A Guardiã do Sol escrita por Paladina


Capítulo 1
A nova Guardiã


Notas iniciais do capítulo

Está um pouquinho longo, mas peço que tenham paciência e aproveitem a leitura o máximo!



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Quando Sange finalmente chegou à Capital, ainda não havia amanhecido, mas as pessoas já encontravam-se em sua jornada de trabalho diária. Alfaiates costuravam, padeiros preparavam a massa, taverneiros abriam suas portas e os guardas passeavam em duplas pela cidade, vigiando qualquer um que pudesse parecer suspeito. Sange não era um destes, pelo contrário, aparentava ser uma simples feirante: Vestida da cabeça aos pés com farrapos, guiando gentilmente uma carroça cheia de caixas em meio a estrada de cascalhos, não poderia passar-se por mais do que isto. Chamavam a cidade de Capital por nela habitar os Guardiões — cavaleiros da mais alta Ordem de paladinos que recebiam poderes diretamente dos deuses — e por estar localizada em meio a principal rota comercial do Reinado.

As estrelas ainda poderiam ser vistas ao longe, no horizonte, desaparecendo pouco a pouco enquanto no extremo oposto o sol erguia-se para governar mais uma vez. Uma brisa fria envolveu Sange, trazendo consigo o odor do orvalho da manhã. A jovem puxou as rédeas, fazendo com que seu velho cavalo relinchasse em reclamação.

— É aqui. — Comentou para si mesma, enquanto descia da carroça. A sua frente, uma grande estalagem de madeira mostrava-se aberta, mas ao contrário dos demais estabelecimentos, parecia estar aberta durante a noite inteira. Pegou um grande caixote e adentrou o local.

Pequenos degraus a levaram para o centro da taverna, decorado de modo rústico, com várias mesas espalhadas pelos cantos, um balcão vazio e um pequeno palanque de madeira onde um bardo tocava um alaúde.

— Encomenda. — Disse, e o bardo parou de tocar, voltando o rosto para si. Era um senhor de meia idade, sorridente, barrigudo e vestido em couro. Tinha uma careca brilhosa e uma barba espessa. Desceu do palanque e caminhou em passos desengonçados em sua direção.

— Sange, minha querida. Desta vez fora rápida, aprendeu algum atalho?

— Quase isto, na verdade. — Apoiou o caixote em cima de uma das mesas. — Meu cavalo resolveu parar de ser teimoso... Ou quase.

— Entendo. O palafrém sempre teve esta personalidade.

Sange assentiu com a cabeça e olhou ao redor. A maioria das mesas encontravam-se vazias, com exceção de duas; Uma onde um nobre dormia bêbado e outra onde três encapuzados bebiam silenciosamente. Estreitou o olhar: Pessoas com capuz na capital só poderia significar duas coisas, ou um assassino, ou um mercante negro.

— E “aqueles” ali? — Indagou Sange, apontando para os encapuzados com um meneio de cabeça. O velho taverneiro mordeu o lábio, hesitante, e tirou uma quantia gorda de dinheiro do bolso.

— Prefiro não mexer com eles, nem descobrir o que querem. Tem vindo diariamente aqui, bebido bastante, não me arrumam confusão e pagam o que pedem... Então estou no lucro. Tome, sua recompensa. — Respondeu, entregando o dinheiro para ela.

— Aqui tem mais do que combinamos, Terrie. — Observou Sange. Terrie segurou sua mão e fechou em volta do dinheiro.

— Você tem trabalhado com dedicação e não reclama do que peço. Digamos que estes a mais são pela sua competência. Faça valer.

Sange assentiu novamente com a cabeça, satisfeita pelo dinheiro de mais uma missão concluída. Antes que pudesse abrir a boca para falar algo, o nobre bêbado acordou repentino, como quem sai de um pesadelo, e limpou o rosto molhado de vinho com a manga da camisa. Um desperdício, percebeu Sange. O tecido dele era bom e caro.

— Me dê água! Ou mais vinho! Agora! — Gritou, em ordem, enquanto colocava uma moeda em cima da mesa. Havia quase um tesouro inteiro ali, em cima da poça de vinho que pingava de sua mesa.

