Júpiter escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 4
Um universo particular


Notas iniciais do capítulo

Todas as partículas do universo são formadas por cordas.

— A Teoria das Cordas



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/659062/chapter/4

– Agora podem formar as duplas – o professor abriu os braços, como fazia sempre que terminava uma explicação. – Não se esqueçam de que quero todo o processo de extração representado nas maquetes.

Instantaneamente, o silêncio da sala estourou em burburinhos que foram virando arranhões de carteiras e cadeiras contra o piso.

– Quer fazer o trabalho comigo? – Apoiei o cotovelo na carteira de Júpiter, pegando-o de surpresa.

Ele recuou na cadeira, me olhando de modo estranho. Recolhi meu braço, subitamente com medo de ouvir um não curto e grosso. Pensei em Loren ontem no corredor, com sua cara séria dizendo que eu estava avançando rápido demais, invadindo o espaço dele.

E de repente eu era um meteoroide tentando penetrar na atmosfera de Júpiter.

– Quero dizer – cocei a nuca, esperando que meus olhos passassem confiança. – Se você não for fazer com outra pessoa...

Júpiter riu, aproximando-se de novo. Seus cotovelos abriram espaço entre a bagunça de canetas para se apoiar na carteira.

O barulho da sala aumentava, com todos procurando uma dupla para fazer o trabalho. Loren trouxe sua cadeira para a mesa de Igor, virando-se rapidamente para bater uma continência brincalhona para mim.

– Não acho que alguém esteja esperando para fazer comigo – Júpiter indicou o resto da turma com a cabeça. – Não vai fazer com a Loren?

Apontei para ela e Igor na fileira ao lado com o polegar.

– Vou fazer com você.

– Se você diz – Júpiter deu de ombros, puxando um caderno de baixo da carteira. – Vou anotar o conteúdo.

– Ok. Nós podemos começar hoje?

– Gosta tanto assim de estudar pedras em Geografia?

Preferia focar em astronomia. Mas era uma piada idiota.

– Não. Mas parece ser um trabalho legal e eu tenho tempo depois das aulas – resumindo, eu queria descobrir algumas incógnitas de Júpiter para me vangloriar para a Loren.

– Entendi – ele desviou o olho de mim, concentrando-se em copiar as anotações da lousa. – Podemos fazer na casa dos meus avós se quiser.

– Fechou.

O restante das aulas se arrastou lentamente. Parecia que eu estava checando o relógio acima da lousa de minuto em minuto. Porém, quando o sinal do final do último período bateu , não fazia diferença.

Júpiter ajudou Loren a carregar nossos livros para o armário que dividíamos. Ele era o inquilino novo, mas fazia menos bagunça do que eu e ela juntos e arrumava a confusão de livros, cadernos e rolos de cartolina quando tudo ameaçava desmoronar na cabeça do próximo que fosse pegar alguma coisa.

Loren ficaria para tirar as dúvidas da lista de exercícios de Física. Eu não tinha lido nem mesmo o enunciado da primeira questão, mas ela já tinha terminado.

– Talvez eu passe na sua casa mais tarde. O Igor pediu ajuda com Matemática, então vou estar por perto – ela jogou um chiclete na boca quando nos afastamos da amontoação nos armários. Seus cabelos volumosos estavam soltos, formando um halo castanho ao redor de sua cabeça.

– Deveria vir assim mais vezes – puxei um de seus cachos, observando o movimento de mola.

– Acha que é sempre que dou a sorte do meu cabelo se comportar? – Ela revirou os olhos e se virou para os armários. Júpiter estava fechando o cadeado e começando a vir em nossa direção. – Escuta, não fique pressionando ele, entendeu?

– Não estou fazendo isso.

– Claro que não – ela suspirou. – Te vejo mais tarde.

Júpiter ocupou meu campo de visão antes que eu perdesse as costas de Loren no meio dos focos de aglomeração do corredor.

– Vamos? – A mochila de rodinhas fez um som agudo quando ele a freou ao seu lado.

Fiz que sim com a cabeça, passando as alças de minha mochila belos braços. Enquanto descíamos para o térreo, alunos de outras salas olhavam e apontavam para nós descaradamente. Mesmo com todo o barulho de armários abrindo e fechando e um falatório sem fim, ouvi alguém comentar sobre o “olho nojento e cego do garoto gigante”.

