Estrela da Babilônia escrita por Nidhoggr


Capítulo 7
Capítulo 7 - O Pequeno Sargon


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo era para ser postado no fim de Setembro, mas tive pequenas dificuldades que acabaram fazendo com que eu atrasasse a publicação em um pouco mais de um mês.



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Na manhã seguinte eu aprendi o que de fato é acordar no toque da trombeta a começar pelo empurrão de Aberash e os berros de “se levanta!”, “pega uma roupa ali!”, “pega uma roupa de homem ali!”, “amarra esse cabelo se não vai embaraçar!”, “calça um sapato!” e por último: “põe o pão na boca e se arranca daqui!”.

Essa ladainha só acabou quando eu soltei minha primeira frase do dia:

— Me arrancar pra onde?!

— Primeiramente, bom dia. – Foi a resposta de Aberash. – Esqueci que você não conhece nada... Que bela porcaria.

Não preciso entrar em detalhes no fato que as mulheres levam horas para se arrumar e que no caso de Aberash não era diferente. Acredite ou não, foi um choque ver que o cabelo dela parecia uma lã de ovelha quando solto das tranças. Não me julguem, ela foi a primeira núbia sem cabeça raspada que eu conheci, sendo minha referência anterior o homem que me trouxe para a cidade. A quantidade de coisas que as mulheres colocam na cabeça, nos dedos e no pescoço só impressiona menos que a quantidade de pano que usam. Juro que a vi colocar três camadas de roupas, sendo uma blusa de mangas compridas com um enorme corte vertical no meio, uma saia rosa, um tipo de saia com mangas verde e por fim um casacão vermelho cheio de espirais e tranças amarelas. Não, aquela coisa verde não era um vestido.

Adivinhem se ela não me obrigou a colocar as vestes do mestre Dilshad. Uma blusa virou um vestido de mangas compridas e para dar uma disfarçada ela me emprestou um de seus mantos coloridos infantis. Há quanto tempo Aberash estava vivendo ali?

Eu ainda aguardava pela vinda dos homens, mas aparentemente a núbia queria me entregar diretamente nas mãos deles. Pelas ruas ela me puxou pelo caminho da procissão, depois passamos pelo Etemenanki e a grande Esagila de Marduk, cruzamos o rio em um pequeno bote (em minha opinião, pequeno demais para o preço que o barqueiro cobrava) que balançava mais que uma folha ao vento. Para um rio que podemos ver claramente a outra margem, a travessia foi tão longa que Aberash acabou por puxar conversa comigo:

— E esse anel aí? – Acreditem ou não, mal percebi que fiquei acariciando-o durante todo o trajeto. – É importante para você?

Hesitei em dizer aquilo na frente do barqueiro, porém já é visto que minha boca é impossível de ficar fechada, então acabei contando:

— Muito.

— Um tipo tão simples me faz pensar que é de um amigo.

— É da minha mãe. – Eu disse por fim. – Eu acho que é.

Aberash me olhou por uns instantes sem entender muito o que eu disse. Eu consigo até entendê-la, pois que tipo de pessoa “acha que é da mãe”, não? Por isso, acabei explicando:

— Eu... Fui morar no palácio quando eu era pequeno. Minha mãe não. Eu só a vi quando... Antes de eu vir para cá. Pouco tempo, peguei dela. Não sei se era minha mãe realmente, mas...

— Já entendi. Você não sabe ao certo se era sua mãe, mas acredita que sim. Tem um motivo para isso?

Dessa vez eu não respondi.

— E seu pai? Não te deixou nada?

— Minha mãe não sabe quem é meu pai, então eu também não sei.

Ouvi o barqueiro soltar uma risadinha nesse momento. Ah, miserável.

— Puxa... – Aberash fez uma expressão que eu conheço bem: aquela que todos fazem quando não há o que dizer sem soar chato, ofensivo ou qualquer coisa que não seja interessante. – Que chato, não é?

Passando pelo rio, continuamos seguindo mais para o oeste, cada vez mais longe, até chegar perto do portão de Adad, parando em uma casa ali por perto onde um homem estava ocupado na porta fazendo um cesto. Aberash só deu uma tossida curta como cumprimento e já foi entrando sem permissão, um tipo de atitude que não consigo compreender até hoje. Uma serva, ainda por cima mulher e estrangeira, conseguindo facilmente entrar na casa de pessoas comuns soava tão estranho que eu me perguntava o que ela tinha feito no passado. Boa coisa não poderia ser, creio.

