Estrela da Babilônia escrita por Nidhoggr


Capítulo 3
Capítulo 3 - Gemenanna


Notas iniciais do capítulo

Finalmente um capítulo mais longo! Eu recomendo que peguem um mapinha com as principais cidades da antiga Suméria!



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Quando as serviçais foram se retirando após me desejar um bom descanso (sem motivo porque ainda nem mesmo era meio dia) eu chamei unicamente a mais velha delas: Gemenanna. Gemenanna tinha a pele clara, mais clara que a minha, os cabelos cinzentos pela velhice e ainda muito volumosos para a idade caíam sobre o busto que há muito cedera e dava aquele aspecto estranho de sacos vazios. Lembro até que no meio das várias rugas ela tinha pintas marrons e pretas além de ser bem fácil de ver o desenho de suas veias e debaixo das pálpebras semicerradas pelo cansaço eterno tinha um doce olhar cinzento levemente azulado, a exata cor que a água adquire quando o sol está nos últimos momentos do crepúsculo e não sobra nem mesmo um pálido rosa unido ao azul no céu. Ela era a minha favorita de todas as criadas e também era a responsável principal pelo meu bem-estar, tanto que uma vez eu a chamei de Gemeshega (mulher favorita). Essa criada também sempre me ensinava o que era certo e o que era errado além de me dizer como desviar dos tapas do príncipe e até revidá-los (infelizmente sem deixar de enfatizar que eu não deveria machucá-lo, no entanto eu era um garoto travesso e essa advertência eu sempre fiz questão de ignorar), por esse motivo já a chamei de Gemekala (mulher forte) e ainda assim ela continuava sempre sendo gentil comigo, como se não ligasse pelo fato de eu não a chamar pelo nome ás vezes, coisa que sempre zangava as outras criadas a ponto de me perseguirem para me bater com almofadas. Quando ficamos sozinhos no meu aposento revirado eu perguntei à ela em voz baixa para evitar ser ouvido por alguma serviçal mais lenta ou curiosa:

– Gemenanna, vocês vieram até aqui, tiraram tudo do lugar, me fizeram ver sua arrumação toda e até me despiram do ouro porque o nosso supremo Patesi – Como eu odiava ter de me referir a ele assim. Era muito incômodo! – ordenou que assim fizessem?

– Sim, jovem vizir. – Até dois anos atrás ela não usava esse título, era só “senhor Hilmushen”, porém em menos de cinco anos eu já seria adulto o bastante para exercer a função de vizir. – Mais alguma coisa?

– Por quê?

Diante de minha pergunta eu a vi se aproximar e me fazer sentar sobre minha cama de almofadas, usando a mão ossuda para me guiar antes de logo fazer o mesmo, sentando-se exatamente a minha direita e deitando minha bochecha em seu braço fino. Gemenanna era a única ali que me lembrava de minha mãe, pois eu me lembro que muitas vezes ela se sentou ao meu lado e me abraçou para mexer no meu cabelo assim como Gemenanna fez naquele instante.

– O príncipe vai conhecer uma noiva. – As palavras dela me surpreenderam um pouco, pois meninas não faltavam em nossa cidade e a idéia de existirem outras cidades seguindo o exemplo da nossa me deixou incomodado até hoje. – Há outros como o nosso supremo Patesi que querem ter orgulho de dizer que a linhagem dos Annunaki não morreu nesse mundo. Há um Patesi em Larak e ele tem uma filha que, se não fosse por ela, o sangue de nosso príncipe teria de ser misturado com os dos meros mortais. – Nessa pausa que ela fez eu soltei um pequeno som com a garganta para que ela continuasse ao ponto importante, pois sendo o escravo do príncipe eu iria para onde ele fosse, mesmo que este lugar fosse o Vasto Caminho, onde eu perderia minha identidade, mas não perderia o dever de servi-lo. – Saindo daqui vocês vão para Larsa, depois Nina, Lagash...

– Gemenanna! – Eu a interrompi. – O caminho mais rápido para Larak é por Larsa, Kutallu, Umma, Adab, Kissura e Nippur! – Eu percebi pelo olhar apertado dela que a minha observação era desnecessária, afinal uma senhora velha que era filha de um dos primeiros habitantes dessa tentativa de reinado novo aqui certamente sabia disso, então eu perguntei, mais para mascarar minha estupidez, do que para arrancar uma informação dela que eu nunca arrancaria do Patesi: – Por que vamos dar a volta por Nina e Lagash?

– Você sabe que existe um imperador muito mau fora daqui, não sabe?

– ... Sei. – Menti. Eu nem mesmo sabia o que essa palavra queria dizer na época. – Ele vem nos pegar se formos pelo caminho normal?

