Estrela da Babilônia escrita por Nidhoggr


Capítulo 5
Capítulo 5 - Cicatrizes


Notas iniciais do capítulo

Esse fim de ano (e começo) foi mesmo bastante agitado o que atrasou muito durante a escrita desse capítulo. Enfim, aproveitem!



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Como eu disse, praticamente fui arrancado de minha cama, banhado e vestido ainda dormindo. Só estava totalmente acordado quando me perguntaram sobre o anel de seixo e eu devo ter dito para deixar onde estava: no meu polegar esquerdo. Em toda minha vida aquela manhã foi a única que me passaram cilindros metálicos quentes em meus cabelos para cacheá-los a ponto que eles, que antes chegavam até a metade de minhas costas, mal encostavam em meus ombros! E depois disso me enfiaram em uma veste que me lembrava um saco com dois furos no fundo. Foi a primeira vez que usei uma calça e é claro que eu achei a sensação um tanto abafada. Depois disso vieram duas camadas de roupas de algodão simples antes de me enfiarem na túnica marrom que podia se abrir como uma flor se eu girasse velozmente. E de certa forma os recortes triangulares em sua barra lembravam as pétalas de uma flor que cresce perto do rio e que não é difícil ver em Nínive, assim pelos bordados amarelos de flores geométricas eu me senti usando uma flor que usava flores. “Que coisa de menininha” eu devo ter pensado. Uma coisa pouco importante que me lembro é que ouvi duas serviçais discutindo: uma falava (ou berrava) que eu deveria ir todo pronto, arrumadinho, cheio de badulaques e a outra dizia que eu estava indo para uma caminhada no deserto e que nem mesmo o príncipe iria coberto de tesouros porque além de causar incômodo é o maior “chama-ladrão” que existe. No fim a segunda saiu vitoriosa. Graças aos deuses! Me colocaram um pano que cobria da minha testa até as costas de meu pescoço, depois outro tecido enrolado para segurar esses no lugar e por último colocaram-me um véu no rosto. Observação: é incômodo demais respirar com essa porcaria na cara. Achei extremamente estranho e desnecessário, mesmo que as serviçais dissessem que isso serviria para me proteger do sol e que eu, que era muito clarinho, deveria ter mais proteção. Foi também o único dia que eu pude usar tintura de chumbo nos meus olhos em vez do carvão de sempre que no fator de proteção solar não ajudava em nada. Lembro de ter perguntado algo como “se eu vou ficar coberto, por que queria que eu colocasse o ouro depois?” para a serviçal que perdeu a discussão e recebi em resposta que a melhor arma de qualquer pessoa é a boa primeira impressão. Ainda bem que ninguém mais pensava como ela. Eu preferiria assim: sem jóias, só com a proteção, mesmo que não entendesse o real motivo de tanta preocupação com queimaduras.

Quer dizer, passaram-se uns dez minutos e eu passei a entender.

O motivo de estarem preocupadas com o sol em meu rosto era um só: somente o príncipe iria viajar em um assento real acoplado em um camelo. Um assento de madeira que lembrava uma versão infantil e menos enfeitada do trono do Patesi cujos únicos adornos eram uma estrela de oito pontas em homenagem à nossa deusa Inanna esculpida sobre a madeira que servia como um teto para que o sol não chegasse ao príncipe e uma palmeira esculpida no encosto. Só. Bom, também me impressionava o fato daquela cadeira poder ser dobrada ao meio, mas era só.

Me lembro muito bem de como o príncipe estava estupidamente simples! Tinha tantas peças de pano leve pendendo dele desde a cabeça que eu mal podia ver seus cabelos negros ou seu rosto cor de areia grossa. Conseguia ver seus olhos: dois pontos pretos enormes debaixo de uma cortina de seda branca e preta!

Nossa caravana era composta de dez camelos: um para o príncipe, quatro para guardas pessoais dele, dois para carregar “sabe-se lá o que” em arcas e dois para minha guarda pessoal.