A casa em si era tão comum que fazia o ambiente de trabalho de Dilshad um luxo puro: ali mal tinha um tapete no chão, cortinas pobres nas janelas e um forno largo. Lá dentro estava uma mulher amassando um de diversos rolos que se tornariam pães e o mesmo menino parrudo de nome Sargon que, diferente de mim, estava comendo um pão quentinho. Na casa de Dilshad comer um pão ainda macio era um luxo. Inconscientemente lambi os beiços pela vontade de comer algo como aquele pão quente. Ouvi Aberash falar algumas coisas, mas não prestei atenção em nem mesmo com quem ela estava falando e apenas acordei desse meu pequeno transe quando o pão na mão de Sargon sumiu e ele fez um gesto para que eu o seguisse para mais adentro na casa. Não sei que tipo de instinto foi aquele que obrigou meus braços a se grudarem nas roupas de Aberash e ainda tentar me esconder atrás dela, mas foi bem isso o que aconteceu até ela conseguir me desgrudar. Olhe, é mais fácil tentar separar um bezerro enquanto ele mama em uma vaca. Mas, no fim acabei seguindo Sargon até um cômodo pequeno que interpretei como seu quarto. Ele estava separando algumas vestes em uma caixa, boa parte delas em bom estado. Lembro-me de ter começado uma conversa com ele de forma tímida, provavelmente perguntando o que estava acontecendo, mas os detalhes me são falhos agora, sei apenas que quando ergui uma blusa de baixo amarela soltei a pergunta:

— Você só usava essas para eventos especiais?

— Para qualquer coisa. – Sargon me disse. – Elas só ficaram apertadas em mim porque cresci muito.

— Você tinha o quê? Cinco anos quando usava essas?

Minha pergunta parecia fazer total sentido: Sargon não parecia ser muito mais velho que eu e era capaz de dar dois de mim, então tive a impressão que eram roupas de quando ele era realmente muito novo.

— Tinha sete.

— Quantos anos você tem agora?

— Oito.

Quase derrubei as saias que eu estava experimentando por conta da surpresa. Como alguém dobra de tamanho em um ano?! Dei uma engasgada tão forte que demorei muito para conseguir articular novas palavras:

— ... Deixa eu adivinhar... Você é soldado...? Há... Um ano?

Sargon deu uma risada alta e rápida antes de me mostrar a última peça que poderia caber em mim.

— Não mesmo, só trabalho no campo. – Acho que pela minha expressão de dúvida, ele continuou me dizendo o que fazia: – Mas eu atiro muito bem.

Metade das roupas que experimentei ficaram muito largas para mim, mas saí com elas também para que servissem para quando eu crescesse um pouco mais. Aparentemente Dilshad queria ter o mínimo de gastos possíveis comigo. Aberash levou as vestes embora, me deixando com a família de Sargon com a idéia que eu iria ficar bem ali até dar a hora de ir trabalhar, coisa de dali poucos minutos. Não me lembro de quase nada da mãe de Sargon, no entanto eu nunca me esqueci que ela me ofereceu um dos pães quentinhos, muito melhores que os pães secos que o mestre Dilshad só trazia de noite para casa para serem comidos pela manhã. A sensação não é igual. Pão é um assunto sério.

Com as calças, a blusa e as sandálias que melhor me vestiram na questão de conforto, passamos pelo portão de Lugalgirra, ao norte, Sargon sempre a me dizer mais ou menos como eu deveria me comportar no campo, que íamos ter um almoço rápido, mais trabalho e antes do sol se por conheceríamos seus colegas que estavam aprendendo a como ser um bom soldado. Ele me disse também que já estudou com Dilshad e que só parou porque a vida ficou difícil desde que seu pai adoeceu e perdeu quase toda a visão. “Ele não consegue mais enxergar o que está longe”, algo assim. Desde então, Sargon passou a trabalhar. “Trágico” é o que eu teria dito no caso de todos os meus sonhos, ou quem sabe só um, não estivessem estilhaçados como o de Sargon servir diretamente o Xá. A vida não é como nós queremos, aceitar esse fato dói menos que viver se perguntando “o que fiz de errado para merecer isso?” além de ser mais dinâmico, um oposto do atraso de vida que é viver se lamentando pelo que fez ou deixou de fazer. Não é o que estou fazendo agora? Minha vida está em seu fim, não vejo motivos para não reclamar dela agora, dizer o quanto ingrata ela me foi. Quando jovem, eu não tinha moral para dizer essas palavras. Espero que ninguém nunca tenha motivos para reclamar da vida na tenra idade e se possível nem mesmo na velhice.

