A cidade das abelhas escrita por Clarice


Capítulo 44
O beijo da morte


Notas iniciais do capítulo

Último Capítulo



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/659376/chapter/44

O BEIJO DA MORTE

Gaya estava preocupada. Adela havia saído a tempo demais, e atrás daquele bárbaro louco. Mas tinha tanta coisa lhe atulhando a mente, que era difícil se focar em um problema só e não ser engolida por todos eles. Tinha muita dor de cabeça, suspendeu suas obrigações diárias, mandou marcar para a semana seguinte a tal noite de núpcias. Não vou mais adiar isso. Pronta ou não, preciso gerir um reino. Pediu que lhe arranjassem um bom banho e que depois disso quereria comer algo leve. E então, dormiria. Pediu para ser acordada apenas por algo extremamente importante, ou a volta de Adela. Isso é importante, também.

Enquanto vestia sua camisola de dormir pensava que aquele peso sob os ombros nunca iriam embora. E que os músculos rígidos em torno do pescoço se manteriam daquele jeito. Nunca terei férias, esses serão meus eternos companheiros. Estava triste e desanimada. Não queria fazer nada, não se atinha a nenhum assunto, e depois de se deitar, percebeu que não tinha sono também. Não sabia mais o que tinha de fazer consigo mesma. Talvez eu devesse tomar uns calmantes. Mas e quando acordasse?

Estava insuportável permanecer deitada. Mas sabia que precisava descansar, estava exausta. Mental e psicologicamente exausta. Parecia prestes a ser engolida por uma avalanche. Ainda estava nesse estado quando recebeu a informação de que um dos portões do reino estava sendo atacado, e o pior que Adela estava lá. E estava em perigo. Em perigo! Preciso fazer alguma coisa. Rapidamente mobilizou equipes qualificadas para irem ver o que acontecia.

–Monstros, Sua Alteza, se ouvi claramente o pedido de emergência, ele citava monstros. Eles estavam escalando os muros. –Monstros. Aquilo era inacreditável.

Existiam, então, outros como Shai? Deuses nos salvem, como nos livramos deles? Sua cabeça parecia girar, ela se sentiu tonta por um momento. Desesperou-se, sabia que não podia fraquejar. Por nada no mundo, podia fraquejar. Agora não luto só por mim, tenho filhas. Tenho um reino que precisa ser protegido. Deuses, se eu não precisasse fazer tudo sozinha. A sensação de solidão era tão aterradora que Gaya pensou que acabaria chorando desesperada. Não podia chorar, também. Dizia isso o tempo inteiro, não podia chorar. Nem perder o controle dos brios. Só preciso de equipes e ir lá.

Não importava que lhe dissessem que estaria correndo perigo. Anunciou que iria, e não aceitava ser abertamente questionada a respeito. Eu irei, ah, senão irei! O desespero dava lugar à ansiedade ensandecida. A ansiedade dava espaço para a ira. Mas o que diabos essas criaturas querem? Não estamos em paz, por enquanto? Matá-los-ei um a um, até que não sobre ninguém! Queria liquidá-los. Queria espezinhá-los! Estava em uma excitação febril e tonta.

Pegou o veículo mais rápido que podia, seguia junto com as equipes que havia organizado. Deixou-as em algumas linhas de defesa e subiu com apenas três. Deixou também em seu castelo alguém para resolver as coisas caso ela não retornasse. Agora nada me impede de continuar. Nem sabia de onde vinha toda essa coragem. Talvez da curiosidade e da ira. Talvez ela sempre a tivesse e só descobrira agora. Só sabia que não estavam indo rápido o bastante.

–Não conseguimos mais falar com o posto, Sua Alteza. –Disse-lhe a capitã da primeira equipe.

–Pois é, sem nenhum sinal. Perdemos contato. –Outra atalhou.

–Isso quer dizer que... –Começou a líder da terceira equipe.

