lago dos cisnes escrita por Aphrodite Laclair


Capítulo 1
(ou uma mortalha de seda)


Notas iniciais do capítulo

nesse au a mãe do gil e do vince não os abandonou— ela morreu e as crianças acabaram órfãs e sozinhas, basicamente.
esse era um plot meio “seu otp se conhece durante uma missão suicida” que eu dei uma adaptada bem marota para fazer sentido numa fanfic vince/gil. espero que esteja legal?
acho que isso é meio vince-centred...



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“Sometimes you wake up. Sometimes the fall kills you. And sometimes, when you fall, you fly.”

— Neil Gaiman, Sandman

lago dos cisnes

(ou uma mortalha de seda)

para boneca,

eu te amo com todo meu coração.

acho que não tem muito além disso que pode ser dito.

01:22

Seu rosto está gelado contra a janela do avião. Do lado de fora, o céu — escuro e brilhante e colorido por todas aquelas estrelas reluzentes — te faz triste como nada nunca conseguiu antes. Gilbert te disse uma vez que a maioria delas já está morta e, agora que você pensa sobre isso, você sente uma vontade quase incontrolável de dizer a ele oh, bem, que ironia. Em breve nós estaremos mortos também.

— Como você se sente? — a voz dele soa quieta, como se com receio da sua reação, e você sente vontade de mandá-lo ir se foder. É simplesmente porque esse é o tipo de pergunta idiota que você odiou por toda sua vida e que agora, numa situação dessas, você apenas não está com paciência para suportar.

— Nunca estive melhor. — você acaba respondendo, apenas para não deixar o silêncio pendurar. Quando você se alistou no exército, doze meses e quinze dias antes, você apenas queria seguir seu irmão mais velho; não tinha nenhuma ideia de grandeza ou orgulho em servir seu país que impulsionava seus colegas a matarem e morrerem em nome da honra (de quem?, era a pergunta de um milhão de dólares. ninguém nunca soube te responder). É claro, você se arrepende disso agora, quando é tarde demais; não é como se você tivesse alguma alternativa: ninguém jamais deveria morrer sozinho. A vida já é solitária o suficiente.

— Ainda dá tempo de desistir, Vince.

— Você desistiria? — você fala, mas seus os olhos ainda estão presos no brilho infeliz das estrelas mortas. Será que a luz sabe que sua dona já morreu? Será que, na sua triste viagem pelo espaço, ela está lamentando? Será que é o tipo de silêncio feito de gritos e lágrimas, como o seu?

— Você não sou eu.

— Sim, e uma margarida não é uma rosa, blá blá blá. Responda a minha pergunta.

— Se você fosse embora, — ele começa, suas palavras coloridas de incerteza melancólica — eu ficaria feliz, porque não teria que te ver morrer.

— Mas não iria comigo. — você quer olhar nos olhos dele, seu corajoso irmão mais velho, mas não consegue. Você nunca foi muito bom em enfrentar esse tipo de valentia abnegada e idiota — ela sempre te fez querer fugir.

— Não, Vince. Eu não iria.

— Então acho que não temos nada para discutir aqui, Gilbert.

— Isso é ridículo.

— A vida toda não é?

01:45

Quando ele finalmente vai embora, a porta batendo pela força do vento e a falta de vontade do ocupante do quarto de impedi-la de fazer isso, você suspira. Você nunca pensou que tudo acabaria assim, com esse cheiro de pinheiros ao seu redor e a lua observando desse jeito longe. Você não sabe por que, mas espera que quando tudo tenha um fim esteja fazendo sol. É engraçado, porque você sempre detestou o calor na sua pele, mas soa justo o suficiente — o último desejo de um homem moribundo. Soa poético, até.

Gilbert é quem sempre gostou de poesia.

Quando vocês eram crianças e ainda tinham uma mãe, ela costumava pegar vocês no colo, um braço ao seu redor, um braço ao redor do seu irmão, e ficar assim por longos, longos minutos. Quando vocês começavam a ficar inquietos — muito pequenos para saber a importância de momentos como esse — ela começava a murmurar poemas em seus ouvidos. Nem sempre faziam sentido — nem sempre eram textos que outras pessoas escreveram. Às vezes ela apenas pegava as palavras que achava bonitas e colocava todas juntas, sem uma ordem específica, apenas apreciando o barulho que elas faziam ao tomar formas no ar. Esse ritual se repetia todos os dias, durante a tarde e antes de dormir, e com o tempo você e Gilbert foram ficando ah, tão cansados — aquilo era tão chato, não era? O abraço da mãe de vocês e pequenas frases sussurradas como um segredo. Vocês estavam crescendo e não tinham mais tempo para essas pequenas bobagens e, é claro, vocês acharam muito importante dizer isso a ela. Ela ouviu, e sorriu, e jurou a vocês que nunca faria aquilo novamente, se era assim tão irritante.