Ao longo dos campos eu via a tênue linha do horizonte rosa e distantes muros claramente menores que os da cidade. De fato as pessoas que construíram a cidade prezavam a segurança e as que lá viviam prezavam ainda mais, tanto que as grades da gaiola que me fechavam aos poucos se tornaram tão confortáveis que passei a me sentir seguro atrás dos muros com a falsa idéia de que nada no mundo exterior, nem mesmo os deuses, poderiam me causar mal algum.

Outras crianças trabalhavam conosco, acredito que devia ter uma ou duas meninas em todo o grupo. Sargon não fez questão de me apresentar para ninguém, só de me arrastar com ele para os lotes de trigo e dar uma foicezinha medíocre para fazer cortes nos pés de trigo.

— Primeiro você corta o quanto você aguenta levar, depois senta, pega uma corda e vai medindo siclos. – Sargon começou me explicando ao me dar uma corda longa e fina, fácil de cortar. – Mediu um, amarra. Mediu outro, amarra. Deu sessenta, amarra numa mina sem desamarrar os siclos.

— Não é mais fácil amarrar logo uma mina?

— Se um tio te pedir dois siclos você vai ficar perdendo tempo medindo de novo? O serviço tem que ser rápido, profissional, dinâmico. E se no fim não der uma mina, aí tem coisa errada.

— Depois que eu tiver a mina, o que eu faço?

— Amarra pra fazer um talento leve, e tal. Depois que tiver dois talentos leves, amarra um no outro e arrasta. Entendeu?

— Entendi que no fim vai ter mais corda que trigo.

Sargon inicialmente ficou com a cara fechada para mim, quase me fazendo ter certeza que tinha ofendido o trabalho dele, mas depois deu um empurrão pouco amigável (mas, pela cara dele, eu acho que ele estava tentando ser legal sem ter muita noção da própria força) e disse exatamente essas palavras:

— Tá aprendendo rápido, magrinho.

Passei a manhã inteira fazendo aquele trabalho de formiguinha, sem nem me dar conta que podia existir um pequeno perigo escondido naquelas terrinhas desgraçadas difíceis de pisar. Sabe quando me avisaram que poderia ter escorpiões ou cobras naquela merda? Quando eu ouvi um dos moleques que trabalhavam com a gente soltar um berro com a força de seis leões, dizendo que tinha um escorpião ali onde ele estava. Como o garoto não falou em acadiano, perguntei ao Sargon o que estava acontecendo ali e na maior calma do mundo a peste troncuda respondeu:

— Escorpião. É uns bichinhos com um ganchinho nas costas.

— Eu sei como é um escorpião. – Rebati. Perto do meio dia não há quem não fique irritado embaixo de um sol forte. Além disso, eu já estava mais confiante em erguer a voz para Sargon, aquele boi manso. – Eu sou de fora, mas não sou burro.

— Sabe que é venenoso? Sabe o que fazer quando ver um?

— Sei, e gritar não parece resolver o problema.

— Então, aí que você se engana. – Ele disse essas palavras fincando a sua própria foice no chão. – Se ver um, grita e vai se afastando com calma pra não perder ele de vista.

— Dar um pisão não serve? Qualquer coisa, lava o pé depois.

Sargon apertou os olhos e a boca, soltando uma risada abafada sobre meu método de lidar com escorpiões.

— Tá, o sabe-tudo! Faz isso no primeiro que tu ver e eu vou ver se consigo avisar seu mestre sobre sua morte sem rir! Tem idéia como um escorpião envenena?!

— Claro que tenho!

Silêncio. Sargon calou o riso só pra me ouvir dizer como se lidava com um escorpião. Eu certamente não quero passar um atestado sobre minha burrice de criança, mas como meu dever e vontade são de dizer somente a verdade sobre meu passado, tenho de admitir que comecei com um relutante:

— ... Ele bate aquelas patinhas da frente pra se segurar e depois... Morde feito formiga!