– Eles o chamam de “Xá”. – “Shá de shakira?” foi o que pensei no momento. Não tive culpa, “manteiga” é algo ótimo de se comer sobre as coisas e eu confesso que já fui uma criança gulosa. – Tiveram muitas guerras antes mesmo de eu nascer e por causa dessas guerras essa cidade é dele. Ele pode comandar nela, impor seus costumes, sua língua e matar quem se recusar a abandonar a nossa fé, nossos costumes, nossos nomes. – Eu não quis acreditar e até hoje não acredito. Talvez o xá da época de quando ela era uma menina fosse assim, mas os xás que conheci não eram assim tão maus como ela dizia. Ao menos não os dois últimos, pois o primeiro que conheci parecia ser louco de pedra. – E se ninguém mais rezar por nossos deuses eles virão para nosso mundo para nos destruir. Sabe por quê?

– Porque somos barulhentos e selvagens. – Eu disse ao me lembrar de uma das aulas que ela me dera. – E foi Namtu que não deixou Enlil nos destruir porque nós elogiamos Namtu e demos muitas oferendas, mesmo ele sendo aquele que pega nossas almas e leva para a mãe dele, Ereshkigal, a rainha sob a Terra. – Meu discurso sobre isso ainda é meio decorado com a entonação de como se eu estivesse lendo aquelas exatas palavras em minha frente, como se eu não entendesse e repetisse tudo o que me foi dito por uma mera imitação de sons, tal como um tipo de ave colorida que vi certa vez no ombro de um árabe. Só assim eu felicitava Gemenanna. – Mas, me fala da rota que vamos seguir! Se o xá pode nos pegar por sermos diferentes e estarmos crescendo embaixo do nariz dele, eu quero saber para onde fugir. – Talvez as minhas palavras naquela época fossem ainda mais simples, mas me lembro de ter dito que iria fugir, jamais lutar. E que também tinha certeza que o xá em pessoa viria me buscar como a besta Lamashtu que suga o sangue de crianças. – Ou pelo menos me esconder dele.

– Depois de Lagash vocês irão diretamente para Dagan sem parar em Adab ou Kissura, de lá para Marad. – Ela pausou sua fala e me olhou diretamente nos olhos e desde aquele instante eu soube o motivo: ela esperava que eu a interrompesse com um “Marad só nos deixará longe de Larak”, mas eu nada disse dessa vez e ela continuou: – Kish e Kutha serão seus últimos destinos antes de atravessar o rio Tigre, e depois vocês seguirão ao longo da margem até Larak. Mesmo que se atrasem um pouco para sair, vocês estarão lá bem antes do pôr-do-sol.

Quando ela se calou eu peguei sua mão que estava sobre meu ombro e perguntei animado por poder ver o mundo de fora da cidade e triste por novamente ter de deixar para trás alguém que eu gostava tanto.

– Vou te ver de novo, Gemenanna?

– Hoje e amanhã.

Gemenanna era quase como a minha segunda-mãe, então nos era permitido gastar parte de nosso tempo sem fazer nada pelo simples fato de eu ainda ser só um menino. Ela me deu suas últimas aulas naquela tarde sobre nossos costumes e geografia, pois seria difícil me ensinar a escrever uma vez que lacraram meus materiais em caixas para uma longa viagem. Quando o sol projetava sombras alongadas, mas ainda no alto do céu, ela me levou para fora do palácio. Há quantos anos eu não saía daquelas paredes? Desde a última vez que vi minha mãe em minha tenra infância. Pensar nisso naquele momento me fez chorar em silêncio e de forma seca, pois ainda era viva a lembrança de que eu não aproveitei meu tempo ao lado de minha mãe. Eu não quero parecer trágico, mas acho que todo mundo pensa isso quando não vê mais a própria mãe, seja por uma separação como a nossa ou seja por morte e isso é um tipo de sentimento que eu não desejo para ninguém.