É claro, ela cumpriu sua promessa — ela sempre cumpria. Foi só quando ela morreu que você percebeu o quanto conseguiu quebrar o coração dela.

02:03

— Nós chegamos. — é tudo que ele diz, parado o mais longe possível de você (o que, tendo em vista que vocês estão numa sala minúscula, significa sete passos representando a eternidade). Não é assim que você queria que as coisas acontecessem. Não é como se vocês tivessem todo o tempo do mundo. Mas mesmo sabendo disso, você não consegue se forçar a fazer as pazes com Gilbert — você precisou encarar a morte para perceber quanto ressentimento você guarda dele, enterrado bem fundo no seu coração.

— Vamos fazer isso, certo? — você responde, quase sem propósito, sem interesse. As botas apertam sua panturrilha e você tem a impressão que, se tiver que andar mais de dois quilômetros com aquilo, certamente vai começar a mancar. Que ridículo, morrer com dor no pé — parece exatamente o tipo de coisa que aconteceria com você.

É claro, ele não te responde. Não há por quê.

Você percebe, então, com a claridade de uma epifania, que ele não sabe fazer as pazes com você. Não sabe estender a bandeira branca, sequer sabe se isso é possível, porque foi você que sempre se prestou a esse papel. Era você que, a vida toda, perdoava, aproximava, orbitava — como ele poderia, com vinte e sete anos, aprender esse tipo de coisa agora? A realização que você, Vincent, o conhece muito mais do que ele te conhece te enche de amarga satisfação. A vida é injusta, pois não? Você quer contemplar o quanto antes de passar para o outro lado.

Sua mãe sempre te dizia que quando você nasceu Gilbert ficou duas horas inteiras acampado ao lado do seu berço. Ele era pequeno demais para poder se colocar nas pontas dos pés e observar lá dentro, mas mesmo assim ele ficou ali, imóvel e em silêncio, esperando que você abrisse os olhos e, de alguma forma, o visse. Por bastante tempo você pensou que Gilbert tinha a tola esperança que, se ele fosse a primeira coisa que você encarasse na estranheza de sua nova casa — de sua nova vida —, você o amaria para sempre. Depois de uns anos, mudou de ideia — parecia simplesmente uma coisa muito boba de se pensar. Atualmente, entretanto, você tem a impressão que sua primeira suposição estava certa. Gilbert, mesmo quando criança, sempre sentiu a necessidade de ter seu amor, seu afeto, seu carinho, e, é claro, você sempre se sentiu muito feliz em dar.

(até se cansar de ser sempre o que cede)

Você se pergunta se as coisas teriam sido diferentes se, ao abrir seus olhos, a primeira coisa que você tivesse visto fosse seu ursinho de pelúcia.

— Você tem certeza? — a voz dele corta o ar, com a determinação pertencente apenas àqueles que nunca sabem ler a atmosfera. Você pisca, surpreso, porque já tinha até se esquecido que ele estava ali; já tinha até se esquecido que você ainda estava vivo e, vivo, tinha uma missão a cumprir.

— Do quê?

— Disso.

— É a terceira vez que você me pergunta isso nas últimas três horas, Gil. — você responde, quase quietamente.

— Eu gostaria que você fosse embora. — ele diz, muito formal, como se tivesse ensaiado aquilo na frente do espelho cinquenta vezes. Conhecendo seu irmão, você duvida, mas sempre vale a pena sonhar um pouco. Provavelmente ele apenas decidiu que não precisa da sua companhia.

— Que pena para você. — você sorri um pouco afetadamente, um resquício triste da sua vida antiga, em que existia espaço para piadas ruins e noites de sono que duravam mais de três horas. Você sabe, conscientemente, que adorava dormir, mas parece tão longe, tão distante, como uma preferência externa a você, de alguém que apareceu no obituário e que você conhecia vagamente, apenas o suficiente para saber que ele estava sempre dormindo por aí.

— Vince. — a voz de Gilbert tem aquele tom de aviso que ele costumava usar com você quando você tinha sete anos de idade, mas que se tornou completamente inútil quando você cresceu. É claro, seu irmão nunca percebeu, e você nunca se deu ao trabalho de chamar a atenção dele para esse fato.

— Sim, Gil?

