Fadada ao Retrocesso escrita por Paper Wings


Capítulo 1
Prólogo




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Andei por vinte minutos até chegar na pracinha. Aquela pracinha cinzenta, com bancos de pedra encardidos, balanços rangentes e quebrados como eu.

Poucos iam lá, por ser muito negativo, mas para mim, a gramínea rala, seca e quase inexistente e a dureza do local encaixavam-se perfeitamente às peças do meu quebra-cabeça.

Ao andar na praça, sentia tudo tornando-se nublado e denso. O tempo passava mais devagar e tudo era cinza. Minha pele pálida ficava cinza, ganhava cor. Minhas roupas brancas e negras dançavam por entre as folhagens cinzas. Meu coração abria e deixava aquele vazio e plenitude entrarem com uma brisa fresca e cinza.

Cinza.

Eu esperava alguém. O outro ser, além de mim, que ainda ia até lá. Pertencíamos a mundos separados, porém, na praça, poderíamos ser cinza juntos. Iguais e diferentes ao mesmo tempo.

Sentei no banco lentamente e esperei meu acompanhante, o qual chegou por trás e me deu um abraço apertado. Eu sentia seu sorriso forçado perto da minha bochecha, mas nada importava. Não estava mais sozinha, seríamos cinza juntos e separados.

Olhei para ele e me perdi naquela imensidão azul. Aquelas safiras tinham a cor do oceano em um dia tempestuoso. Eu sentia afogar nesse oceano. Eu sempre afogava. Eu queria afogar.

Seus olhos eram o que mais nos afastava. Aquela coloração vibrante que tentava vencer o cinzento riscado da pracinha vazia e descuidada.

— Kora, o que foi?

Emergi das águas que me arrastavam para longe, voltando à realidade. Já estava entardecendo e o Sol tentava nos alcançar com seu laranja acobreado.

— Sim?

— Sim?! — Ele bufou, transtornado. — Sabe, Kora, você anda mais dispersa que o normal. Me pede para vir aqui todo dia, mas nós não trocamos uma única palavra.

Respirei fundo, fitando o chão e imaginando quanto tempo havia passado, enquanto eu encarava o garoto, perdida. Doeu ouvir o quão terrível era ter que me encontrar.

— Então, é um sacrifício?

Imediatamente, David suavizou sua expressão, culpando-se por ter colocado uma ideia daquelas em minha cabeça. Franzindo a testa, respondeu:

— Você sabe que não.

Permanecemos em mais um dos tão característicos silêncios. Quase me afoguei novamente, mas o homem olhou para o relógio, sinalizando impaciência, ato que não passou despercebido por mim.

— Kora, preciso ir. Se você vai ficar aí, perdida em seu mundinho, eu estou fora. Hoje não está sendo um dia exatamente bom, então...

Ele colocou as mãos nos bolsos do blusão, fazendo menção de partir e deixar-me sozinha.

— Já? — Fiquei surpresa com a melancolia carregada em minha voz. — Não, fique mais um pouco.

Ele olhou para os pés, em dúvida.

— Vamos conversar. — Peguei sua mão, arrastando-o, para sentar ao meu lado. Bem... — Comecei, indecisa. — ... como está a sua mãe?

O garoto reagiu de um jeito bem contraditório: riu de mim. Um sorriso e uma gargalhada abriram espaço em seu rosto, evidenciando nossas diferenças.

— David! — Cruzei os braços. — Vou falar para a Sra. Clarkson que você é um...

— Sério, Kora? De todas as perguntas que você poderia fazer, teve que escolher a sobre o bem-estar da minha mãe?

Fiz um biquinho.

— Parecia adequado.

David riu mais um pouco, mas parou logo, ao perceber como eu havia levado a sério sua indagação sarcástica.

— Eu sei... — Sorriu amavelmente. — E é por isso que eu adoro você.

Encarei-o de maneira profunda. Essas palavras significavam tantas coisas diferentes. Para ele, provavelmente era um jeito de se comunicar com qualquer um, mas, para mim, adorar tinha seu sentido de enciclopédia mesmo: ter veneração ou um apreço muito grande por algo ou alguém. Era precioso para mim.