O camelo desocupado me fez pensar que era meu, um tipo velho, porém bem forte. Eu não sabia de fato montar em um camelo, mas tinha uma vaga idéia de como fazê-lo e antes mesmo que eu realizasse minha façanha de parecer importante só por fazer algo corretamente de primeira... Acabei descobrindo que aquele camelo era para Emkiamtu.

— Aqui, por aqui, Hilmushen. – Disse Enkiamtu me chamando para longe do camelo que eu me aproximara. – Sua montaria está desse lado.

Foi a primeira vez que eu vi aquele animal que seria a minha montaria. Ele estava ali atrás dos camelos deitado preguiçosamente no chão. Enkiamtu soltou um assovio agudo e aquele bicho estranho se ergueu. Devia ser uma ave. Tinha um pescoço e duas patas igualmente grossas e compridas, uma cabeça chata com um bico um tanto quanto retilíneo. Toda pelada, exceto pelo corpo roliço com longas penas marrons. Na época eu não estava assustado, tanto que me aproximei dele com minha mão erguida na tentativa de acariciá-lo. Aquele animal moveu sua cabeça para o lado antes de tentar bicar minha mão! Na hora eu mal reparei que aquele bicho tinha asas pequenas que se abriram durante aquele movimento brusco!

— O que é isso?!

— Ave-Camelo. – Disse Enkiamtu ao me afastar um pouco mais da ave e começar a fazer uns gestos estranhos com as mãos. – Mais rápido que camelo, porém bem mais fraco. Como você é bem leve adquiri um desses que é bem mais barato que um camelo.

A tal Ave-Camelo foi se abaixando e depois que sentou-se eu acabei me sentindo um saco de batatas. Enkiamtu simplesmente me ergueu pelas axilas sem me avisar e me colocou sobre o bicho. Não tinha sela e nem mesmo rédeas! Como ele esperava que eu sobrevivesse em cima daquela coisa?!

— Comprei vários desses ao sul daqui, são muito dóceis. – Se ele estava tentando me acalmar com aquilo estava muito enganado. – As pessoas gostam da carne e dos ovos.

Tem algo que não me orgulho daquele dia: quando a ave se levantou de novo, dessa vez comigo sobre ela, acabei soltando um grito muito similar aos gritinhos agudos de meninas. Na verdade, acho que não foi só similar. Foi igual! Eu ouvi muito bem os guardas do príncipe, os meus guardas, Enkiamtu, meu príncipe e até o vizir do meu patesi que estava preenchendo um recibo do que estava saindo do palácio começarem a rir! Quando eu acabei por segurar no pescoço da tal Ave-Camelo por ter medo de cair ela começou a pular para me derrubar, então... Foi o estouro de gargalhadas! Se não estivéssemos dentro dos limites do palácio eu tenho certeza que ainda hoje todo mundo chegaria para um colega em um bar e diria: “ei, conhece aquela do menino no avestruz?”

— Anote aí: uma braça de puro azar! – Foi o que eu ouvi o vizir do patesi dizer para um assistente que cunhava o recibo com extremo cuidado. Devia ser um escriba em treinamento porque consigo me lembrar que ele devia ser uns cinco ou seis anos mais velho que eu. Detalhe: ele ainda estava se controlando para não continuar rindo. – Se ele cair você muda para “uma braça de puro azar amassada”, certo?

— Ele não me parece ter uma braça, mestre.

— Se eu digo que ele tem uma braça ele tem uma braça! – O vizir começou a ralhar com o aprendiz e confesso que se não fosse a pequena briga entre os dois eu teria ficado de mau-humor pelo resto do dia. – Anota logo!

— ... Vão conferir se ele realmente tem uma braça de altura...