— Você não tem que fazer isso.

— O que, explodir a bomba ou morrer? Ou sair do avião?

Vincent.

— O seu lado censurado, — você se aproxima, sete passos, o suficiente para rir contra o pescoço dele e ver os pelos se arrepiarem. — sempre foi o meu favorito.

(e é então que você sai,

mas as cortinas não caíram ainda)

04:41

(você lembra quando aconteceu pela primeira vez. você tinha dezessete anos e estava sentado ao lado do seu irmão, os ombros de vocês se encostando, a pele de seus braços separadas apenas por duas camadas de casacos surrados. vocês andavam vivendo na rua há três anos, naquele tempo, e você estava acostumado com o frio e com a fome. você se lembra de sentir como ele estava tenso, e de pensar que gilbert era tão forte mas que nunca seria capaz de suportar as coisas que você suportaria. você se lembra de virar para ele e dizer eu li numa dessas revistas semana passada que o calor humano é muito mais eficiente contra uma hipotermia do que cobertores. ele te ignorou, é claro, porque gilbert sempre ignorava todas as suas ideias brilhantes, mas mesmo assim foi aí que começou. bem aí, você tem certeza,

porque duas horas depois vocês se beijaram pela primeira vez).

Você sente muito mais do que ouve quando ele entra na sua barraca. Você não sabe bem o por que, mas sempre, sempre foi assim — você conseguia sentir nos seus ossos quando Gilbert estava no mesmo lugar que você, mesmo que ele estivesse escondido e silencioso como um agouro da morte (o que, sendo honesto, era a maioria das vezes). Você está sentado num desses banquinhos pequenos que sempre te deixam horrivelmente desconfortável, curvado sobre a mesa repassando o plano pela milésima vez. É uma parada ridícula, a verdade é essa: chegar o mais próximo possível da base inimiga e detonar uma bomba, mandar tudo pelos ares, inclusive vocês. A guerra, assim como a vida, não tem que ser difícil ou complexa — ela tem que ser eficiente. Você não diz nada, nem quando ele se move e para bem atrás de você.

— Vince. — ele estende a mão e vira seu rosto para ele, quase delicadamente, e você sente vontade de dizer que não é apenas uma bela boneca com a qual ele pode fazer o que quiser. Mas você não diz, é claro. Não é como se Gilbert fizesse por mal.

(é engraçado, você não acha? as coisas que seu irmão faz com boas intenções são sempre as que machucam mais)

— Irmão. — você diz com sua voz mais infame. — Você está aqui para algum momento já que vamos morrer, não quero ter arrependimentos? Você quer me beijar? Se declarar para mim? Pedir meu perdão? Lamentar sobre ter cuidado mal da Lucy, nossa cachorra quando éramos crianças? Eu não faço exatamente o tipo de cara que sabe consolar alguém, você sabe. Não é exatamente minha área de atuação.

— Você está com medo? — ele pergunta, solenemente ignorando tudo que você disse, como de praxe. Você reclamaria (bastante) dessa mania horrível que ele tem de só ouvir o que quer, mas a pergunta te surpreende — não pelo que é (quão típico de seu irmão perguntar uma coisa dessas), mas por você não saber a resposta. Você está com medo?

— Eu não sei. — você murmura, e puxa seu rosto para longe das mãos dele. Gilbert se senta no chão, bem em frente a você, e você pode sentir a tristeza, o desespero que ele sente (vocês sempre, sempre foram praticamente a mesma pessoa — mesmo antes da mãe de vocês morrer, era como se vocês fossem capazes de prever o que o outro estava pensando, quase como se vocês funcionassem na mesma sintonia, encontrando som onde para todo mundo havia apenas estática). Você se inclina só o suficiente para sua testa tocar a dele, e para que você possa olhar no fundo dos olhos — quase dourados — da pessoa que você mais ama no mundo.

— Eu estou com medo. — você não diz nada. Porra, o que há para dizer? Vocês vão morrer. — Eu vou sentir sua falta, Vince.

— Eu sei. — você sorri quietamente. — Eu vou sentir a sua também.