— Senhor, não acha melhor retornar para casa? Já está amanhecendo. — Aconselhou o taverneiro, enquanto ia até o balcão buscar o que ele pediu. — Lhe darei um copo d'água.

— Claro, claro, claro... — Repetiu o bêbado, massageando a têmpora. Não parecia estar totalmente sóbrio. — Estou indo.

Sange acompanhou mais o movimento dos encapuzados do que os do bêbado, que começou a levantar e se dirigir para a saída sem nem esperar por seu copo d'água. Os três suspeitos saíram logo atrás, sem dizer uma palavra. Terrie ocupou-se em limpar as mesas e pegar as moedas que deixaram para trás.

— Vou indo, Terrie.

— Espere, há um trabalho que gostaria de lhe dar.

— Deixe isto para depois. — Pediu, fazendo um gesto rápido. — Estou cansada de tanto viajar, vou procurar uma estalagem e descansar, depois eu passo aqui.

— Aqui é uma estalagem. — Cortou o taverneiro, estranhando o comportamento de Sange. — E você sempre fica por aqui.

Outra estalagem. — Insistiu, dando as costas e se dirigindo para fora do local. — Depois conversamos.

O velho palafrem encontrava-se no mesmo local que havia deixado. O sol raiava no céu, a cidade estava mais movimentada, e não havia sinal do bêbado. Ou dos encapuzados. Pelo o pouco que conhecia da Capital, sabia que nas proximidades não haviam bons locais para abordarem alguém sem chamar atenção dos guardas, e muito menos becos silenciosos. Para onde, então, teriam ido?

Em meio aos devaneios, e ao trânsito de pessoas ao longo daquela estrada, um garoto de rua se aproximou. Deveria ter seus dez anos, era moreno, tanto de cabelo como de pele, e tinha olhos afiados; Mas não tão afiados quanto os de Sange, que percebeu o interesse repentino do pequeno em sua cintura, onde estava a bolsa de dinheiro que recebera de Terrie. Sorriu para ele.

— Ei, você. — O chamou, e o semblante do garoto mudou, como se tivesse levado um susto. Parou alguns metros de distância. — Quer uns trocados?

— Gostaria, senhorita... — Disse, mas sem tom envergonhado, como se não ligasse para o que estava prestes a fazer. Talvez estivesse acostumado. Parecia ter mãos leves.

— Então diga-me: Há uma passagem que plebeus não conheçam?

— O que você quer dizer? — Perguntou, erguendo uma sobrancelha. Sange atirou uma moeda, e o garoto pegou-a no ar. Mordeu. — É brilhosa, mas ainda não sei de nada.

— Vamos ver... Uma passagem que um grupo seleto de pessoas utilize, como algum mercante negro. Algo que os guardas não tenham acesso. — E jogou outra moeda.

— A Capital é cheia de túneis, sabia?

— Subterrâneos? Me mostre um.

O garoto estendeu a mão.

— Você sabe negociar. — Sorriu Sange, dando a ele uma terceira moeda.

Não muito longe da taverna de Terrie havia um bueiro grande o bastante para um adulto entrar, e o único problema encontrado por Sange e o garoto de rua — cujo nome era Jour — foi abrir a tampa, que demonstrou-se muito pesada.

— Nos separamos aqui, garoto. — Afirmou Sange, enquanto entrava no bueiro. — Por via das dúvidas, você nunca me viu, não sabe quem eu sou, certo?

— Uma moeda para cada não-te-conheço.

— Não, Jour, não desta vez. — E adentrou a escuridão do túnel.

Ao cair no chão fez respingar um pouco de água malcheirosa, e compreendeu que estava em um túnel de esgoto. Era uma estreita passagem, iluminada apenas pelo buraco de alguns bueiros, tornando maior parte do percurso uma grande penumbra. Acima de sua cabeça, Jour colocou a tampa em seu devido lugar, e tudo se silenciou. Sange passou a ouvir apenas um gotejar e alguns balbucios vindo de longe.