— E você já viu uma braça ser igual a outra?! E são novos tempos! Ninguém mais confere um recibo desses! Fazemos o recibo para o patesi ver que temos ele, mas não para ler. Você pode escrever todo o “Vamos beber essa Noite” que ninguém nota!

— Como o senhor sabe disso tudo?

— Olhe minha cabeça, moleque! – Ele deve ter falado o nome do aprendiz, mas sou incapaz de me lembrar de como ele se chamava. – Tá vendo esses fios brancos?! Tá vendo?! Isso é sinônimo de sabedoria!

— Está mais para sinônimo de “experiência em dar a volta na lei”.

— Disse algo?!

— Não! Não senhor, mestre!

Foi a discussão mais engraçada que já ouvi em toda minha infância, mesmo que hoje eu não consiga sorrir dessa lembrança.

Demorou um tempo até que Enkiamtu me ensinasse a não pegar no pescoço daquela ave cretina e sim apenas próximo dele. No fim foi decidido que ele iria ao meu lado durante a viagem para ter a certeza que eu não iria cometer aquela burrada outra vez. Um tempo que durou do dia pálido até o surgimento dos raios que fazem a vista doer surgir no horizonte.

A caravana já saiu em formação do palácio pelas ruas principais vazias: Um dos meus guardas foi na frente, Enkiamtu o seguia de perto enquanto eu vinha intercalado pelo negro e por outro guarda meu. Logo atrás de mim vinha o príncipe rodeado de quatro guardas e em seu camelo, a frente de seu assento, vinha um velho senhor que eu jamais tinha visto até aquele dia que fazia o trabalho de guiar sua montaria. Atrás de todos vinha a mercadoria em arcas guiada por dois homens portando longas espadas curvas, arcos e flechas. Vi que ambos usavam vestes escuras e cobriam parte dos rostos dourados. Acompanhantes de Enkiamtu pelo que entendi. Até alcançarmos a porta norte de Ur nenhuma palavra foi dita, foi um silêncio imenso: ninguém falava na caravana, ninguém via a caravana partir para comentar sobre ela. Na verdade, só uma mulher de cabelos despenteados apareceu próxima ao portão e gritou meu nome. É claro que todos os olhos da caravana pousaram sobre ela, os meus simplesmente molharam-se ao olhá-la. Virando meu rosto naquela direção e dando-lhe um aceno eu pude vê-la chorar e até rezei para que ela visse o anel de seixo em meu dedo. Chorava quieta em seu canto longe da caravana e um pouco antes de que eu tivesse um vislumbre da paisagem de fora da cidade ela se afastou.

Foi a última vez que vi minha mãe ou ouvi sua voz.

O animal no qual eu montava parecia querer ir mais rápido que os camelos que, diferente do passo manso, quase corriam. Eu que nunca fora mais rápido do que meus próprios pés podiam correr me senti extremamente mal! Aquele animal balançava bastante quando queria sair da formação e ir mais para frente da caravana. Vamos dizer que foi a primeira vez que tive vontade de vomitar sem ser culpa de ter o olho maior que a barriga. Por sorte Enkiamtu sabia que o segredo para me distrair do enjoo era desviar minha atenção do deserto para uma coisa mais interessante. Se bem que os assuntos dele não eram lá os mais interessantes para mim: um menino enjoado de dez anos na porcaria de um avestruz que se sacode todo quando anda e não se pode se segurar em nada para permanecer sobre a ave!

Ele começou a me falar de como funcionava um arco e que os homens do fim da caravana eram excelentes no manuseio desses e eu mal prestei atenção. Depois disso ele tentou me ensinar acadiano e parsa. Bom, não era uma coisa difícil de se aprender naturalmente, mas no lombo daquela ave maldita era uma tarefa quase impossível. Pelo menos interagir com ele ao tentar acertar as palavras e frases me distraía mais do que só ouvir uma faladeira sobre coisas que eu não conseguia entender.