–Que provavelmente estão todas mortas por lá. –Afirmou a rainha. Olharam-na com olhos assustados, como se ela fosse tão fria a ponto de não se importar em perder as pessoas. Importava-se e muito. Só não tinha tempo para chorar enquanto aquelas criaturas estivessem à solta. Depois de combatê-las teremos tempo de chorar. Ou melhor, nem depois disso. Teremos obrigações como criar um exército imbatível. Uma força-tarefa tão incontrolável quanto o que existe de mais insano.

Devaneava para conter a tensão. Não poderia ficar pensando apenas no que viria a seguir. Não podia e não queria. E o que será que se deu com aquele bárbaro? Se ele está junto de Adela pode ser que estejam a salvo. O homem é um guerreiro, ao final de contas. Mas isso não a tranqüilizava. Aquele silêncio nas transmissões queriam dizer que todos estavam mortos. Sem exceção. Sabia que o patriotismo viria primeiro, avisar era muito importante. A vida de milhares de pessoas estava em jogo, em momentos assim ela sabia como era que agiriam. Sobretudo guardas de portão. Não é qualquer tipo de pessoa que é posto lá. Existem testes, existem treinamentos infinitos.

O primordial era o tempo. E Gaya achava que o estava perdendo. Precisávamos ir mais rápido. Muito, muito mais rápido. Precisávamos já estar lá. Por vezes, o veículo no qual estava parecia não se mover. E aquele tempo todo parado para uma mente preocupada era veneno. Veneno do mais perigoso. Não ter o que fazer a fazia pensar em coisas terríveis. Deuses, não posso perder meu reino. Não posso. Pensar na possibilidade de uma invasão bem-sucedida a fazia querer chorar e berrar de medo, exasperada. Depois de tudo pelo que passamos, morrer agora é inaceitável. É injusto. As pessoas que seguiam com ela também não estavam apresentando emoções muito amistosas. Ninguém falava nada, todas estavam ensimesmadas. Presas em seus próprios castelos de areia. No fim o temor é igual para todas nós. Não é porque elas não são rainhas que não se sentem responsáveis pelo que está acontecendo.

–Estamos chegando, Sua Alteza. –Quando ouviu isso, de repente eu coração deu um salto. Finalmente estamos chegando.

Já conseguia ver lá na frente aquela muralha a surgir, tão alta e vasta que parecia ligar as duas pontas da Terra inteira. Como se metade do planeta fosse o seu reino. As equipes começaram a se movimentar para sair do veículo e seguir o resto a pé. Por mais que Gaya insistisse, lhe disseram para aguardar ao menos a primeira visualizada geral. Foram. Gaya, com o coração na mão, ficou ali aguardando, dentro daquele veículo. Já havia roído todas as unhas e reparado em cada detalhe da carcaça do carro quando a equipe voltou.

–Checamos tudo. Não encontramos ninguém. Sua Alteza não vai gostar do que verá;

Seguiu trêmula. Subiu as escadas até a cabine, com medo do que veria. Olhando o outro lado da muralha, lá no fundo, via dezenas de marcas de sangue, mesmo no escuro da noite.

–Onde estão os corpos? Não vejo corpo algum. –Perguntou de voz trêmula. Quais seriam os monstros que sangravam tanto e nunca morriam? O cheiro de pólvora ainda estava no ar. Muitas balas pareciam ter sido gastas neles, e, no entanto, obtiveram sucesso.

–Também não localizamos corpos, Sua Alteza. –Uma delas lhe disse, não importando qual.

–Encontraram Adela? Ou o Bárbaro?

–Não, Sua Alteza. Mas ainda há equipes que não voltaram, estão circulando o perímetro em busca de mais informações.

–Quaisquer que sejam novas, me avisem. –Disse-lhes mecanicamente. Estava nervosa demais para pensar no que dizia.