Cada passo era mais difícil que o outro. Sange começou a ponderar se o que estava fazendo era de fato certo. E se tudo fosse um engano? E se estivesse se metendo em algo que não era de seu ofício?

— AAHHHHHHHHHHHHHH! — Um grito ecoou por todo o corredor, e Sange prendeu a respiração por um curto momento. Depois, veio outro, e mais outro, como se fossem infinitos pedidos de ajuda. E de dor, reparou. No que quer que estivesse se metendo, talvez fosse para um bem maior. Apressou-se para chegar até o fim do túnel, e então alcançou uma bifurcação. Antes que pude decidir entre esquerda e direita, os gritos pararam repentinamente. Olhou para cima: Havia, ali, uma saída.

Realizou uma manobra nas paredes, o mesmo tipo de manobra que fazia quando criança, quando vivia nas ruas e precisava escapar de estupradores ou feirantes que não gostavam que roubasse seus alimentos, alcançando assim a tampa do teto. Forçou-a para cima, e por sorte esta era bem mais leve que a primeira, então conseguiu empurrá-la e abrir caminho para que retornasse a superfície. Viu-se então em meio a um cômodo velho, com uma mobília desgastada e empoeirada, largada desordenadamente pelos cantos. Um grito foi abafado. Sange encostou-se na parede e foi caminhando lentamente até o quarto ao lado.

— P-por favor, parem... F-farei qualquer coisa...

— Lhe demos um preço. Você não pagou.

— O-o rei... E-eu sou a-amigo do rei... — Foi calado com um tapa, e encolheu-se no chão.

Assim como o cômodo onde anteriormente se encontrava, o quarto era empoeirado, com poucas mobílias e parecia abandonado. O nobre que havia encontrado na taverna de Terrie estava amarrado, jogado ao chão e completamente nu. Um dos encapuzados, agora sem o manto negro, estava de pé diante dele, agredindo-o. Deveria ter seus um e noventa de altura, possuía ombros largos e se vestia com um gibão de peles. Tinha cabelos pretos e curtos. De onde estava, Sange não conseguia ver seu rosto. Os outros dois ainda estavam com o capuz, um sentado ao lado de um móvel e outro de pé, encostado na parede.

— Você pode ser amigo até de um Guardião! Eu estou pouco me fodendo! Você irá aprender o que acontece com pessoas que não pagam suas dívidas. Anthony, Berto, virem ele de quatro.

Os dois que ainda estavam de capuz começaram a se mover em direção ao nobre, segurando ele pelos ombros e o virando, enquanto o mais alto dentre eles desatava o cinto.

— N-não! N-n-não! — Implorou o nobre, começando a chorar. Sange cerrou os punhos, cansada de ser apenas uma espectadora, e saiu do esconderijo onde estava.

— Esperem! — Gritou, e os três suspeitos viraram para trás. O nobre encarou-a em meio as lágrimas. — Creio que isto é o bastante para pagar a dívida dele.

Jogou sua bolsa de moedas no chão. O que deveria ser Anthony pegou e analisou o conteúdo. Virou o rosto para o mais alto, mas este apenas riu.

— Isto não paga nem o sapato que ele usa, mulher, quanto mais a dívida! — Tirou o cinto e deixou a calça deslizar em suas pernas. — Peguem-na, rapazes, enquanto eu termino o serviço com este aqui.

Tentou abrir a boca para contestar, porém, Anthony e Berto avançaram contra ela brandindo adagas em uma velocidade surpreendente... Mas não surpreendentemente o bastante para serem assassinos. São meros comerciantes negros, e com estes, Sange lidou sua vida inteira.

O primeiro a golpeou na horizontal, mas Sange segurou seu pulso e girou o corpo, colocando o braço de seu adversário em seu ombro e jogando-o ao chão, atrás de si. Quando o segundo tentou uma estocada, esquivou-se e deu uma joelhada em sua genitália, fazendo com que ele se curvasse. Ignorou qualquer outra reação que ambos pudessem lhe dar e avançou contra o real inimigo: O que, neste momento, estava prestes a violentar o nobre.