Naquele avestruz aprendi como cumprimentar, como se despedir, dizer “sim” e “não”... Enfim, o suficiente para não passar fome caso eu fosse parar no meio de pessoas que só falavam acadiano e o bastante para negar ou aceitar coisas em um lugar de pessoas que só falavam parsa. A linguagem corporal podia fazer o resto do trabalho. Sei que é irônico ler isso nos escritos de um escriba, mas naquela época eu não pensava muito sobre isso.

Hoje existem pontes para atravessar os rios, mas em minha época de garoto e, pelo que sei, até minha juventude só se atravessava o rio do modo que eu o atravessei naquela viagem: por largas balsas que levam o máximo que podem de uma margem à outra. Sorte minha que a estúpida ave parecia acostumada com o processo. Acostumada até com o homem que nos forneceu a balsa. Naquela época eu não achei nada suspeito ver um homem com uma balsa na beira de um rio que fica longe de uma cidade abandonada como se ali fosse sua casa. Fui ingênuo demais.

As paradas nas cidades que Gemenanna falou não eram mais do que se aproximar dos muros, verificar se algo se movia no horizonte de areia ou nos pequenos pântanos e continuar correndo como se o bafo do monstro Lamashtu estivesse nas costas de nossos pescoços. Quando o sol estava alto e nossas sombras estavam logo abaixo de nossos corpos já tínhamos passado por Marad, ou que restou dela, e meu enjoo já começou a se dissipar. Foi naquele instante em que percebi algo no rosto de Enkiamtu que não parava de girar para os lados: ele apertava os olhos e murmurava algo consigo mesmo. Disso eu fiquei desconfiado!

— Hilmushen. – Ele me chamou. – Forme a frase “eu sei escrever e ler” o mais rápido que puder em acadiano e em parsa.

Tendo minha atenção desviada para meus pensamentos, passei a pensar em como formar aquela frase (era complicado para mim não juntar palavras de um idioma com o outro) e não vi o que causou o primeiro grito, solto diretamente de um dos meus guardas pessoais.

O segundo grito eu vi o porquê foi solto: uma flecha atingiu precisamente o pescoço do meu segundo guarda e depois disso os camelos e meu avestruz quebraram a formação correndo em velocidades muito superiores ao que andavam antes e se não fosse o medo das flechas eu teria feito de tudo para aquela ave cessar sua corrida! Enkiamtu conseguiu puxar a minha montaria para a mesma direção que ele enquanto os guardas do meu príncipe e o condutor de seu camelo morriam um a um sem nem ao menos terem uma única chance de se defenderem. Quando vi os cinco caírem dos camelos que corriam para todos os lados existiam apenas duas flechas no chão que não atingiram nenhum alvo. Os homens armados com arcos contra atacaram o vento, simplesmente não mirando em direção alguma enquanto se aproximavam mais do príncipe em seu assento real.

Para mim estava tudo indo de mal a pior, mas ainda tinha a esperança que eu poderia me safar de uma morte horrível quando senti Enkiamtu largar minha montaria e me puxar para a sua própria, me posicionando de uma forma muito desconfortável a frente deste. Pelo canto dos olhos pude ver que um dos homens tirou o príncipe de seu assento e o trazia para perto de nós enquanto o outro o seguia, aparentemente protegendo sua retaguarda. Corremos como o vento para atrás de uma duna e... Descobrimos que corremos para o lado errado.

A nossa frente existia uma formação de dez ou mais homens a pé, outros cinco sobre cavalos e um último sobre um cavalo coberto com placas metálicas, assim como todos os homens ali. Reparei que este último homem tinha um tipo de coroa de ferro na cabeça de onde pendia o que parecia ser um tecido feito de anéis de metal. Se eu tivesse de compará-los com algum animal eu os compararia com besouros por suas cascas brilhantes. Fechando meus olhos e esperando por uma ordem de ataque que traria meu fim eu ouvi uma risada e um cumprimento. Abrindo meus olhos novamente eu vi o homem “coroado” descer de seu cavalo e abrir os braços para abraçar ninguém menos que Enkiamtu que desceu do camelo junto comigo. Eles eram amigos, não eram?! Eu quis acreditar que não eram os mesmos que nos atacaram, mas eu estava enganado.