Sargon caiu na pura gargalhada enquanto abraçava a mina de trigo que acabara de amarrar. Até a arremessou em mim enquanto soltava uns “você não existe” e essas idiotices que as pessoas usam para dizer que uma pessoa é engraçada. Minha vontade naquela hora, e no exato momento, é de ter tido coragem de ter mandado ele ir tomar no lugar onde o sol não bate.

— Ai! Ai! Forasteiro! – Eu imagino que a barriga dele estava doendo por esse ataque de riso. Bem feito. – Nem caranguejo faz assim!

— Nem o quê?

— Esquece. Sabe pra quê que serve o ganchinho?

— Pra... – Agora, imaginem como eu consegui fritar a cabeça pensando num motivo. – Pras... Aves pegarem! E pra atrair as “escorpiõenas”!

— Todo escorpião tem gancho, tanto faz se é menino ou menina. Mas... Minha mãe falou que eles fazem escorpiõezinhos pelo ganchinho...

— Bizarro. Eu achei que tinha inventado essa.

Pelo olhar que Sargon me deu, aquele que se dá quando um gatinho muito bonitinho olha diretamente em nossos olhos, certamente ele percebeu que eu não entendia nada de escorpiões. Pudera, eu no máximo tinha visto um desses desenhado no bracelete de uma das serviçais do palácio em Ur.

— O ganchinho é onde fica o veneno. Se o veneno pegar em você, pléf, você morre. E os bichinhos são valentes! Eles vão com tudo pra cima pra te atacar com eles. Selvageria pura! Parecem guerreiros acadianos! Digo, os originais! Aqueles que...

— Invadiram Ki-en-gir sobre rodas puxadas por cavalos? Essa história é bem chata.

Sargon arregalou os olhos diante de minha resposta. Não sei se é porque Ki-en-gir é uma palavra que só me lembro de apenas eu e Tammuz termos usado-a em algum momento na Babilônia ou se foi porque falei que uma história de conquistas era chata. Minha opinião ainda é a mesma.

— ... Que coisa é essa aí que você falou?

Eu ri. Ri por orgulho, coisa que nunca deveria ter feito na frente de um persa, principalmente com um que era o dobro do meu tamanho. Sabe o porquê? Porque meu orgulho não cala a latrina que eu chamo de boca.

— Terra dos reis civilizados, terra natal. Tanto faz, ambas dão no mesmo.

— Ah, claro. – Sargon deu uma escarrada no solo. – Tão civilizados que deixam prostitutas parirem crianças e ainda transformam a criança em escrava palaciana. Tô surpreso que você não tenha marca nenhuma ou que não te falte o passarinho.

Sabem meu ego? Foi esmagado.

— ... Meu antigo mestre é um eunuco e eu tenho uma queimadura nas costas que me deixou feito um boi e isso eu só consegui aqui, nesse buraco murado no cu do deserto.

— Calma, calma! Cu do deserto é Thêbai ou Ammônion em Mudrâya, Ortospana em Gandara, Zariaspa em Baxtris, Marakanda em Suguda e Areia em Haraiva. – Confesso que “Areia em Haraiva” me fez rir enquanto Sargon dizia que cidades poderiam ser o suposto cu do deserto. – Você chegou aqui em menos de um dia e já diz que é o cu deserto? Sabe de nada.

— Sargon... Quantos cus o deserto tem? Imagina uma diarréia!

No fim, acabamos rindo daquela idéia de um deserto com diarréia.

Quando o sol deixou de fazer aquela sombra que fica logo abaixo de nós, pudemos sair dos campos para comer. Sargon conseguiu amarrar dois talentos grandes, mas eu estava feliz com meu talento leve, quarenta e duas minas e sete siclos. Não ficamos perto dos adultos e sim das outras crianças exatamente no portão de Lugalgirra, comendo somente um pão com uma pasta temperada e um pedaço gordurosamente duro de carne. O que bebíamos? Água. Nada que nos desse energia de fato. Durante nosso almoço ninguém disse nada, só engoliram a comida como bárbaros e desapareceram na cidade até suas casas. Sargon não o fez, por isso não o fiz também.