05:58

(quando a mãe de vocês morreu vocês moraram com a tia may por dois meses. vocês achavam que ela iria adotar vocês, e ela achava que aquele era um arranjo temporário, o que basicamente explica por que vocês acabaram sendo meio que expulsos pouco tempo depois. diferentes expectativas. diferentes realidades.

depois da casa da tia may, vocês moraram cinco meses e duas semanas com a mãe da mãe de vocês, uma mulher severa que vocês nunca tinham visto antes chamada mary kate. ela era alta e rígida e fazia vocês dormirem separados — tem alguma coisa estranha aqui e eu não vou aceitar coisas estranhas nessa casa — e vocês acabaram fugindo quando a situação se tornou horrível demais.

a assistente social achou vocês e os levou para a casa do tio peter e da tia jeanne, onde vocês ficaram por uma semana e dois dias. eles tinham três filhos e pouco dinheiro, e vocês se sentiam mal com tudo que acontecia de errado.

depois deles não tinha mais casas de parentes, mas ainda existia o orfanato, e foi para onde vocês foram. chegando lá, conheceram uma adolescente chamada marine, que contou que tinha sete anos que ela não via nenhum de seus irmãos mais novos, que na época eram quase bebês e tinham sido adotados.

vocês fugiram e nunca mais olharam para trás).

— O sol está nascendo. — Gilbert diz, tentando sem sucesso acender um cigarro. Vocês estão seminus naquela cama improvisada, feita de basicamente cobertores velhos e algumas macas de campanha — e que mesmo assim consegue ser melhor do que muitos dos lugares em que vocês já dormiram —, aproveitando as últimas poucas horas de liberdade (de vida? é estranho como esses dois conceitos se confundem).

— Eu estava pensando que quando eu morrer gostaria de estivesse sendo banhado pelo sol.

— Você sempre odiou o calor na sua pele, Vince.

— Eu sei, mas é meu último desejo. — você sorri. — Morrer sob o sol.

— A iminência da morte está provavelmente te fazendo delirar.

— Ah, é? E o que você estava pensando? — você se move e acaba com a cabeça no colo dele, observando os padrões da fumaça no ar, tentando gravar aquela imagem tão fundo em sua mente que será a única coisa que você verá quando a bomba explodir.

— Que eu gostaria de morrer velho e cinza, junto com você.

— Velho e cinza? Você sempre detestou a ideia de velhice.

— E você sempre detestou o sol.

Touché.

Ele bate o cigarro num cinzeiro ao lado do seu quadril — que na verdade é um copo manchado e meio quebrado que você achou por aí — e revira os olhos quando a chama apaga.

— Você viu onde eu deixei o isqueiro?

— Debaixo do travesseiro, atrás de você. — (silêncio) — Gil?

— Uh?

— Você me ama?

— Que súbito. — ele diz e ri, balançando a cabeça. Você nem quer saber o que é tão engraçado; o senso de humor dele sempre foi meio estranho. — Amo, é claro que eu amo.

— Bom.

— Bom?

— Porque eu amo você, também, e não queria morrer pensando que era unilateral.

— Ia ser horrível.

— É, ia ser mesmo.

06:21

— Vamos?

— E nós temos outra escolha?

06:42

Vocês caminham, os seus ombros se encostando, a pele dos seus braços separada por duas camadas de casacos novos e quentes que providenciaram para vocês (você tenta ignorar veementemente a ironia, mas ela está quase gritando na sua cara). Está frio daquele jeito irritante que você detesta, e o barulho que a bomba faz — contando até seu segundo final — é o tipo que a gente espera que faça na sala de espera para falar com o diabo.

— Falta pouco. — Gilbert fala, mais uma das suas frases idiotas e sem propósito que te deixaram louco durante toda a madrugada, mas que agora (falta mesmo muito pouco) não parece tão ruim assim.

— Eu quero ter um daqueles momentos já que vamos morrer mesmo, prefiro não guardar arrependimentos. Você está disponível?

Você quer falar sobre isso?

— Eu realmente me arrependo de ter cuidado tão mal da Lucy.

— Ah, eu também. Ela era uma boa cachorra.

— E de não ter sido um bom filho para a mamãe.

— Você foi sim, Vince.

— Não, não fui.

(o silêncio se arrasta. gilbert nunca sabe o que dizer — agora, nas portas da morte, você meio que é capaz de quase perdoá-lo)

— Você sabe, eu amo você.

— Eu sei, Gil. Eu sei. Eu amo você também.

O barulho se torna mais irritante; frenético, até, e você consegue ver a recepcionista levantando os olhos da tela do computador, o capeta está disponível para falar agora, é naquela porta azul — e o suor na sua nuca soa muito parecido com terror — e você realmente quer apenas esquecer a contagem dos segundos—

— Eu quero que você saiba, — (a morte observa da curva da próxima árvore) — que não importa o que aconteça—

(e então, é claro, tudo é silêncio,

estática

e luz)

06:45

(quando você nasceu, fazia sol,

quando você morreu, também)


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