Logo que Enkiamtu foi abraçar aquele homem em um gesto amistoso meu rosto encontrou a areia do solo e o meu príncipe teve o mesmo destino ao meu lado. Ambos de nós fomos empurrados para o chão pelos dois guardas restantes de nosso grupo e tivemos nossos rostos descobertos. Se fossem ladrões que iriam pedir ouro ao Patesi para terem seu filho de volta somente eu teria ido com a cara no chão! Estava estampado no céu com enormes letras rubras o aviso que estávamos perdidos, lascados, ferrados, fodidos e eu não tinha percebido.

Enkiamtu, fosse qual fosse seu nome de verdade, era um traidor.

Ouvi ele conversar com o homem que liderava aquele grupo em parsa e peguei no ar algumas palavras como “falso”, “príncipe”, “sul”, “rebelde” e “aprender”. O resto foi só um monte de palavras ao vento. Um dos homens que nos acompanhavam me ergueu pelas costas de minhas vestes e o outro fez o mesmo com o meu príncipe. Pela sincronia de seus movimentos eu acredito que eram gêmeos. Depois de erguidos brutalmente o líder do outro grupo chamou um dos homens que andavam a pé e nos apontou com sua mão enluvada. Eu não entendi nada do que ele disse, mas pude compreender o que estava acontecendo quando aquele homem veio perto de nós e puxou uma de nossas mãos, comparando-as.

As minhas mãos eram lisas como as de uma menina, exceto pelo calo no indicador direito causado pela cunha e as do meu príncipe eram igualmente lisas, porém sem calos. Não sei exatamente o que entregou a identidade do príncipe, pois o homem não parecia interessado em olhar minhas unhas roídas na base e as unhas longas do príncipe quase sem falhas. Ah! Eu me lembro o que entregou a identidade dele: os berros. Acho que ele não tinha a capacidade para entender que Enkiamtu não era nosso amigo e que nós dois estávamos sozinhos! Ou pelo menos ele estava negando isso!

— Largue-me, insolente! – Meu príncipe disse ao tirar a mão do aperto do soldado persa com violência e meus olhos só se arregalaram enquanto eu sentia minha garganta ficar seca pelo medo do que podia acontecer. – Sou o príncipe de Ur! Não me toque com suas mãos sujas!

Quando me voltei para a frente fui presenteado com a visão de Enkiamtu aparentemente traduzindo o que meu príncipe disse em parsa para os homens do deserto. Meu sangue gelou. Enkiamtu logo tirou de dentro de suas vestes pesadas uma placa de argila média que reconheci como sendo o recibo do que tinha saído de Ur e que supostamente ia para Larak. O filho da puta a quebrou dobrando contra seu joelho quantas vezes foram necessárias para que as palavras escritas ali se perdessem na história para todo o sempre. No momento eu não o xinguei, só fiquei atônito e tremendo da cabeça aos pés, mas hoje eu ofendo todos os seus ancestrais! Um outro homem veio do fundo do grupo trazendo uma tocha acesa, coisa que não se vê em pleno meio dia! Os supostos gêmeos seguraram meu príncipe com tanta força que fiquei surpreso ao vê-lo totalmente indefeso. O que aconteceu em seguida foi ainda pior! Ouvi a palavra “príncipe” diversas vezes e abaixaram-lhe as calças! O soldado que antes segurava minha mão me soltou e eu, assustado, não consegui pensar em sair correndo! E pensando bem, acho que se eu tivesse fugido eu não estaria escrevendo minha história. Eu só consegui observar e... Oh, por Inanna! Até por Anu! Que coisa terrível fizeram com meu príncipe! O homem que antes me segurava simplesmente o agarrou pelo falo e o cortou na base. Não, não foi um cortinho para marcar! Foi um maldito corte capaz de arrancá-lo dali! Meu príncipe gritou alto, tão alto que eu senti o topo de minha cabeça vibrar com seu berro misturado com o choro de dor. E não acabou por ali! Não bastou cortarem-lhe o pênis no meio do nada! O homem com a tocha queimou sua carne para que o sangue secasse. Eu não estava olhando diretamente para meu senhor, não conseguia vê-lo daquela forma! E ele gritava como se não houvesse amanhã! Eu acredito que se tivessem tirado-lhe o escroto ele certamente teria desmaiado de dor!