— Eles não comem quando saem de casa. – Ele falou ao esvaziar seu copo de água. – Vão tentar a sorte de comer algo melhor que isso antes dos chefes chamarem.

Nunca de fato vi ou notei esses chefes, afinal, Sargon nunca se atrasava e eu sempre estava ao lado dele. Quando acabei de devorar aquele pedaço de carne que mais parecia uma pedra cheia de óleo, Sargon me puxou para o centro da cidade. O que íamos fazer?

— Vem, vamos fazer algo mais divertido!

Andamos até os fundos do palácio onde existia uma área murada sem luxo algum, e logo eu entendi o motivo pelos berros que vinham de lá: área de treinamento. “Puta merda” foi só o que se passou na minha cabeça.

— Tá brincando? A gente não vai entrar aí, vai?

— Vamos. Você é persa agora, tem que fazer como um.

Meus pés travaram no chão, mas Sargon deu um jeitinho para me manter andando: me empurrando pelas costas como se eu fosse uma cabritinha fraca. Cabrita fraca porque meus pés não se mexeram, mas deixaram duas linhas no chão de terra batida e o que mais me incomodou depois disso tudo foram os grãozinhos que ficaram presos dentro das sandálias.

A área era de fácil acesso, apesar de murada, difícil era apenas andar lá sem tomar um estoque ou um empurrão. Tinha homens de todas as idades entre crianças mais novas que eu e homens com no máximo quarenta anos, sendo que estes mais davam instruções do que faziam exercícios como os outros. Posso afirmar com toda a certeza que muito mais da metade de um punhado de aprendizes de soldados estavam usando os arcos enquanto outros se distribuíam em números menores de espadachins e atiradores de funda. Notei que grande parte dos espadachins pareciam preferir a espada curva fina à uma curva grossa, apesar disso muitos faziam exercícios com espadas retas. Acabei perguntando em voz baixa para Sargon algo sobre elas, uma pergunta que não recordo, mas recordo da resposta que ele me deu:

— Trouxemos aquelas finas da Katpatuka, as mais grossas são populares em Ebir Nâri entre os homens que moram no deserto. Desertão mesmo, nada de cidades.

Ali entre os espadachins reconheci Shahin pelo seu corpo largo e mais alto que os outros soldados. Ver ele como um soldado sem estar sobre um camelo ou em uma maldita ferraria foi uma surpresa para mim, principalmente porque só agora eu conseguia ver o quanto ele parecia ser mortal. Ele não só dava golpes fortes e rápidos como também era veloz em se desviar. Algo que eu imagino que Sargon chamaria de “guerreiro acadiano” pelo modo como ele falava desses homens. Bom, tanto faz.

Entre os meninos mais novos reconheci um dos trabalhadores rurais retesando um arco enquanto soltava gritinhos de garotinha. Acredite ou não, ele tinha motivos para tal! Arcos não são fáceis de se retesar quando não se tem um treinamento desde cedo, eu mesmo sou um exemplo daqueles que não conseguem sequer segurá-los direito. Um grupo mais afastado estava sobre um chão de azulejos brancos, todos eram homens em uma faixa de quinze anos em média, todos imberbes e com perfeitas pinturas na volta dos olhos. Não bastando isto, suas vestes eram de fabrico superior ao do restante dos homens, apresentando tecidos coloridos e estampados, cabelos ornamentados com tesouros incalculáveis (talvez seja um exagero de minha memória infantil, pois não acho que é viável treinar usando tantos badulaques) e ainda por cima encerados para manter os caracóis. Me perdi olhando para os movimentos circulares que os mesmos faziam com duas cimitarras (as espadas de Katpatuka) ao mesmo tempo que não me lembro de uma única palavra de Sargon antes de ele chamar minha atenção colocando a mão sobre meu ombro e me puxar para a área dos espadachins de shamshir (as espadas de Ebir Nâri) e meio que tentar me apresentar para um dos homens que observava a demonstração de força de Shahin:

— Mestre. – Sargon começou. – Tô aqui com um amigo novo. É de fora, acho que vai se dar bem com a gente.

O homem me olhou dos pés à cabeça antes de rir em deboche. Confesso que naquele momento eu já estava acostumado com esse tipo de tratamento.

— É beduíno, é? Ele tem a pele meio maciazinha pra um.