Uma delas lhe gritou estava há uns cem metros, também em cima da muralha, mas na direção oposta, do outro lado da cabine de vigia. Chamou-a com pressa. Gaya corria desesperada. Deuses queiram que não seja o corpo de Adela. E não era. Quando chegou lá, sem fôlego mais pela emoção do que pela breve corrida, viu que o corpo era de uma das mulheres da vigia. Ficavam em duplas, Gaya não soube o que pensar ao ver que estava apenas uma ali. Em seu torno havia muito sangue, parecia não ser só dela. Parecia sangue de quem estava se defendendo. Estava também, fortemente armada. Havia em seu torno caixas de munição, o que dizia que ela não se demoveria dali, era um ponto estratégico. Usava um uniforme grosso e capacete. Não conseguiu ficar muito tempo olhando aquele corpo morto, olhou para baixo, e lá viu caída a outra mulher. Com certeza havia morrido pela queda. Era impossível que alguém caísse de lá e se mantivesse vivo. Que luta sangrenta pela proteção do reino não se sucedeu por aqui. Elas fizeram tudo que podiam para não deixar que as criaturas entrassem, e foi tudo em vão. Esse pensamento cheio de tristeza parecia ser comum a todas que estavam ali observando aquele cenário.

–Se eles conseguiram entrar no reino, seguiram caminhos alternativos, pois não os vimos nas estradas principais. Emitam um alarme agora! –Desesperou-se. –Precisamos saber onde esses monstros foram, e já! Mandem vir mais equipes, e terminemos de checar aqui para depois fazer mais uma varredura nas proximidades da floresta, lá fora.

–Acha que os monstros voltaram, depois de conseguirem passar? –Perguntou-lhe estranhada;

–Não acho que os monstros foram naquela direção, mas Adela e o Bárbaro sim.

As equipes continuaram se movimentando para lá e para cá, e Gaya descia as escadas com medo de receber o aviso de que aquelas criaturas estavam ao pé do reino e não daria mais para pará-las. Ou que mais corpos foram encontrados. Era difícil manter a calma. Tentava se manter sã se concentrando em sua respiração, mas isso era muito difícil. Mias do que parecia. Não vamos encontrar o corpo de Adela porque ela fugiu e está viva. Já os monstros serão encontrados por uma das equipes, e facilmente abatidos. Da primeira vez os números estavam contra nós, isso é algo que jamais se repetirá. Mandou que ninguém jamais andasse sozinha, e ordenou toque de recolher no reino, todos deveriam estar protegidos e juntos. Uma ameaça circundava o reino e até que tudo se resolvesse era assim que tinha de proceder. Todo mundo aceitava o que ela dizia sem questionamento. Nunca teve uma autoridade tão forte sobre si mesma. Ao passo que nunca esteve tão insegura sobre qual era a escolha certa a se fazer. Aquele assunto precisava ser resolvido logo, ou seus nervos a matariam rapidamente.

–Encontrei o que parecem duas pessoas, Sua Alteza. –Ouviu por um rádio. Rapidamente quis ir saber onde estavam. Entrando no mato, seguida por uma equipe armada, Gaya lembrava-se de quando estava só pela mata. Não era uma memória confortável ou bonita.

Quando chegou lá, encontrou Adela presa aos braços do Bárbaro. Os dois estavam são e seguros. Os olhos de Gaya se encheram de lágrimas. Agradeceu seguidas vezes ao homem por tê-la protegido. Perguntou a ela como se sentia, o que queria, se precisava de algo. Ela estava feliz como se não tivesse corrido um risco de vida tão sério. Falava dos monstros, como eram horrendos. E que achava que haviam sido feitos pelos seres da cúpula, como Shai. Eram uns vinte, e muito incansáveis. Matavam com as mãos, não precisavam de armas. Eram rápidos, mas pouco astutos. Pareciam ser liderados por instintos muito primitivos, e lutavam sem nenhuma razão. Facilmente sentiam-se ameaçados e atacavam e fugiam. Era muito mais fortes do que elas, fisicamente, e pareciam não sentir dor. Todas essas informações foram passadas diretamente para todas as equipes que estavam trabalhando naquele caso. Depois do longo depoimento e uma pequena assistência médica para os dois feridos, Gaya sentou-se para conversar com eles. Notava que entre Adela e o sujeito parecia ter crescido algum laço estranho e forte. Firme, como se se conhecessem há milênios.