Enquanto corria na direção do mesmo, pegou uma das moedas que deixaram cair no chão e atirou contra sua nuca. A dor não deve ter sido muita, mas foi o bastante para que este levasse a mão para o local e olhasse para trás, e foi ao virar o rosto que Sange desferiu um soco certeiro em sua jugular, jogando-o no chão.

— Ai. — Exclamou, envolvendo uma mão a outra. — Acho que perdi a prática.

O nobre encarou-a, com um misto de pavor e admiração. Mas a expressão não durou muito, logo tornou-se medo.

— Atrás de você! — Gritou, e Sange, graças ao aviso, esquivou-se de uma adagada vinda de Berto e deu alguns passos em direção ao canto do cômodo, onde havia diversas mobílias empilhadas, tentando ter mais visão.

Tateou a parede atrás de si, encontrando um pedaço de moldura solta, e tomou-a como arma. Anthony veio para um ataque, enquanto o principal adversário começava a se levantar. Sange desviou o ataque com a moldura, chutou-o e desferiu um golpe em sua cabeça, quebrando a moldura e fazendo-o desmaiar. Pegou a adaga de seu inimigo e sorriu.

— Vocês vão mesmo perder para uma simples plebéia?

— São apenas golpes de sorte... — Comentou Berto, enquanto auxiliava seu líder a se levantar e a por as calças no devido lugar. O nobre arrastou-se para perto de Sange, que cortou suas cordas de modo ágil.

— Onde estão suas roupas? — Questionou.

— Eles... Rasgaram. — Respondeu o nobre, cabisbaixo.

— Não se preocupe, arranjaremos outras.

— Vagabunda! — Gritou o mais alto. — Você não se safará desta!

— Não? Não mesmo? — Jogou a adaga para o alto. — Você é o milésimo que me diz isto. — E pegou-a ainda no ar.

— Acha que fala bem, não é? Não somos líderes do mercado negro por acaso. Você. — Apontou para o nobre. — Se você se levantar agora e atacá-la, todas as suas dívidas serão perdoadas.

Ele não faria isto, afinal, estava salvando-o. E estavam em números iguais, poderiam sair vitoriosos desta. Sange manteve a postura.

— Isso não é diplomacia. É chantag-- — Os punhos do nobre caíram em seu rosto, atingindo não apenas a face, como braços, barriga, pescoço. O golpe fora tão repentino que Sange acabou por deixar a adaga cair no chão. Quando tentou se recompor, mais golpes choveram em si, vindos de Berto e também do líder. Sentira pontadas de dor em diversas partes do corpo, como se estivessem pressionando-a contra o chão. Desmaiou antes que pudesse perceber que estava sendo pisoteada.

XxX

Acordou com a cabeça latejando e com a maior parte dos músculos doloridos. Os pulsos ardiam, e sua visão turva demorou-se a retornar ao normal. Quando finalmente deu-se por si, reparou que jazia em uma cela escura e fria, com forte cheiro de urina e sem janelas, iluminadas apenas pela luz que esgueirava-se da fresta da grande porta metálica que impedia sua saída do calabouço. Sange dirigiu um olhar para as mãos, presas por grossas e pesadas correntes de metal, haviam deixado seu pulso em carne viva. Há quanto tempo estava ali? Sentiu o estômago roncar, e só então reparou em sua própria fraqueza. Ajudar aquele nobre foi um erro, finalmente admitira, mas por um segundo sentiu-se capaz. Por um segundo sentiu-se como seu pai.

Passos vindos do corredor a tiraram dos profundos pensamentos, avivando-a para o que realmente estava acontecendo. Estava em terreno inimigo, e o que quer que precisasse fazer para sair dali, precisava fazer o mais rápido possível. A porta rangeu e abriu-se lentamente, banhando a sala com a luz alaranjada da lamparina. Um soldado de manto negro adentrou o local, trazendo não mais do que uma chave.

— Finalmente, uma alma viva. — Comentou, percebendo o quanto que sua garganta estava seca e sua voz rouca. — Veio me dar água?

— Mortos não precisam de água. — Respondeu a voz, ríspida. — E você será executada hoje. Em praça pública, com a honrada presença do Rei.