— Ô senhor. – Eu disse. – Eu posso ser pequeno e não parecer ser forte, mas não sou metade. Você é grande, mas não é dois.

Pela expressão de desgosto no homem e pela afundada que Sargon deu com o rosto em sua própria palma, eu acho que falei uma grande besteira. Falei mesmo.

— Três semanas. Em três semanas sua garganta vai inchar com o tamanho do ego que vai ter que engolir.

Dei ombros. E no fim do exercício que me encaixaram para erguer e abaixar um shamshir, eu já não conseguia mais movê-los direito. A idéia de que esse curto espaço de tempo só durou três minutos ainda me constrange. Eu tinha mãos moles demais, braços fracos demais para uma arma pesada como aquela, por isso nem me mantiveram tempo demais ali, me jogando diretamente para os espadachins de cimitarras. Bom, o que aprendi no treino não interessa muito, somente que todos aprenderam um jeito de se referir a mim, já que meu mestre não tinha me nomeado. Foi algo assim:

— Levanta mais o braço, garoto! – Um dos instrutores disse para mim, mas praticamente todos os meninos próximos se viraram para o homem. – O magrelinho novato, não vocês!

— Senhor, vai ficar difícil assim. – Um dos meninos mais velhos falou. – Inventa um apelido pra ele, porque aqui só tem garotos.

— Ô, novato, qual era seu nome? Vamos pegar algo do nome dele que deve servir.

— Hilmushen. Meu nome era Hilmushen.

— Puta que pariu. – O instrutor não era um homem de muita paciência, diga-se de passagem. Mas, foi quando começou a sentir fome que teve uma ideia muito cretina. – Batata.

— Batata? – Perguntei.

— Teu nariz parece uma batata. Teu nome agora é “batata”.

— Batata? Senhor, por que “batata”? Não tem coisa melhor?

— Seu nome vai ser “puta gorda” se continuar reclamando.

Os meninos caíram na gargalhada. Até o instrutor riu da risada deles, mas, para variar, eu não ri.

Até a hora que o sol começou ficar rosa no céu permanecemos ali, depois passamos rapidamente pelo campo para ajudar os adultos que trabalhavam lá o tempo todo e finalmente quando o céu ficou preto fomos para casa. Quero dizer, Sargon me acompanhou até minha casa antes de voltar para a dele. Devo admitir que apesar de ele ser mais novo que eu, me tratou como um perfeito caçulinha. Garoto de ouro. Em casa, mesmo cansado, precisava manter-me aprendendo a ler com Aberash até o dia que Dilshad resolvesse começar a me ver como seu aprendiz. Diferente da noite anterior, Aziza não veio nos ver e como já era previsto acabei tendo de dormir em um canto mais afastado de Aberash em outra cama de almofadas. Foi difícil pregar o olho naquela noite, pois a núbia ficou soltando risadinhas toda vez que se lembrava que meu apelido era “batata”. Não, não fui eu que contei isso, foi Sargon. Garoto filho de uma puta.

Meus primeiros dias foram menos importantes de se relatar em relação ao primeiro, pois eu já não era novidade e não via tudo aquilo como novidade. Levou uma semana nessa rotina pacata até que meu acadiano estivesse aceitável, ainda que muitos percebessem que não era minha língua principal. No terceiro dia da segunda semana comecei a aprender parsa e Aberash mandou os costumes para longe para que eu aprendesse a escrever logo, pois Dilshad parecia fazer o possível para ignorar minha existência: chegando sempre depois que eu era posto para dormir, saindo antes que eu me levantasse. Certa vez o flagrei na porta de casa, só esperando que eu subisse para que ele entrasse. Hoje eu não me sinto envergonhado em dizer que aquelas atitudes me ofendiam mais que dez ofensas gratuitas. Na minha quinta semana, acredito que fosse minha segunda semana depois da virada do mês, comecei a ficar mais independente, vamos dizer que se faltava algo, Aberash me mandava ir buscar. Mal sabia eu que estava recebendo a educação normal que eu receberia se estivesse vivendo com minha mãe.

Foi a primeira vez que pensei nela nesses tempos.

