Júpiter escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 6
Estrelas são confetes de veraneio


Notas iniciais do capítulo

Somos feitos de poeira das estrelas.

— Carl Sagan



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— Vocês não estão mesmo esperando que eu vá nessa festa – Júpiter revirou os olhos, enfiando mais uma garfada de peixe na boca –, estão?

Loren e eu nos entreolhamos, checando quem iria confirmar primeiro.

Estávamos sentados no quadrado entre o apêndice do almoxarifado e o corredor que dava no estacionamento dos funcionários da escola. Mesmo com a sombra, ainda fazia calor e as latinhas de refrigerante transpiravam mais. Loren usava o moletom do uniforme como forro de assento e Júpiter tinha as mangas enroladas no cotovelo.

— Olha, na verdade... – busquei meu refrigerante, dando um gole longo.

— Sim, esperamos que você vá – Loren deu de ombros, sempre direta e indiferente. – Por que não? Ele te convidou. Convidou todo mundo, na verdade.

— Eu nem mesmo sei quem é ele— Júpiter frisou, fitando-a interrogativamente.

— É o Ber... – Recebi uma cotovelada no ombro com um hematoma novo de brinde. – Ai!

— Fala baixo – Loren murmurou entredentes. – Está conseguindo a façanha de quebrar duas regras de uma vez só.

— Que regras? – Júpiter estava claramente confuso com o comportamento anormal de Loren.

— Nunca falar o nome dele e nunca falar dele em voz alta – ela enumerou com os dedos, apressando-se em engolir mais garfadas de seu almoço.

— Ele é o Bernardo do time de futebol – revirei os olhos, julgando minha amiga paranoica silenciosamente.

— O cara com as luzes laranja na franja? – Júpiter esperou por uma confirmação, abafando uma risada logo em seguida. – Credo, Loren. Pensei que você fosse gostar de alguém do grêmio, ou daquele projeto de música dos caras do terceiro ano.

Eu me juntei às suas risadas contidas, esperando não ser muito queimado pelo olhar fulminante de Loren. Ela deu um muxoxo, comentando qualquer coisa sobre ninguém ser capaz de escolher e voltando a comer de cara fechada.

— O que esperar de uma festa organizada por um sujeito assim?

— Muita bebida, meninas fúteis e uma boa dose de veteranos se achando mais do que o normal – sugeri. – De tudo um pouco, eu acho.

— Vocês vão ir comigo ou não? – Loren aumentou a voz, parecendo levemente irritada.

Sinceramente, eu queria dizer não. Tinha mais o que fazer do que assistir meus colegas de escola se degradarem com bebidas, cigarros e sabe-se-mais-o-quê. A ideia de enfrentar um ambiente assim se mostrava realmente repugnante para os padrões de Júpiter, o que eu podia ver por seus lábios comprimidos e os movimentos travados em apanhar a comida no pote de isopor com o garfo.

— Vamos – suspirei. – Mas você nos deve uma.

Loren bateu uma palma satisfeita, comendo seu almoço com mais vontade. Porém, ao meu lado, Júpiter parecia sinceramente assustado com a minha resposta. Dessa vez Loren não consideraria uma violação de suas vontades, já que as dela estavam sendo atendidas.

— Preciso ajudar a Lari com a monitoria de Química – ela fechou seu pote de isopor quando terminou de comer, apanhando a latinha de refrigerante vazia e seu moletom agora um pouco sujo. – Vejo vocês na sala.

— Ok.

— Nós vamos? – Júpiter se pronunciou assim que os passos de Loren sumiram na passagem que levava de volta ao pátio. Sua indignação não podia ser ignorada. – Simples assim?

— O que você queria que eu dissesse?

— Não? – Ele sugeriu como se fosse óbvio. – Um mísero não teria sido uma ótima resposta.

— Não vinda do melhor amigo de infância – terminei meu almoço, colocando o potinho no chão ao lado dos meus pés. – O cara falou com ela, tipo, pela terceira vez desde que estudamos aqui e ainda a chamou para uma festa. Acredite, eu queria mesmo falar não – coloquei a mão no peito, provocando sentimentalismo. – Mas então eu não seria um bom amigo.

Júpiter me encarou de uma maneira engraçada por alguns instantes. Aparentava estar ainda mais confuso do que antes, estranhando qualquer coisa.

— Então é isso o que os amigos de verdade fazem? – Era uma pergunta retórica e melancólica. Antes que eu cogitasse responder, ele estava revirando os restos do peixe com seu garfo de plástico. – Nunca presenciei isso antes.

O sorriso que Júpiter me mostrou deixou meu peito apertado, cheio de uma sensação sufocante e desesperadora. Perdi-me em seus olhos heterocromáticos, calculando o nível de tristeza dentro deles – calcificada, mas ainda fresca.

— Nós faríamos o mesmo por você – estiquei a mão para afagar seu joelho.