— Executada?! — Assustou-se Sange. Uma execução silenciosa seria viável para os mercadores negros, mas uma em praça pública e com a presença do rei não parecia algo que envolvesse o mercado negro. — Por qual crime?

— Você violentou um nobre, roubando-lhe as vestes e a sanidade. Lorde Eimes era muito amigo do rei, você sabe. — Sorriu o soldado. Seu manto impedia-a de ver muito de seu rosto, e toda a sua armadura era negra. Provavelmente, além de ser um envolvido com o mercado negro, ele deveria ser um soldado da guarda Atroriana.

— Entendo. — Apesar de desejar ter falado mais, Sange limitou-se. — Não tenho direito a um julgamento por combate?

— Se estivesse em Pontabaixa, talvez. Mas aqui na Capital... Bem, as coisas só funcionam com “capital”. — Tomou suas correntes em mãos e destrancou-as. Sange sentiu um grande peso sendo tirado de suas mãos e pés. Tentou se levantar, mas fraquejou algumas vezes, e o guarda ofereceu-lhe o braço. Sange aceitou. — Não gostaria de vê-la morrer. Sei o que fez, foi honrado, mas você escolheu as pessoas erradas.

— É tarde demais para eu implorar de joelhos, não é?

— Infelizmente, sim. — E começou a guiá-la para fora do calabouço.

Seguiu por vários corredores, subiu algumas centenas de escadas e finalmente alcançou o fim da torre onde prendiam os mais temíveis prisioneiros, que no momento resumiam-se a ela. A Capital era famosa por seus julgamentos rápidos e eficazes, nunca deixando que seus inimigos vivessem muito tempo — quando na verdade, o maior inimigo da Capital era a própria Capital. Um grupo de cinco guardas Atrorianos e um atendente esperavam-na do lado de fora da torre. Todos evitavam olhá-la por muito tempo, e a maioria dos olhares que dirigiam a ela eram de puro nojo. Como se, de fato, fosse ela a verdadeira criminosa. Um chegou a cuspir no chão quando ela passou por ele.

Sange foi empurrada até a carroça, onde subiu e teve os pulsos presos por uma corda — doía tanto quanto a corrente, mas era mais leve — e os pés acorrentados por uma corrente mais leve e que davam-na mais liberdade de movimento. Dois guardas subiram junto dela, sentando-se a sua esquerda e direita e o atendente em sua frente. Os outros ficaram para trás, provavelmente para continuar a gerenciar a torre-de-nenhum-prisioneiro. A carroça balançava, mas era mais rápida e resistente que a sua própria. Que teriam feito com ela e com seu velho palafrém? Provavelmente Terrie estaria cuidando disso. Um alívio inundou-a.

Enquanto a carroça era puxada, Sange ergueu a cabeça em silêncio. O crepúsculo dominava o céu desanuviado em uma bela pintura vermelha e alaranjada, lembrando-a das tardes de outono que passara com seu pai anos atrás. Um vento acolhedor envolveu-a, e por um instante esqueceu-se que estava indo direto para sua própria execução. Só voltou a lembrar-se disto quando reparou no grande movimento da cidade, na praça central infestada de pessoas e nos xingamentos que recebia enquanto subia no grande palco de pedra. O palco era semelhante a um grande palanque, mas parecia ter sido montado para execuções. Alguns guardas Atrorianos estavam contendo a multidão, enquanto outros mantinham-na ajoelhada, com a cabeça abaixada e pescoço a mostra. Só seria executada quando o Rei chegasse, pois este era o único com poderes de tirar e por a vida.

Com o pouco de visão que sua posição lhe permitia, procurou Terrie em meio a multidão, mas não encontrou nenhum rosto conhecido. Com a exceção do rosto do nobre, que pela primeira vez, parecia sóbrio. E nada violentado. Ele encarava-a com alívio, como se visse nela a chance de escapar de suas dívidas para com os mercantes. Sange mordeu o lábio. Estava morrendo por alguém tão baixo... Por tão pouco...