–Eu a levarei a salvo assim que tudo se ajeitar. –Prometeu-lhe.

–Eu não voltarei. –Ela lhe respondeu. A princípio Gaya apenas surpreendeu-se, e então depois achou que não era sério. Mas Adela não sorria, era claro que aquilo não era uma brincadeira. Ela não voltará.

–Por quê? –Perguntou de voz trêmula.

–Porque lá não é o meu lugar. Quero estar com Vince, explorar o mundo. –Seus olhos brilhavam. Não havia como brigar com ela, por mais que se sentisse abandonada. Sozinha. Desesperada.

–Está certo. –Disse, sem notar que estava dizendo. Ela então a abraçou a beijou e disse que a amava muito. E que talvez voltaria. E abraçou Vince. Ele sorriu para Gaya também. Desde que vira o sujeito, não se lembrava de ele sorrir. Ao menos estarão livres de mim e felizes. Felicidade. Qual deve ser o gosto? Estava claramente amargurada, mas ao mesmo tempo sentia que não poderia fazer nada para resolver o problema. Já havia sido criado e era maior do que ela.

–Mande-me notícias de cada reino que visitar. –Foi como se despediu dela. Depois de ambos saírem da sala, ela se levantou e foi ao banheiro.

Olhando-se no espelho, entrou em uma crise de choro que não conseguia parar. Era compulsivo, estava fungando, soluçando e trêmula. Mal conseguia se manter de pé. Seu coração parecia comprimido, lavava o rosto dizendo a si mesma para parar e não conseguia. Quis que Shai estivesse ali. Quis não ser mais rainha, quis estar perdida na floresta com ele, conversar. Quis dormir naquela árvore desconfortável. Quis encontrar Mikka, para depois fugir dela. Quis tomar um banho de rio inocente. Quis comer coco. Suspirou, não teria nada daquilo de volta. Porque nunca mais voltaria a ser a Gaya de antes. Mesmo naquela época eu já não era a mesma. Eu já havia quase matado e morrido, já havia experimentado o terror e a dúvida. Já havia experimentado a tristeza e o ódio. Já havia perdido em essência o que eu deveria ser. Fugir de volta para aquela época não resolveria nada. E Gaya sabia disso.

Estava com o coração partido, e, para fugir daquela dor valia até revirar memórias infelizes. Pareciam felizes por serem antigas, mas não eram. Aquela ilusão criada pelo passado de que aquele momento era superior ao agora, ao nesse instante. Se agora tinha aquela insegurança, naquele momento tinha outra. Isso é um labirinto. Antes esquecer-se dele do que tentar resolvê-lo. Abriu os olhos, se olhou no espelho. Ainda saíam lágrimas de seus olhos, mesmo depois de todas aquelas resoluções. Pensar nunca leva o sofrimento embora. Racionalizar só serviu para me distrair, pois o sentimento ainda me machuca. Estava cansada de se sentir machucada.

Alguém bateu na porta do banheiro:

–Sua Alteza? –Chamou educadamente.

–Sim? –A voz saíra como a de choro sempre sai, desafinada e triste.

–Encontramos carcaças. –Isso fez Gaya arregalar os olhos.

–Estou saindo.

Suas lágrimas pararam de descer, lavou o rosto pela última vez. Seus olhos estavam meio vermelhos e inchados, mas não tinha solução imediata para aquilo. Além de deprimida estava estressada, e muito, muito cansada. Apenas umas mil noites de sono conseguiriam resolver aquele problema. E de mil noites de sono eu não disponho no momento. Saiu e a líder de uma das equipes a olhou longamente antes de começar a falar. Decerto está se perguntando por que eu andei chorando tanto. Mas não se atreverá a falar disso comigo. Ao menos esse medo respeitoso me serve nesse aspecto.

–Localizamos em uma estrada pequena, perto de um riacho, a carcaça de cerca de vinte e sete monstros. –Aquilo deixou a rainha muito surpresa.

