disse que um mensageiro real trouxe hoje bem cedo. —Yaffa fala e me entrega o papiro. Eu de imediato abro-o.


"Sei que deve estar melancólica pela morte do nosso pai, mas lhe trago boas e más notícias. A boa é que prendemos Amun, mas não diga nada para Yaffa, Anippe. Faça por onde deixá-la contra o pai. Minha vingança contra Amun será pior de tudo o que já viu. Não espere que eu vá agora em busca de vocês, diga para Yaffa que irei buscá-la quando eu me tornar rei, quando tiver a maior idade alcançada. Não quero começar minha vingança agora, preciso fazer Amun pagar trancafiado para depois ver sua filha sofrendo em minhas mãos. Está perto do meu décimo sexto aniversário, em dois anos irei até onde vocês estão. Nossa mãe teve uma menina faz dois meses, se chamava Lyanna. Digo que se chamava porque Lyanna morreu faz quase dois meses, ela não tinha a saúde que precisava. No dia de seu nascimento, nossa mãe quase desfaleceu, imagine a minha situação ao explicar para ela que Lyanna amanheceu morta no cesto que foi dado pelo nosso pai? Foi doloroso, muito doloroso. Mas se acha que aqui acaba as notícias ruins, se engana. Nossa mãe enlouqueceu, Anippe. Gab e eu tivemos que levá-la para longe do Egito, ela agora está no Vale dos Lírios, na Núbia. Lá ela ficará longe de todo o tormento."

 


—Anippe? —Leila chama por mim assim que termino de ler o papiro. —Anippe, você está pálida. —Ela fala assustada com a minha reação.


—Aconteceu algo grave? —Yaffa pergunta me tirando do transe. Eu então respiro fundo antes de falar.


—Djoser virá te buscar quando ele se tornar rei. —Falo para Yaffa. —Quando completar a maior idade.


—O aniversário dele está bem próximo. —Leila fala ao se lembrar da data em que Djoser nasceu.


—Vai demorar muito... —Yaffa lamenta.


—Minha mãe teve uma filha. —Revelo e vejo os olhos de Leila brilharem. —Mas a criança morreu. —Minha revelação assusta as duas. —Era fraca, doente. —Ressalto. —Lyanna se tornou um anjo no céu e está ao lado de meu pai e meu irmão.


—Lyanna... —Leila repete o nome da minha irmã. —E Henutmire?


—Sua mente morreu, há apenas um corpo sobre a terra. —Minha revelação choca ainda mais. —Tudo isso porque seu pai queria o trono. —Falo olhando para Yaffa, que logo se assusta. Tomada pela fúria, pego uma faca e então tomo o braço de Yaffa. Cravo o metal em sua pele clara, exatamente em seu punho e arranho alguns centímetros até vê-la sangrar.


—ANIPPE! —Yaffa grita assustada ao ver o sangue jorrar descontroladamente. Eu então ponho o papiro do fogo e antes de sair da cozinha, olho para a filha de Amun pela última vez.


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Notas finais do capítulo

Será que Lyanna morreu? Será que Henutmire enlouqueceu mesmo? E melhor, será que Amun de fato está preso? Ou então Djoser está mentindo? Fica os ?¿ no ar.
E os sonhos da Anippe? Essa menina tem futuro.
Gente, eu tenho uma má notícia para vocês. Se lembram que falei de um especial narrado por Djoser? Então... Aconteceram várias coisas e eu decidi cancelar ele. Mas eu prometo suprir a falta dele, ok? Até o próximo capítulo.



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