Descemos pela rua principal onde existia a segunda maior movimentação de pessoas indo e vindo, algumas com traços que eu nunca vi antes que ia desde o nariz adunco até figuras ossudas e altas. Depois passamos por praças onde alguns menos afortunados ouviam lendas de um homem letrado que falava tão bem que eu até quis ficar para ouvi-lo entoar a Epopéia de Gilgamesh, mas Gemenanna impediu-me. Dali partimos para os quarteirões de mercados pequenos de frutas e tecidos que seguiam por um longo pedaço de terra que ia desde a fonte da entrada oeste da cidade até a praça central. Lá era um bom lugar porque os cheiros dos incensos comercializados ali me lembravam por demais das minhas idas clandestinas ao zigurate de Inanna. Clandestinas porque garotinhos novos demais não são aceitos em um templo cuja deusa é diretamente ligada ao sexo e à guerra. Ah, os tecidos! Em sua maioria eram cores sóbrias grudadas no algodão e ás vezes com algum bordado geralmente contendo um dos símbolos de algum de nossos diversos deuses, mas também existiam tecidos coloridos de seda com lindos bordados ou com pinturas geométricas. A serviçal me falou que aqueles tecidos vinham de fora, do lugar que o sol se põe, onde existem homens muito hábeis com espadas curvas e grandes seres com poderes cósmicos e fenomenais selados em objetos metálicos. Nunca acreditei muito nessa segunda coisa sobre aquele lugar, afinal, nem mesmo nosso deus supremo, o Dingir Anunnaki Anu deveria ter o poder para dobrar o universo em favor de um mero mortal, já que nem mesmo o tempo ele dobrava, caso contrário sua casa que cruza o céu passaria aqui uma vez por ano, e não a cada três mil e seiscentos.

Estávamos no centro da grande rua dos pequenos mercados e suas tendas coloridas quando ouvi um senhor dizer para um cliente que alguns dos tecidos que tinha para vender foram feitos por uma hábil senhora que vivia na rua principal, mas que ele podia pegar os tecidos de sua esposa que eram, segundo ele, tão bons quanto e até mais baratos que os da hábil senhora.

Senhora... Que fazia tecidos... Na rua principal... As palavras surgiram assim na minha mente. E logo depois dessas palavras o murmúrio da cidade pareceu diminuir em sincronia com o aparecimento daquela lembrança naquela mesma manhã quando eu e o príncipe fomos surpreendidos pela abertura da porta.

Talvez a hábil senhora que fazia tecidos fosse minha mãe! Na hora eu tentei forçar a minha acompanhante a voltar, mas é difícil para uma criança magra como eu era virar o corpo de uma senhora relativamente forte para sua idade e acreditem se quiser: ainda tenho plena certeza que a pressa em voltar ao palácio a fez ficar mais forte naquele instante. Se eu não podia voltar, eu poderia avançar e ver se existia a possibilidade de minha mãe estar mais a frente do mercado. Foi o que eu fiz.

Eu não pude simplesmente andar do lado de Gemenanna de mãos dadas com ela o tempo todo! Mesmo se por acaso minha mãe estivesse ali, a serviçal não me deixaria ficar com ela por muito tempo. E eu quis muito, muito achar minha mãe! Só vê-la mais uma vez! Só mais uma única vez! Soltando a mão da serviçal e fugindo de seu chamado contínuo de “Jovem vizir Hilmushen! Volte aqui!” eu provei ser como o próprio Enlil assim como eu provava para minha mãe até seis anos antes! Por onde eu passava era como se o vento corresse e derrubasse tudo! Devo ter levantado a saia de seis moças que usavam vestes mais soltas, derrubado três cestos de frutas, estourado uma corda de algum bode, chutado uns oito paus de barraca e pisado em algumas dezenas de pés nessa correria.

Nenhuma mulher vendendo tecidos nos primeiros quarteirões! Corri tanto atrás da possibilidade de nunca mais ter chance de ver minha mãe que acabei ficando fora do alcance da vista da velha senhora que tentava me caçar entre as pessoas que faziam trocas ali e em sua maioria me ofendendo de formas que nem mesmo minha imaginação consegue estimar hoje. Isso quer dizer muita coisa, pois eu conhecia poucas “palavras chulas” quando criança!

Corri até o fim do mercado e nada. O fim do mercado era marcado pela fonte de água que disse antes. Ela já não mais funcionava e tinha se transformando em um lago cercado por muros baixos que algumas pessoas usavam para beber água ou simplesmente admirar seu próprio reflexo. Ali algumas moças trançavam os cabelos umas das outras enquanto umedeciam os dedos para facilitar o processo de arremate com os próprios fios pela falta de presilhas ou fitas e uma delas, cujos cabelos estavam amarrados em um coque baixo, lavava frutas verdes. Uma dessas frutas de formato estranho e levemente pontudo que pareciam ser animaizinhos por causa da pelugem em suas cascas. Por conta da mulher que lavava frutas estar perto de mim quando cheguei ofegante à fonte e usando seus muros para cessar minha corrida, vi que uma daquelas frutas caiu no fundo do lago artificial no momento em que ela deixou um suspiro escapar, lamentando a perda de uma fruta. Resolvendo dar uma de herói eu prontamente subi pela mureta e senti a água turva atingir meu umbigo nu antes de eu me abaixar até o fundo e pegar a fruta para aquela senhora, tarefa que era bastante fácil, já que eu não precisava submergir toda minha cabeça para tatear o fundo. Seria um grande problema segundo algumas normas bobas se ela molhasse suas roupas, já eu... Eu era o escravo do príncipe! Eu podia fazer o que quisesse ali fora! E além disso eu era um menino novo e ninguém se importava demais se um menino como eu ficava de roupas molhadas ou nu até se tornar um adolescente, exceto na época das secas.