– Vamos logo – apertei o passo, puxando Júpiter pelo moletom.

Só o soltei quando chegamos no portão, com a mochila de rodinhas raspando contra as pedras da entrada da escola. Nos contorcemos entre os pais e os alunos que se amontoavam na calçada para sair.

– Sofri com isso por dezesseis anos inteiros, Henrique – ele riu, ajeitando seu moletom. – Não é como se eu fosse começar a ser afetado agora, não se preocupe. E olhar feio para eles não vai resolver nada.

Inevitavelmente, as pessoas continuaram olhando de modo estranho quando saímos para a rua. Às vezes era apenas pela mochila de rodinhas, porém, em outras seu olho cego era julgado.

Caminhamos por três quarteirões até a papelaria mais próxima. E eu estava decidido a aproveitar o tempo.

– Quem escolheu esse nome? – Eu precisava erguer o queixo para encontrar seus olhos quando estávamos em pé.

– Que nome?

– Júpiter.

– Meu pai gosta de astronomia – ele deu de ombros. – O obstetra da minha mãe disse que eu seria uma criança grande e que também precisaria de muita atenção. Não sei se você sabe, mas Júpiter é enorme e tem sessenta e três luas. Não é irônico?

Júpiter deu uma gargalhada.

– E você gosta?

– Na maior parte do tempo.

– E o que te faz não gostar no resto do tempo?

– As pessoas me acharem ainda mais estranho quando descobrem que meu nome é Júpiter. É sério. Quando entro nas salas de RPG online é uma coisa, todo mundo tem nome estranho lá. Mas na escola, no meio de pessoas que eu não conheço, parece brincadeira.

– Eu gosto – continuei olhando para frente, certo de que meus olhos iriam me trair. – Júpiter é meu planeta favorito desde que eu descobri que não existe só a Terra na aula de ciências.

Isso me rendeu mais uma gargalhada dele.

Antes de chegarmos na papelaria, eu sabia que Júpiter gostava de banana frita recheada com mel e canela e também de basquete.

– Isso está na lista-dos-não-posso, junto com a banana especial – ele me disse quando perguntei porque não tentava uma vaga no time da escola.

Uma atendente nos abordou logo na entrada e Júpiter começou a apalpar os bolsos do moletom. Tínhamos uma lista de materiais para fazer a maquete da nossa jazida de basalto, graças ao empenho de Júpiter numa pesquisa rápida na biblioteca durante o horário de almoço. Eu contribuí com o desenho tosco de dois pequenos satélites no final da folha.

– Aqui – ele entregou a lista para ela e nós fomos esperar no balcão dos papéis. – Acho que vai chover – comentou quando a atendente nos deixou para buscar uma placa de isopor.

Olhei para o céu pela vitrine da loja. Um pouco nublado, mas o tempo estava abafado.

– Hm, acho que não. Bem provável que o sol ainda apareça antes de escurecer.

No entanto, choveu mesmo.

O céu ficou cinza-quente antes que conseguíssemos sair da papelaria. A chuva começou com pingos grossos e esparsados, mas, num piscar de olhos – literalmente –, desabou em uma cortina pesada. Júpiter já podia substituir a moça do tempo.

Ele me puxou para debaixo do toldo da papelaria, ajoelhando-se para abrir a mochila.

– Eu consigo colocar a sacola das tintas aqui dentro – disse, pegando um guarda-chuva e enfiando a sacola em seu lugar.

Amarrei a sacola com a placa de isopor, tirando o moletom para cobri-la.

– Henrique, por que não veste a blusa? Vai acabar encharcado desse jeito.

– Como vamos fazer o trabalho com o isopor encharcado?

– A gente pode esperar a chuva diminuir um pouco – Júpiter subiu o capuz do moletom. O azul-bebê do uniforme ressaltava a cor de seus cabelos.

– Não acho que vá diminuir assim tão cedo.

Ele desceu o puxador da mochila para passar as alças pelos braços.

– Tem guarda-chuva?

Neguei, então Júpiter abriu o seu e me ofereceu. Deveria caber bem uns três Henriques e mais uma placa de isopor debaixo da lona preta.