— Se você quer tanto saber sobre minha mãe, ela está bem, sim.

Assenti, ciente de como tudo era simples para David. Seu sorriso vinha tão facilmente, o oceano tumultuava, espontâneo e livre, tentando me alcançar e me levar para as profundezas escuras e frias. Já eu era vulnerável e cinza.

— É... — Respirei fundo. — Que bom.

Meu companheiro pigarreou após o período estranho que se passou.

— E você, querida Kora?

— Eu? — Olhei para o nada, pensando. — Você sabe... Um pé de cada vez e eu vou vivendo.

Ele deu um sorriso contido. Era bem provável que esperasse uma resposta elaborada, ao contrário das minhas simples e inexpressivas palavras, porém, eu simplesmente não conseguia satisfazer as expectativas das pessoas.

— Um pé de cada vez? — Assentiu com a cabeça em um movimento lento e reflexivo. — Parece um bom jeito de viver.

Outro silêncio instalou-se. Quem dera eu conseguisse quebrá-lo... Por fim, continuamos em uma pálida mudez.

O jovem tentava parecer interessado na paisagem nublada, enquanto aguardava que eu tomasse a iniciativa de conversar. Eu sabia o quanto deveria ser difícil para ele, ou pelo menos conseguia imaginar...

— David?

Fitando-me, ansioso, indicou para que eu prosseguisse.

— Diga.

— Eu sou um fardo para você?

Para mim, fora uma simples e inocente pergunta, algo comum e que não necessitava muito tempo para pensar em uma resposta, mas eu estava enganada... De novo.

Ele fechou os olhos, em uma explícita posição de sofrimento, e escolheu não falar, apenas me abraçou.

Kora Hastings era o nome de alguém que eu fora em um passado não tão distante. Ela era uma pessoa incrível, sempre risonha, animada e boa com as palavras. Tinha um círculo de amigos para a vida toda — ao menos o que imaginava na época — e seu parceiro de crime era um garoto de olhos tempestuosos: David Clarkson.

Eles eram inseparáveis, uma amizade baseada no apoio mútuo e muitas besteiras para guardar em álbuns e mais álbuns. Quando saíam, acompanhados fielmente de qualquer dispositivo com câmera ou a predileta polaroid, fotos inesquecíveis eram tiradas para lembrar daquele determinado dia, caso seus corpos adultos tentassem esquecer a juventude.

Era uma adolescente normal até o acidente. Qualquer ser humano pensaria no quão clichê era uma jovem adquirir uma patologia por causa de um acidente e contar sua história. Isso, por experiência própria: eu era um desses seres humanos que lia livros fatalistas e odiava. Mudei minha opinião conforme descobri a seriedade das sequelas depois do terceiro dia de maio.

A menina que eu havia sido foi desaparecendo, aprisionada por uma carcaça cinza e melancólica, sem perceber a repulsão que causava àqueles considerados próximos. Apenas ao deparar-me com meu eu atual, percebi que estava sozinha... Bom, quase.

Depressão por estresse pós-traumático crônico. Lê-se: estresse até o dia de sua morte, o qual provocou uma profunda patologia. É importante lembrar que sempre há esperança. Isso foi o que o médico disse, porém, eu não compreendia como poderia haver esperança em um mundo tão errado, tão colorido fora das linhas...

— Preciso mesmo ir, Kora... — Expressou aflição. — Você ficará bem?

Assenti, consciente de já ter tomado muito tempo do garoto.

— Eu sempre fico...

David respirou fundo e beijou minha testa.

— Não vá para casa tarde.

Molhei os lábios, acostumada com sua preocupação típica e concordei, vendo-o ir e deixando-me sozinha no cinza do parque. Apenas no dia seguinte, poderia encontrar o mar novamente.


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Notas finais do capítulo

É isso aí... O que acharam? Eu não quero deixar a história com um tom muito melancólico, por isso eu... :X ... não vou falar mais nada. {spoilers}.Comentem e até o próximo capítulo. Xxxxx



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