Depois da entrega da maquete do basalto – nota máxima graças às habilidades artísticas de Júpiter – e a espécie de declaração dele – para mim tinha sido uma declaração –, nossa relação tinha evoluído para mãos bobas e cafunés quando estávamos sozinhos, com um ou outro beijo inocente precedido de um “Eu posso?” num sussurro. Ele ficava adorável com as bochechas alvas tornando-se rosas e fechando os olhos para aproximar os lábios dos meus.

Cada vez que nos beijávamos – sempre rápido demais, antes que a vergonha queimasse Júpiter por inteiro –, eu precisava de mais. Porém, numa fase tão delicada, avançar os limites dele era perigoso. Eu me arrepiava só de pensar no progresso escorrendo pelos meus dedos.

— Posso? – Falei baixinho, mordendo o lábio inferior.

Júpiter ficou rosa no mesmo instante.

— Aqui? Alguém pode nos ver e...

Apoiei as mãos no chão úmido e me inclinei para alcançar seus lábios, controlando-me para manter um ritmo ralentado. Júpiter demorava a abrir a boca e me ceder passagem, mas isso adoçava seu gosto.

— Ou nós podemos fazer rápido e ninguém vai saber – sorri para ele, dando-lhe um último beijo antes de juntar os restos do meu almoço.

Seu sorriso em resposta era quebrado e cheio de cicatrizes, mas era bonito de qualquer forma – especialmente, porque era para mim.

— Nós podemos fazer assim – ele concordou.

Naquela semana, Júpiter concordou com muitas coisas, a começar por uma colherada de açúcar em seu café diet. Ele parecia estar saindo um pouco de seu universo monótono, rindo com mais facilidade e arriscando algumas brincadeiras até com o Igor – que decidiu parar com as piadinhas toscas sobre seu olho cego. Os beijos continuavam tímidos, porém, mais longos. Eu estava quase convencido de que podia ser mais paciente do que pensava.

Até que chegou o sábado da festa dele — como Júpiter enfatizava.

Loren, Igor e ele vieram até a minha casa horas antes para experimentarmos o que chamavam de “coisas de meninas”. Basicamente, julgamos as roupas um dos outros até que uma combinação ou outra fosse recebesse mais de um polegar levantado – plenamente idiota e divertido. Igor acabou me emprestando uma camisa jeans e eu, meu All Star vermelho para ele.

Júpiter precisou se abastecer de vitaminas e remédios antes de irmos – a avó, Ganímedes, dele tinha repetido um milhão de vezes que ele não podia comer salgadinhos e coisas do tipo em excesso, então deveria ir bem alimentado. Comemos uma salada de frutas para não deixá-lo sozinho na mesa, com Igor fazendo comparações infantis sobre a consistência do leite condensado – light, para que Júpiter também pudesse consumir.

— Vamos repassar o combinado – minha mãe surgiu na cozinha, colocando a chave do carro e sua bolsa sobre a bancada gourmet. – Eu vou levar vocês em – ela precisou checar o relógio de pinguim ao lado da geladeira – quinze minutos para a casa do Leonardo.

— Bernardo, tia – Igor a corrigiu com uma risada.

— Bernardo. Vou levar vocês para casa do Bernardo. E aí volto umas... Oito horas? Ok, vou buscar vocês às oito – ela jogou a chave para dentro da bolsa.

— Às oito, mãe? – Dei um muxoxo. – Ninguém vai embora às oito.

— É, tia – Igor lambeu sua tigela suja de sumo de mamão e leite condensado. – Oito horas a festa nem começou a esquentar?

— Oito e meia?

— Às onze e meia, mãe.

Ela ponderou um pouco, mas aceitou. Ainda havia a esperança de convencê-la a nos buscar um pouco mais tarde. Loren precisaria de tempo para tomar a coragem necessária – ou os shots de tequila – e ir falar com o Bernardo e Igor queria tentar alguma coisa com uma garota bonitinha do primeiro ano. Provavelmente, eu iria me arrepender de pedir para ficar até mais tarde – podia prever isso só de olhar para o receio nos olhos de Júpiter.

— Espero vocês no carro.

Loren e Igor bateram as mãos quando ela saiu, felizes pelo aumento no tempo de festa.

— Vai ser legal – escorreguei uma mão para a perna de Júpiter. – Nós vamos tentar nos divertir, tudo bem? Só algumas horas, depois podemos ir embora e rir da cara dos idiotas.

Quando minha mãe nos deixou na frente da casa do Bernardo, não resistiu a despejar uma série de recomendações.

— Podem beber, mas pouco e só se prometerem não contar para os pais de vocês – ela riu. – É sério.

Meus amigos estavam sob sua responsabilidade até a tarde de domingo – com todas as preocupações das luas de Júpiter e os “Claro, tudo bem” dos pais de Loren e Igor, que já estavam acostumados com nossas “noites de pijama”.