Largaram o pobre coitado no chão se revirando de dor e vieram até mim. Ouvi um deles perguntar algo com a palavra “rebelde” e depois ouvi Enkiamtu dizer a palavra “escrever” no meio de uma longa frase. Era para isso que ele estava me ensinando parsa e acadiano nas últimas horas?! Não era para distrair de meu enjôo?! Estava irado, mas no fundo estava agradecido. O desgraçado não acabou com toda minha vida, pelo menos.

— Eu sei ler! – Gritei em acadiano! – Sei escrever! – Aquilo pareceu maldição! Os homens que se aproximaram de mim se afastaram um pouco. Balbuciei as mesmas palavras em parsa. Na verdade eu disse em parsa algo mais ou menos assim: – Lido e escrito eu sei!

Passaram mais algum tempo conversando e ouvi um “sim” e alguns nomes acompanhados de “irmão” e outras palavras que deduzi que tinham significado parecido aparecerem no meio da conversa. No fim, eu que tinha virado uma estátua pelo susto, fui arrastado junto de alguns homens. Tentei resistir, gritava que queria ver como estava meu senhor que a essa altura já tinha relaxado um pouco, mas parecia ser incapaz de andar. Acabou acontecendo que um dos homens fez minha visão ficar turva com uma pancada em minha nuca. Foi algo que demorou segundos e que em minha visão durou uma eternidade: a sensação de ficar leve e pesado ao mesmo tempo, de tudo girar e flutuar fora de suas formas reais e no fim a tontura quando tive um único pensamento: eu era o próximo e então desmaiei.

Não sei exatamente quanto tempo se passou enquanto fiquei desacordado, só sei que despertei com comentários altos de alegria que hoje eu sei que significam que a casa está próxima. Minha cabeça zunia e até me lembro de tê-la coçado enquanto deixava meus olhos se acostumarem com a visão. Fui posto deitado em um camelo como se eu fosse um pedaço de trapo. Um homem vigiava para ter certeza que eu não cairia no chão. Aparentemente ele percebeu quando acordei e sorriu para mim. Não retribuí seu gesto por dois motivos: um por eu estar grogue pela pancada e o outro era por eu não estar a caminho de Larak consequentemente meu destino sendo incerto. Olhei para frente, mais ao longe, e vi o meu príncipe sentado em um dos cavalos com as pernas em um único lado. Estava mais como uma carga de mão, pelo modo como se segurava no condutor do animal.

— Procurando o Amtu? – O homem que estava ao meu lado perguntou em acadiano e ficou sem resposta imediata, tanto que resolveu me dar uma resposta como se eu tivesse perguntado alguma coisa. – Está lá atrás.

Não dei resposta novamente. Na verdade eu fingi que nem mesmo o ouvi.

— Menino, sei o que está passando na sua cabeça e acho que seria legal começarmos com o pé direito. – Com essas palavras vindas dele eu tive de ceder e dei um sorriso falso e torto. E olhe, foi só me ver sorrir que ele sorriu de volta, mas com um sorriso autêntico. – Meu nome é Shahin, venho de Ecbátana da Média Pérsia. E você, menino?