–Serão todos?

–Não sabemos.

–Quem os matou?

–Ainda não sabemos.

–Levem-me lá imediatamente.

Não houve mais conversa, apenas o máximo de resposta que poderia tirar delas Gaya tirava, enquanto outro caminho longo demais era percorrido. Mas enquanto recebia respostas pouco satisfatórias, uma pergunta a dominava: Se não fomos nós, quem matou? E que monstro seria este que mataria a todos? Ou morreram sozinhos? Experimentos científicos podem dar errado. Talvez uma morte súbita os tomou a todos. Improvável. A quem estou tentando enganar? Está claro que uma ameaça ainda maior está por vir. Era o mais provável. Por isso manteve o reino em alerta. Um inimigo muito mais astuto poderia estar à solta por aí.

Quando chegou lá, o que viu foi um cenário de devastação absurda. Os monstros haviam sido esmagados por garras cruéis, trucidados. Seu sangue manchava o chão, manchava as plantas. Gaya passou a ter medo do que se seguiria. Onde estaria o criador de tanta destruição? Gaya não pensou duas vezes antes de mandar pessoalmente que ampliassem as buscas. O que estavam procurando agora era nocivo e desconhecido. Mortalmente perigoso. Encontrando alguém, que corressem a avisar nacionalmente a notícia, que era vida ou morte. Ultimamente tudo têm se resumido dessa forma: vida ou morte. Porque não podemos ser simplesmente o povo organizado e pacífico que somos, sem interferências de fora? Mas essa pergunta já estava velha e ela sabia disso. Era infantil ficar esperando uma resposta do céu. Esperar que uma vida perfeita se formasse em torno dela. Nem ela própria era perfeita. Como a vida seria?

Decidira caminhar a esmo pelo perímetro. Precisava sair de perto daquela cena terrível de genocídio para espairecer um pouco. Havia muitos assuntos sobre os quais repousar as ideias. As equipes de busca estavam andando por ali, preocupadas demais com a tal ameaça invisível. Gaya andava por conta própria sozinha. Qualquer coisa que berrasse, que lutasse, que fizesse algo para continuar viva. Era o que pensava de si mesma. A superproteção que recebia por vezes a irritava ao ponto de ter de agir daquela forma, desobedecendo as ordens que eram feitas apenas para o seu bem. E desde quando o meu bem é assim tão importante? Ironizava, de si para si.

Quando o encontrou caído ao chão não reconheceu. Parecia algum ser morto, mas não alguém humano. Aproximou-se cautelosamente, temendo que pudesse ser uma das feras que escapara do triste fim. Tinha tantas ideias em mente, que a última coisa na qual pensaria era Shai. E ele estava ali logo a sua frente. Ao vê-lo machucado e sujo, caído ali pensou que estava delirando. Que aquela pessoa nunca seria ele. Era um herbívoro qualquer, era uma pessoa perdida. Mil enredos passavam por sua mente, tentando desenganá-la daquela realidade. Afinal os milagres nunca acontecem para mim. Pensou. E nem acreditaria neles, caso acontecessem.

Mas ele estava lá.

–Shai? –Sussurrou enquanto se ajoelhava perto dele, que estava caído e deitado.

–Gaya, é você? –Ele parecia meio cego a tudo, perdido, falando devagar e muito baixo.

–O que aconteceu com você? Como pode estar vivo? Deuses, e o enterrei, eu chorei pela sua morte. Eu estava sofrendo. –Agarrava-se a ele chorando. –E você está vivo!

–Afaste-se de mim. –Ele sussurrava baixo demais enquanto ela o agarrava, embalando-o como a um bebê.

–Foi você quem os matou, não foi? –Ela perguntava, ainda choramingando.

–Fui eu sim...

–O que há contigo, está se sentindo mal?