– Deixou cair... – Disse eu sem olhá-la diretamente quando me pus de pé dentro da fonte e lhe estendi a fruta. Eu não queria que a mulher me reconhecesse como “o menino do zigurate que vive no palácio”, pois minha veste mais simples, minha aparência mais saudável que a maioria dos meninos de minha idade, os olhos pintados e os cabelos bem penteados e soltos denunciavam minha identidade como o escravo do príncipe. Bobo era eu que na época acreditei que só precisava esconder meus olhos pintados para não ser reconhecido caso eu estivesse sem meus adereços metálicos como naquela tarde. – ... Toma.

Aquela mulher deve ter ficado me olhando por horas, pois eu sentia a fruta em minha mão estendida e o olhar dela sobre mim feito um abutre na carniça. Quando finalmente vi seu braço se mover para pegar o fruto de minha mão que já estava dando sinais de cansaço ela resolveu agarrar meu braço e me puxar para um abraço. Eu realmente esperei que aquilo não fosse uma forma de agradecer alguém, naquele instante em que meu tórax nu e molhado encostou na cintura daquela senhora tentei sair do abraço repentino, porém hoje me arrependo de ter tentado fugir dela. Aquela senhora com pele de tijolo e compridas unhas rosadas estava chorando por me ver, chorando em silêncio, pois eu apenas notei seu choro pelo levantar e abaixar de seu peito e quando senti suas lágrimas quentes em minha testa. Depois que reconheci o cheiro de tinta vindo das roupas dela eu mesmo acabei chorando. Eu tinha encontrado Hilgahaan!

Eu apenas ouvi ela dizer como eu tinha crescido e como eu estava bonito com os olhos pintados no meio de seu choro, assim como eu disse que ela ainda estava bonita como eu me lembrava. Infelizmente nosso momento durou muito pouco, pois Gemenanna nos alcançou e somente sua presença foi o bastante para que o abraço de reencontro com minha mãe acabasse.

– Pela Rainha Abaixo da Terra! – Exclamou a velha um pouco antes de me pegar pelo braço. – Com tantas fontes no palácio e você entra justamente nessa!

– Gemenanna!

Quem disse isso não fui eu, mas Hilgahaan, minha mãe. Eu vi nos olhos delas que se conheciam e que longos discursos ocorreriam ali por minha causa, mas nada foi dito por um provável sigilo. O único a abrir a boca ali fui eu e quase gritando pela rapidez das minhas palavras:

– Eu vou embora de Ur amanhã! Eu vou ser vizir em Larak!

Minhas palavras fizeram as garotas que trançavam os cabelos voltarem seus olhos para mim, assim como fizeram os olhos de todos que ali passavam. Pelo visto nunca tinham visto o escravo do príncipe antes... Bom, não deixava de ser verdade, pois da última vez que devem ter me visto eu era só o “filho da sacerdotisa” ou “menino do zigurate”. Isso quando não me chamavam de “filho da puta”. Minhas palavras foram ditas com a intenção que Gemenanna me deixasse ficar mais tempo, mas só serviram para ela me arrastar para longe de minha mãe. Ela não podia me tirar da serviçal, era contra as normas, no entanto ela teve tempo de tirar um adereço das mãos e dá-lo à mim. Era um anel de alguma pedra lisa e levemente alaranjada, provavelmente tirada do leito do rio e furada para que um dedo passasse por ela, que na época cabia apenas em meu polegar esquerdo. É o único tesouro que levo de minha mãe até hoje.


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Notas finais do capítulo

Sim! Que reencontro lindo!
E sim, "shakira" é "manteiga" mesmo! Eu dei altas gargalhadas quando vi o "poema" que dizia que "pão sem ovo, sem sal e sem manteiga não dá" tinha a palavra "shakira" para "manteiga"!
Vasto Caminho é um mundo dos mortos comandados por Ereshkigal, entende-se que lá até mesmo um deus pode perder sua identidade e permanecer para sempre como uma fantasma se a deusa Ereshkigal assim quiser.
Vizir é um termo de origem persa para o "ajudante/ministro/conselheiro" de um governante, em geral de sultões, xás e líderes islâmicos.

Até o próximo capítulo!



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