— ... Hilmushen. – Disse eu. Ver aquele sorriso era difícil para mim naquele momento, principalmente porque eu sabia que em breve Ur seria o que era na época dos pais dos pais de Gemenanna: uma ruína. A traição de Enkiamtu ainda não me desceu pela garganta. – De Ur. – E vi o tal Shahin torcer o rosto em curiosidade. Provavelmente ele não sabia o que era Ur ou onde ficava. – Fica perto de Unug.

— Uruk. Então você é de Elam! Deve ter feito uma viagem bem longa até agora. – Ele disse ao dar tapinhas próximo ao vale das duas corcovas, exatamente onde eu estava encaixado. – Não se preocupe, garoto, já dá para ver as portas de Babel daqui. Consegue se levantar?

Eu estava zonzo para me manter sentado sobre o camelo e ainda mais zonzo para ir a pé, se bem que qualquer posição era melhor que aquela que eu estava. Com algum esforço e muita ajuda do tal Shahin fui colocado sentado entre as duas corcovas e por motivos óbvios desconfiei que estava inteiro.  A felicidade foi tanta que tive que conferir com olhos e mãos. Sharin me repreendeu segurando o riso:

— Ô! Garoto! Tira a mão daí! Coisa feia!

— ... Pensei que...

— Tivessem arrancando teu “peru” fora?! Fica feliz e tira a mão daí se não o Manah e o Rashn mudam de ideia!

Minha vontade era mantê-lo seguro, mas achei melhor ouvi-lo e tirei a mão o mais rápido que pude de minhas calças, o que causou um acesso de riso nele e um de raiva em mim.

— Ô, garoto, olha lá, ‘tão abrindo os portões.

Diferente do esperado por Shahin, eu presumo, não olhei para o portão. Eu queria saber como meu príncipe estava e... Tenho que admitir que aquela foi a primeira vez que senti vontade de protegê-lo ao máximo. Infelizmente esta mesma vontade está me atacando até mesmo na velhice. Em nome dos velhos tempos, não mais o chamarei só de “meu príncipe”. Creio que eu tenha de dizer o nome dele aqui, pois não desejo que ele seja esquecido.

— Como está o Tammuz?

Acho que Shahin leu meus pensamentos. Ou vai ver foi por ordem de exclusão que descobriu que o meu príncipe se chamava Tammuz e logo o ouvi falar com o homem que levava Tammuz como uma bolsa. Falando em parsa. Não entendi nada do que disseram, sorte minha que Shahin traduziu.

— Zubin quer mudar o nome dele pra Sharr-Tahm, Sharr-Sohrab ou Sharr-Soroush. Eu falei para ele mudar no máximo pra Du’zu, mas fazer o quê? O idiota não me escuta.

— Mudar?

— Ah, Hilmushen, não seja tão ingênuo! – Ingênuo?! Eu não podia ser ingênuo?! Ora essa! Eu tinha acabado de cair naquela situação do nada e ele queria que eu não fosse ingênuo?! Se eu tinha algum traço de ingenuidade em meu ser até aquele dia, foi podado como o genital de meu príncipe! Provavelmente junto com ele! – Você não tá realmente achando que vai ficar com o seu nome de nascença, né? Vai receber um nome persa ou acadiano.

Ouvir aquilo me fez dar de cara com a corcova frontal do camelo. Agora essa?!

— Ô, ô! Ô, moleque, que é isso! Se tiver sorte o seu mestre acha um nome legal!

— Estou bem com “pássaro bonito”. Conheço meu mestre desde sempre e por ele eu me chamaria “praga”.

Shahin riu alto do que eu disse. Não sei se foi por eu ter dito que Tammuz era meu mestre, do significado do meu primeiro nome ou do nome que Tammuz poderia me dar ou até mesmo de como minha voz saiu abafada pela corcova particularmente fedorenta do camelo contra minha face.