–Estou fraco. –Sibilou. Ela viu uma das operárias de varredora passando ao seu redor, sem compreender nada. Chamou-a, disse que era para desfazer o alerta, acalmar as pessoas. Voltar o mundo ao normal, não havia ameaça. Não havia nenhuma ameaça. A moça saiu desesperada para dar o alerta. Gaya sentiu que não precisava mais temer nada, e nem ninguém. De repente aquele homem lhe salvou a vida, de novo.

O rosto dele estava sujo e ferido. Viu sua perna estraçalhada, e pediu que uma equipe médica fosse enviada o mais rápido possível. Ele estava com os olhos meio fechados, ao mesmo tempo em uma placidez liquida e em uma tristeza calada e monocórdia. Estava muito fraco, certamente. Mas seus olhos brilhavam tanto! Lindos, azuis e profundos, infinitos como o céu da manhã de inverno. Seus cabelos platinavam ao sol, seu rosto era tão belo e bom. Puro. Transmitia certa pureza infantil. Gaya sempre achara isso dele. Desde quando o vi como ele realmente era. Sentia que deveria protegê-lo, mas não sabia ao certo de quê. Aquele encontro de repente parecia uma espécie de despedida. Era estranho chegar a tal conclusão, sem que nada realmente desse sinal de fim. Ele não está morrendo. Não, não de novo. Ele só está cansado e precisa descansar. A equipe chegará e trataremos de sua saúde. Tudo está bem.

Precisava se acalmar o tempo inteiro. Para não surtar. Não era fácil lidar com aquela ebulição e emoções com as quais se envolvera nos últimos dias. Não era fácil, definitivamente.

–Gaya... –Ele sussurrou em seus braços.

–O que foi?

–Prometa-me...

–O quê? –Perguntava exasperada.

–Caso eu me transforme, não espere por nada. Simplesmente arranque a minha cabeça... Consegue entender? Promete-me isso?

–Eu, não... –Estava confusa. Que tipo de promessa era aquela?

–Por favor... Prometa-me, para que eu fique tranquilo.

–Não posso prometer isso... –Estava muito insegura. Aquele pedido era algo que ela não sabia se poderia cumprir. Tinha medo. Porque ele quer ter essa conversa? Acha que não pode controlar a si mesmo? Eu tenho quem me proteja, não preciso chegar a matá-lo. Mas seus olhos estavam cheios de lágrimas, ele chorava.

–Prometa! –Não se movia, mas os olhos estavam nos seus.

–Eu prometo. –E o abraçou muito forte. –Prometo, mas não precisaremos fazer isso. Ele adormeceu em seus braços. Ela beijou-lhe a face, os olhos, com muita força, com muito desespero. Chorando, e o abraçava e tremia-se inteira. Não queria perdê-lo nunca mais, não queria separar-se dele enquanto estivesse viva. Não o queria em perigo, não queria ter de passar por tudo aquilo novamente. Alguns minutos depois de ele ter desmaiado, a ajuda chegou.

Colocaram o moço em uma ambulância. Não havia quem conseguisse tirar Gaya de lá. EU SOU A RAINHA. A maldita rainha! Eu fico onde quiser, ficarei aqui. Enquanto ministravam os remédios ao rapaz, ela ficava ali a um canto. Observando. Milhares de procedimentos complicados pareciam estar ocorrendo ali, e cada erro parecia levar à morte. Ela estava tão nervosa que não conseguia conter os movimentos, então nunca ficava totalmente parada. Porque diabos eu insisti tanto em ficar aqui dentro senão aguento a pressão? Perguntava-se, sem ter ideia do que responder para si mesma. Eu estou aqui porque preciso estar. Porque quero muito. Porque estou preocupada, porque... Porque acredito que era isso que ele gostaria. E que faria por mim. E porque o amo. E porque ele é importante. É por isso.

Ele pareceu sentir a frase que ela havia dito. Abriu os olhos, meio confuso. Os espremia para compreender a situação. Sua perna estava enfaixada. Já haviam chegado ao hospital.

–Ele ainda está bem sedado, Sua Alteza. Vai demorar para que consiga responder adequadamente. Eu sugiro que descanse um pouco, e que deixe também o paciente descansar. –Era fácil dizer isso, e também ouvir isso. Fazer é completamente diferente.