Depois de dois meses eu já estava quase um garoto persa comum, já até conseguia conversar com alguns dos meus colegas de trabalho e de treino sem gaguejar ou trocar palavras com sons parecidos. Foi somente no meio do terceiro mês em que algo significativo ocorreu: quando estávamos passando o fim da tarde nos campos, tive a brilhante ideia de subir nas costas de Sargon no meio de uma brincadeira que fazíamos e olhar para o horizonte onde a noite subia. Sargon foi parte do que aconteceu depois, pois me lembro que por culpa dele fizemos uma besteira enorme:

— Não dá pra ver depois do muro externo...

— Quer apostar uma corrida até lá? – Sargon me perguntou enquanto me colocava no chão. – Quem perder vai comer uma cebola inteira crua sem fazer careta!

Ele nem me deu tempo para dizer que a ideia era ruim e já saiu correndo. Não precisei pensar no gosto horrível das cebolas cruas para alcançá-lo e aos poucos ultrapassá-lo! Eu era o vento, corria mais que ele, aguentava correr por mais tempo! Corremos mais longe que a lonjura de qualquer rua da cidade, até que eu comecei a perder o fôlego, antes de avistar o portão aberto que atravessei deixando um rastro de terra atrás de mim. As áreas de pasto estavam secas e sem planta alguma, a terra se misturava tão bem com a areia que minhas solas já afundavam no solo. Por um breve instante eu pensei que poderia continuar correndo e fugir, ir para Ur de novo. Parei quando o fôlego me faltou e pus-me a pensar: eu conseguiria fugir? Eu já estava longe... E a noite azul escura no horizonte me chamava. Eu apenas não sabia para qual direção ir, exceto que atrás de mim estava um lugar para qual eu não desejei retornar e minha cabeça infantil junto do calor do momento quase me fizeram esquecer que as chances de uma criança sobreviver fora dos muros são nulas.

Na linha da areia fina em uma direção próxima de onde o sol se deita, vi uma figura que oscilava de um lado para o outro como um velho bêbado antes de cair e rolar por um pedaço de areia elevada. Não fui correndo, mas fui rapidamente até aquela figura que descobri se tratar de um jovem por volta de seus quinze anos, bastante magro e certamente morrendo de sede e fome a julgar pela secura da pele que até se desprendia do resto do corpo feito um pano molhado. O jovem tinha cabelos curtos e enrolados, aparentava ser o que Aberash dissera ser um homem dos Badu a julgar pela pele de argila clara molhada. Eu não o toquei, só balancei os braços para o alto, indicando minha localização para Sargon que finalmente alcançara o portão externo. Ele veio junto de outro homem, certamente nada feliz em nos ver do lado de fora, principalmente eu, um forasteiro. O homem que veio junto de Sargon acabou me dando um cascudo por sair do portão antes de erguer o rapaz desmaiado na areia. Não reclamei da dor porque eu passei a aceitar que estava errado, extravasei minha vontade de reclamar rangendo os dentes.


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Notas finais do capítulo

1 - Vestidos não são vestes de pessoas comuns e geralmente iam até os pés.
2 - Os barcos eram o único método de travessia até a época de Alexandre.
3 - Mina é uma unidade de medida próxima de quinhentas gramas, o talento leve babilônico possuía algo perto de trinta quilos e o pesado em torno de sessenta.
4 - "Escorpiõenas" foi uma brincadeira como "o boi é o marido da bóia", por isso está entre aspas.
5 - Ki-en-gir é o mesmo que Terra dos Reis Civilizados ou Terra Nativa em sumeriano e em diversos dialetos ugaríticos.
6 - Sargon usou nomes persas para se referir à várias regiões do Império Aquemênida, sendo as regiões citadas o Egito, Paropamisos, Bactria, Sogdiana e Areia (Sim, Areia foi o nome que a região de Haraiva recebeu ao ser helenizada).
7 - Sargon se refere às regiões da Capadócia na Turquia e Ebir Nâri na Síria.
8 - Shamshir era uma cimitarra mais grossa e pesada usada principalmente para caça, logo só homens mais fortes conseguiam usá-la com eficiência.
9 - Mulheres eram treinadas para protegerem seus futuros entes familiares, mas elas não ficavam no mesmo terreno dos garotos ou recebiam o mesmo treinamento.
10 - Badu é um termo em plural para "beduíno".

Bom, é isso. O oitavo já está no forno e espero postá-lo até o fim do mês, mas não prometo nada.



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