Uma chuva de aplausos, urros e comemorações receberam a vinda do Grande Rei da Capital, que neste instante estava subindo por algum canto que Sange não era capaz de ver, afinal, sua cabeça estava baixa, seu pescoço exposto, e sua vida nas mãos do Rei. De repente a multidão silenciou, e uma voz serena ecoou atrás de si.

— Cidadãos! Hoje presenciaremos mais uma sentença realizada por nosso Grande Rei, Aezor II Manhor! A prisioneira será executada por violar, roubar e agredir um dos nossos mais conhecidos Lordes: Lorde Eimes, da casa Highonnor.

Um som agudo de espada desembainhando coçou sua orelha. E um frio percorreu sua espinha.

— Pelos direitos do Povo — Recitou uma voz cansada, provavelmente a do Rei — Pela proteção dos Guardiões, pelo meu Julgamento e Graça... Eu, o Grande Rei da Capital, rei Aezor II, sentencio-lhe a morte.

Fechou os olhos. Suspirou. Ainda não se sentia morta. E suspirou outra vez. Será que isto era morrer? Abriu o olho esquerdo. A multidão encarava-a com espanto. Abriu o outro olho. Nada havia acontecido.

Levantou a cabeça devagar, reparando que ninguém mais tocava seus ombros para lhe forçar a permanecer ajoelhada, e quando levou as mãos ao pescoço, viu também que não haviam mais cordas em seus pulsos ensanguentados. Os guardas Atrorianos estavam no chão, desacordados, e o Rei olhava-a com uma expressão esquisita Finalmente pode vê-lo; Era um homem velho, com cabelos grisalhos longos e lisos, uma barba bem aparada e um porte físico jovial demais para sua provável idade. Tinha olhos amendoados de cor ciano, uma expressão assustada e vestia-se com uma armadura dourada e capa preta.

Estava silencioso demais.

— Eu morri?

— ... — Aezor II abriu a boca, mas nenhum som saiu de seus lábios. A cena foi quase cômica, mas ninguém em toda a multidão ousou rir.

— PAREM A EXECUÇÃO! — Ordenou uma voz vinda de não muito longe. Quando Sange olhou em direção, avistou dois padres se aproximando. Um prior e um acólito. O primeiro utilizava vestes brancas e longas, com diversas jóias decorando-o. O segundo, vestes também longas, contudo marrons e simples. Não tinha nenhum diferencial. — NÃO SE PODE FERIR UM GUARDIÃO, É LEI SAGRADA, DIVINA! É LEI ACIMA DAS DOS HOMENS!

— Prior — Finalmente disse o Rei, quase amedrontado, chamando o sacerdote. — Não tem como esta... Esta... Mulher ser uma Guardiã! Ela não é nem capitana!

— Meu Grande Rei, és total. Mas ainda assim, abaixo dos celestes. Conheces a lei dos celestes: “Aquele que lhe for dado como escolhido, tomado está.” Não há nada que especifique origem, apesar de durante todos estes anos os Guardiões terem sido, curiosamente, apenas capitanos.

O rei encarou Sange, que mal entendia do que estavam falando, e trocou olhares com a mesma. Seus olhos eram escuros como a noite, não tinham brilho... Mas continham algo de curioso, algo que o lembrava a imensidão. Embainhou a espada que chamava de Julgadora. Virou-se para a multidão.

— Pelos direitos do Povo, pela proteção dos Guardiões, pelo meu Julgamento e Graça... Eu, o Grande Rei da Capital, rei Aezor II, poupo sua vida por ser uma Guardiã, perdoando todos os seus crimes. Que, de hoje em diante, até o fim de seus dias, ela possa passar de criminosa para Guardiã e que utilize seu chamado a favor da Capital, e jamais contra.

A multidão, da água para o vinho, a aplaudiu. O Rei retirou-se do local, deixando para trás seus guardas Atrorianos, dois sacerdotes... E uma Guardiã que não compreendia o que estava acontecendo.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por terem lido :)Por favor, deem suas opiniões, sendo elas negativas ou positivas. Isto é essencial para meu crescimento como escritora, e serei eternamente grata ♥



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