– Assim é você que vai acabar encharcado – recusei.

– Não importa.

– Importa sim – agarrei seu pulso e a placa de isopor embrulhada no moletom, correndo para fora do toldo.

Júpiter guinchou, retardando os movimentos por ser arrancado da inércia tão de repente, mas logo estava passando o meu ritmo. Meio corremos, meio andamos de volta para o quarteirão da escola. Seguimos pela rua arborizada que levava para a dos avós de Júpiter, desviando dos postes de luz e dos esguichos de água dos carros como conseguíamos.

Entre o barulho das buzinas, da chuva e dos trovões ao longe, jurei ter ouvido uma ou outra risada frouxa dos lábios de Júpiter. Era um som doce e genuíno que quase me fez esquecer dos meus tênis ficando molhados e da placa de isopor correndo riscos entre meu braço e meu peito.

– É aqui – Júpiter girou o pulso para segurar o meu, me guiando até um portão azul gradeado.

A casa atrás deles era um sobrado branco, com janelas azuis e um telhado vermelho. Havia floreiras altas e carregadas no grande jardim que ocupava toda a parte da frente.

– Bem casa de avós mesmo.

– Não é? – Ele sorriu, contorcendo-se para apanhar a chave no bolso lateral da mochila.

Minha calça do uniforme tinha escurecido com os pingos de chuva até as coxas – Júpiter precisava segurar o guarda-chuva no alto para ficar debaixo da cobertura.

– Pronto – ele destrancou o portão, me empurrando para dentro sutilmente. – Deixe os tênis aqui fora – Júpiter chutou seus Nikes para fora dos pés na varanda da entrada quando ficamos a salvo da chuva. O guarda-chuva foi colocado no chão para secar.

A frente de sua mochila estava carmesim e os ombros do moletom, azul marinho. Fios de sua franja grudavam na testa, como se tivessem sido lambidos contra sua pele. E seu olho cinza era da cor da cortina de chuva.

Ele abriu a porta, esperando que eu entrasse para passar. A sala era mobiliada com móveis antigos com estampas florais nos estofados. Uma cristaleira grande ocupava metade de uma parede, com uma coleção extensa de jogos de chá.

– Vó, cheguei – Júpiter gritou atrás de mim, fechando a porta. – Trouxe um amigo.

Sua avó apareceu com um pano de prato nas mãos na alcova do corredor que levava para os outros cômodos. Usava jeans claros e uma camiseta listrada de vermelho e branco, com pantufas azuis.

– Oi, meu bem. Pegou muita chuva? – Ela sorriu, dando a volta na sala para chegar até nós.

– Um pouco – Júpiter a abraçou, abaixando-se para receber um beijo na bochecha. – Ele é o Henrique.

– O Henrique que almoça com você? – A avó me deu um beijo em cada bochecha e outro na testa. – Obrigada por estar sendo tão bom para o Júpiter, querido.

– Não é nada – sorri acanhado, coçando a nuca.

– Júpiter, empreste uma muda de roupa para o Henrique, sim? Estou assando bolinhos de chuva para o lanche.

– Está bem.

Júpiter fez sinal para que eu o seguisse para o outro lado da sala, onde um segundo corredor levava para uma escada de madeira escura. Subi os degraus de dois em dois para acompanhar a velocidade das pernas gigantes dele. O primeiro andar estava escuro, com as janelas fechadas por conta da chuva.

– Por aqui – ele me levou para a única porta do lado direito do corredor, onde havia um pôster enorme com o título de “A Teoria das Cordas”.

– Você gosta mesmo do seu nome – não foi necessária uma réplica. Quando a porta do quarto foi aberta, descobri o sistema sola pintado no teto inteiro e Júpiter com suas luas na parede da cama.

Sem esperar um convite para entrar, andei automaticamente para a parede de Júpiter. Havia fotos 3x4 em Io, Europa, Ganímedes e Calisto dos pais e dos avós dele. Um post-it rosa ocupava o meio de Ortósia com “PIETRA” escrito em letras garrafais e tortas de criança.

– Quem é?

– Uma garota que dividiu um quarto de hospital comigo. Ela também tinha uma doença rara e sem nome – Júpiter deu uma olhada rápida no esquema das luas e atravessou o quarto para abrir o guarda-roupa. – Ela ganhou a aposta.