Deixamos o carro com promessas simbólicas de não dar PT ou outra coisa para ninguém naquela festa, dois beijos e um “Onze e meia!”. Igor sumiu assim que a porta nos foi aberta e Loren foi se juntar com um grupo de meninas da nossa sala – nenhum garoto iria colocar os olhos nela se ficasse circulando pela festa com dois caras.

— Parece que agora somos só nós dois – Júpiter abaixou-se para sussurrar para mim.

Ele era ligeiramente mais alto do que qualquer garoto na sala, o que nos ajudou a transitar pela massa de corpos que meio se debatiam, meio dançavam. Bernardo apareceu com uma garrafa aberta de Smirnoff em cada mão e as empurrou para nós, dizendo que podíamos descer para a área da piscina se lá dentro estivesse barulhento demais.

— Vamos ficar um pouco por aqui – sugeri, guiando Júpiter para uma pequena ilha sem aglomeração.

Dançamos com passos curtos no nosso canto, desfrutando de pequenos goles de Smirnoff. Uma vez ou outra, alguns colegas apareciam para conversar, rir conosco ou compactuar com nossa atuação de dança. No final da garrafa, Júpiter já ousava mexer os braços no ritmo da música.

Igor passou de mãos dadas com uma garota loira, dando uma piscada para nós. Pelo menos ele voltaria para minha casa contando sobre sua investida bem sucedida, ao invés de seu fracasso – o Igor feliz era mil vezes melhor do que o Igor magoado.

— Podemos descer agora? – Júpiter me pediu quando sua garrafa ficou vazia. – Está quente aqui dentro. Minha cabeça está girando um pouco.

Não foi preciso falar duas vezes. Agarrei seu pulso, arrastando-o em direção à cozinha, atravessando a área de churrasco – terminantemente lotada pelas criaturas do terceiro ano – e só parando no cume de uma escada de metal que descia para uma parte pouco iluminada do terreno da casa.

— Acho que é só puxar o ferrolho – ele passou o braço por trás de um portão baixo antes dos primeiros degraus.

Assim que a passagem ficou livre, descemos rápido para a área da piscina. As poucas lâmpadas passavam por trás de duas cadeiras de praia sob um guarda-sol, onde resolvemos nos sentar.

— Tá tudo bem? – Coloquei uma mão em seu ombro, comprimindo os lábios. Meu peito estava gelando só de pensar que Júpiter poderia passar mal ali mesmo e eu não saberia o que fazer. – Quer que eu pegue água ou algo do tipo?

Vagalumes começavam a aparecer, subindo da grama sintética ao redor da piscina. A música chegava mais fraca no pelo declive, mas ainda era audível. Pensei no telefone dos avós de Júpiter gravado na discagem rápida do meu celular e também nas recomendações da minha mãe.

— Eu quero... – A voz dele era fraca e vacilante.

Precisei me inclinar no espaço entre as cadeiras para conseguir ouvi-lo.

— O quê?

— Eu quero que você me beije – seu hálito cheirava a limão e álcool, quente e entrecortado por sua falta de fôlego. As bochechas estavam quase laranjas sob a influência das lâmpadas âmbares.

— Júpiter, tem certeza de que não quer uma água? – Fiz menção de levar a mão até sua testa para checar sua temperatura, mas ele segurou meu pulso antes.

— Anda logo, antes que eu mude de ideia.

Engoli em seco, excitado sob a perspectiva de fazer valer toda a paciência empreendida. Talvez quem precisasse de uma dose de álcool no sangue e um pouco de coragem naquela festa fosse ele.

Acatei seu conselho, descendo os meus lábios sobre os seus com ansiedade. Suas mãos subiram para os meus ombros. Ele ameaçou se levantar, mas fiz pressão para que continuasse sentado – não tinha chance de eu conseguir beijá-lo assim.

Minha língua infiltrou-se em sua boca depois de alguns segundos, rendendo um suspiro estrangulado dele. Nossas mãos procuravam apoio cegamente, com cutucões cômicos entre nossas costelas. Precisamos recomeçar o beijo duas vezes por conta dos risos que vinham involuntariamente. Um filete grosso de saliva escorreu pelo queixo de Júpiter quando nos separamos e eu tinha um pouco de baba ao redor da boca.

Não foi a coisa mais maravilhosa do mundo, mas foi a do nosso universo.

Júpiter acariciou meu rosto com sua mão quente, limpando seu queixo com a manga da camisa listrada. Nós sorrimos um para o outro, ainda rindo como bobos.

— Talvez você possa ter uma lua.

Já havia estrelas no céu, e elas eram como confetes em nossa festa particular.


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Notas finais do capítulo

Não tenho certeza de nada, mas a visão das estrelas me faz sonhar.

— Vincent Van Gogh