— Um moleque era seu mestre? Conta uma de bêbado agora! – Pode-se dizer que fiquei irritado só de pensar como era a face do Shahin rindo de mim. Imagine o quanto fiquei ao ver que ele estava começando a cambalear de tanto rir e atraindo muitos olhares para nós. – Relaxa! Seu novo mestre é meu irmão. Você disse que sabe ler e escrever e me lembrei que meu irmão precisava de um discípulo, mas sabe como é, poucos candidatos! Dilshad vai achar um nome muito bom para você começar a sua vida como um verdadeiro persa que é!

Foi a primeira vez que senti a vontade de dizer “não sou um persa” em toda minha vida.

Tendo eu me calado para isso, Shahin se calou um tempo depois. Pelo menos por uns cinco minutos.

— Garoto Hilmushen, olhe para frente.

Obedecendo sua ordem direcionei meu olhar para um grande muro muito, muito alto mesmo e por cima dele era possível ver diversas torres subindo em puras explosões coloridas de vermelho, amarelo e azul no meio das pedras feitas de barro. E o portão que se abria tirou minha respiração por alguns segundos: era um enorme portal feito de ladrilhos azuis um pouco gastos, enfeitado com perfis de leões, auroques e dragões. Eu sabia que portão era esse! Eram as portas da rainha dos céus: minha deusa Inanna.

Fomos recebidos com salvas de alegria por pessoas que esperavam ao lado do portão aberto, pelo menos os soldados persas assim foram, já que nunca tive a certeza que eu e Tammuz fossemos esperados ali. E meus olhos, conforme o camelo avançava em direção à cidade murada, subiam para o arco azul e dele para os céus, mesmo que o sol queimasse meus olhos. Foi então que rezei minha última prece no idioma aglutinado que cresci falando:

— Desconheço a razão ou o dingir, igigi ou anunnaki, que me põe essa prova em minha vida, mas se escuta minha prece, deusa vermelha da guerra Inanna, por teu portão estou passando. Guie meus caminhos para longe do que pode me causar dor, mas se mesmo assim algo comigo ocorrer, mostre-me o caminho para a vingança.

— O que tanto murmura, Hilmushen? – Para minha surpresa as palavras não vieram do tal Shahin (e seria surpreendente se viessem, pois as palavras não foram ditas em acadiano ou parsa). Vieram do meu príncipe que novamente para minha surpresa estava com a aparência de quem não dormia há dias. – ... Nossas vidas acabaram. É melhor rezar para Namtar nos buscar logo, pois comer toda a lama do reino de Ereshkigal será melhor do que nos espera aqui.

Há momentos em que penso que meu príncipe estava certo, assim como há instantes em que tenho certeza que ele estava errado. Até hoje não decidi sobre isso e não possuo certeza se decidirei antes de minha morte.


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Notas finais do capítulo

Eu usei o nome Namtar em vez de Namtu agora por motivos de variações.

Para quem ficou curioso a respeito do tal "portão de Inanna" basta olhar o famoso "Ishtar Gate" que foi usado como entrada na cidade da Babilônia. Atualmente existe uma réplica do mesmo no museu de Berlin.

Babel também é um nome para a cidade da Babilônia.

Tammuz é uma variação assíria/hebraica do nome sumeriano Dumuzid, sendo Du'zu uma variação do mesmo nome.

Por último, pelo que se sabe do reino de Ereshkigal, lá os mortos "vivem" no escuro, nus, cobertos de penas e sujeira com apenas lama e pó para comer. Segundo a narração do personagem Enkidu na Epopeia de Gilgamesh o Vasto Caminho é "um lugar de trevas em que ninguém mais poderia ver a luz do dia (...) alguns comiam pó, sem água para findar sua sede. Vi todos aqueles que morreram antes, até reis com suas almas enegrecidas sem nada de sua glória de antes."



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