– Como assim?

Demorou um tempo para que ele respondesse, o que me fez virar para ver se não tinha ficado sozinho no quarto.

– Morreu primeiro – Júpiter apanhou uma camiseta e jogou-a para mim. – Nós tínhamos seis anos e ela não batia nem no meu ombro. Mas ela gostava Ortósia, e minhas luas têm os nomes das pessoas que são realmente importantes para mim.

Seu tom de voz me fez decidir que Ortósia era uma lua proibida a partir daquele momento.

Recebi uma calça de tactel forrado, meias e um par de Crocs verde-limão. A cintura da calça ficava bem acima do meu umbigo e os Crocs quase saíam do meu pé. Quando me enfiei na camiseta, Júpiter não conseguiu segurar uma gargalhada.

– Parece uma camisola em você.

– Era de se esperar, gênio – fechei o sobrecenho, andando até o espelho. – Eu tenho uns trinta centímetros a menos que você.

Ele revirou as gavetas e encontrou uma camiseta velha que estava mais próxima do meu tamanho. Tinha um dinossauro verde com manchas roxas na estampa, o que me levou a pensar que ele deveria ter onze anos, no máximo, quando a usou pela última vez.

– Pode ser essa? Acho que é a única que não vai parecer uma camisola em você – disse em tom de desculpas, se aproximando de mim.

Comecei a tirar a camiseta grande, mas meus braços enroscavam nas partes erradas e o pano já estava a meio caminho de passar pela minha cabeça, cobrindo dos meus olhos.

– Eu te ajudo.

Júpiter subiu as mãos pelas minhas costelas, enganchando a barra da camiseta entre os dedos e puxando-a para cima. Seu toque deixou trilhas formigantes em meu tronco, me fazendo corar. A camiseta sumiu do meu corpo e seus olhos desiguais apareceram.

Meus braços continuaram levantados como se ainda estivessem tentando me livrar da camiseta. Júpiter parecia tão paralisado quanto eu, com a cabeça levemente inclinada para fitar meus olhos – completamente comuns e sem graça perto dos seus.

Seus lábios pálidos e finos estavam entreabertos como se fossem dizer algo. Linhas irregulares corriam por eles, ressaltadas onde a pele estava ressecada. Minhas mãos desceram sobre seus ombros sutilmente.

Não invada o espaço dele.

Eu era um meteoroide ganhando velocidade, penetrando na atmosfera antes do previsto.

Deixe ele decidir.

Fiquei na ponta dos pés para cobrir a diferença de altura – mas me faltavam pernas. Selei meus lábios nos dele lentamente, apenas para dizer que sim, eu estava dando espaço para ele decidir.

Nenhum de nós fechou os olhos. A chuva continuava forte lá fora. A frente de sua camiseta do uniforme estava um pouco úmida contra minha pele exposta.

A luz natural no quarto era mais cinzenta do que seu olho cego. E seus lábios, gelados e ressecados como eu supunha, porém, doces com igual intensidade.

Senti seu maxilar enrijecer, então voltei os calcanhares para o chão e o deixei. Seus dedos soltaram a camiseta grande no chão junto com a do dinossauro, erguendo-se para tocar seus lábios.

– O que você fez?

– Te beijei – engoli em seco. Quase podia ouvir Loren me dizendo que tinha ido longe demais.

A expressão de Júpiter estava séria, como se ele estivesse processando a situação e não estivesse gostando do que absorvia.

Pensei em algo para dizer, mas alguém bateu na porta e eu recuei um passo. Júpiter direcionou o olhar para a porta num reflexo rápido.

– Júpiter? Sua vó já arrumou a mesa para o lanche – deduzi ser o avô dele, com uma voz rouca e carinhosa.

– Já vamos descer, vô.

Ele se abaixou para pegar a camiseta do dinossauro e atirou-a para mim.

– Te espero na escada – sua voz regrediu ao tom do primeiro dia em que nos falamos, enquanto ele me deixava sozinho no quarto.

Agora eu era um meteorito aterrissando com um estrago catastrófico no universo particular de Júpiter.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ortósia é um pequeno satélite natural do planeta Júpiter com apenas 2 km de diâmetro.