–Não, eu ficarei. Ele abriu os olhos, sabe que estou aqui.

–Está certo. –E então o médico saiu dali.

Shai continuava olhando-a. Estava limpo agora. De banho tomado, roupas limpas, tubos levando embora sua desidratação. Estaria bem em pouco tempo. Estaria bem.

–Você parece muito bonita quando está assim tão preocupada e descabelada, Sua Alteza. –Ele disse, mas a voz não saiu. Ela teve de ler seus lábios.

–Não fique falando, precisa de repouso absoluto. –Brigou logo.

–Mas não a vejo desde que morri, preciso falar o máximo que puder. –Riu sem som, e depois fez careta como se o ato tivesse doído um bocado.

–Você está vivo, e está logo em minha frente. Mal posso acreditar. –Ela dizia, e já a voz se desafinava pela emoção. -No fim, tudo deu certo. –Ele fechou os olhos, sorrindo. Dormiu.

Ela continuou ali de vigília. Anoiteceu. Ele começou a ficar inquieto durante a noite. Movia-se como se um pesadelo terrível o assolasse. Como se nesse pesadelo algo de muito ruim estivesse acontecendo, se movia, dizia “não, não, não” de sobrancelhas franzidas. Movia os braços como se se defendesse. A perna imóvel parecia um enorme problema naquela luta que ele travava. E então começou a tremer muito. Gaya desesperada apertou a campanhinha que deveria chamar o médico responsável. E ficou ali tentando acalmá-lo apenas com a sua voz.

–Shhhhhhhh, está tudo bem. –Dizia ao pé de sua cama. E ele não se acalmava.

Principiava a suar. Seu cabelo grudava na testa, seu pescoço brilhava. Ele abriu os olhos e ergueu meio corpo rapidamente. Antes de se virar para por os pés no chão, já estava transformado em monstro. Gaya berrou sem saber o que fazer consigo mesma. Estava amedrontada. Ele não me fará nada de mal. Pensava. Não fará. Um médico e duas enfermeiras entraram no quarto. Tentaram lhe aplicar soníferos poderosos, mas ele estava muito inquieto. Estava em dor, claramente.

Com a insistência, se irritou, acabou atirando a enfermeira à parede. Todos se assustaram. Ele não pode ficar violento, não, não pode. Mas estava ficando. E fixou seus olhos em Gaya. O médico e a outra enfermeira tentaram se por na frente, mas não eram eles o seu interesse. Ele queria ela. E ela sabia disso. Mas mesmo assim não se defendeu. Manteve-se parada até ele se aproximar bastante perto. Sentia seu terrível hálito monstruoso.

–Shai?

Chamá-lo pelo nome não fez diferença. Seu olhar, de um segundo a outro, passou de dor para raiva. E ele a ergueu segurando seu pescoço ela não sentia mais o chão sob seus pés, e iria sufocar totalmente em poucos segundos. Não oferecia resistência; No final das contas, não sou tão forte a ponto de cumprir a promessa. Pensava. Em seus últimos segundos uma memória a invadiu. Seu encontro com Jane de poucos dias atrás:

–Sabe que eu sempre soube que você estava destinada a grandes feitos?

–Sabia nada, ninguém sabia. –Brincou, irônica.

–Eu sabia. –Afirmou com mais veemência. –Você nasceu diferente por uma razão, Gaya. Você, no fim das contas, está fazendo parte de algo grande. Realmente grande.

Seria suficientemente grande morrer daquela forma? Sob as mãos encontrou suas armas gêmeas, não teria força nos braços por muito tempo. O ataque foi simultâneo, ela lhe cortou a cabeça e ele esmagou seu pescoço. O sangue dos dois se misturou no chão daquele quarto de hospital. Afinal, não haveria noite de núpcias, e nem mais reinado. Nem mais choro de solidão ou de preocupação. Não haveria mais nada. Estavam mortos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Au Revoir!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A cidade das abelhas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.