Maison d'Os escrita por Dama de vermelho


Capítulo 4
Eu lembrava..


Notas iniciais do capítulo

☠ Flashbacks de Anna e o começo real da trama;
☠ Boa leitura.



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15 de Setembro

— Caralho!

Eu estava atrasada.

Eu estava muito atrasada.

O alarme não tinha tocado naquela manhã e minha mãe não estava em casa, acho que tinha ido ao dentista ou algo do tipo. Eram 7:20, meu ônibus passaria 7:30 e eu não estava pronta. Vou ter que tomar café na escola, disse enquanto tomava um dos banhos mais rápidos da minha vida, mas parecia que o universo não estava conspirando ao meu favor, tropecei na escada, molhei meu celular e de quebra não consegui encontrar minha farda. Enquanto calçava o tênis e ia em direção a porta calculei quanto teria de correr. Apesar do ponto de ônibus ser na esquina de minha casa eu estava bastante atrasada e provavelmente teria de pegar uma corrida com o ônibus pra conseguir chegar no ponto antes dele.

Mas não precisou. Quando eu abri a porta o ônibus estava parado no ponto e a última pessoa estava prestes a subir. Não cheguei a dar dois passos e o ônibus arrancou e foi embora. Podia jurar ter visto o motorista rindo da minha cara pelo retrovisor.

— Que saco! – Disse enquanto chutava, com uma força desnecessária, uma sacola jogada na rua. Minha mãe estava certa quando dizia que eu deveria xingar menos.

— Algum problema?

Eu sou tão desatenta que poderiam colocar uma árvore no meio do meu quarto e eu só perceberia uma ou duas semanas depois. Era o meu vizinho, ele estava me olhando com uma cara feia como se me repreendesse por te xingado enquanto regava as plantas do seu jardim. Ele era alto, deveria ter em torno de 35 anos, apesar de alguns fios de cabelo grisalho e das pequenas marcas de expressão ao redor dos olhos. Ele estava usando uma bermuda e uma camiseta que combinavam com o tom de pele cor pêssego que ele tinha. A cor de seus olhos oscilava entre um verde muito escuro e preto, maldita heterocromia, pensei comigo mesma. E apesar de ninguém da rua o conhecer direito já que sua saídas de casa eram raríssimas e de não saberem ao menos o seu nome, todos concordariam comigo em uma coisa, ele era estranhamente sedutor.

— Er.. Me desculpe, eu não vi o senhor. Está aí a muito tempo?

Ele soltou uma risadinha, virou-se para o jardim e disse:

— Estou a tempo suficiente pra ver você perder o seu ônibus.

— É, isso acontece sempre, tenho o sono muito pesado. – Pus uma mecha de cabelo, que insistia em ficar no meu rosto, por detrás da orelha e continuei. – Bem, tenho que ir, vou pegar o próximo ônibus. Até logo.

— Você não vai se atrasar?

— Vou, mas já estou acostumada. E acho que os professores também.

Me virei para ir embora quando ele me chamou de novo.

— Você não quer uma carona?

Minha mãe sempre me ensinou a nunca aceitar ajuda de estranhos, mas tecnicamente ele não era um estranho, era o nosso vizinho. E aquilo era realmente tentador. Eu poderia ir para a escola de carro, confortável e com ar condicionado. Isso era, sem sombra de dúvida, 1000 vezes melhor que um ônibus lotado de gente cujo último banho fora a mais de 8 horas. E a voz dele me passava tanta segurança. Parecia impossível dizer não.

— Isso não vai te atrapalhar? – Disse querendo ganhar mais algum tempo pra pensar.

— Não, de modo algum. Eu já ia no centro resolver alguns problemas, mas eu vou entender se você não quiser.

— Tudo bem, eu vou com o senhor.

— Se me permite, me chame de você. Não sou tão idoso assim.

Ele entrou para pegar as chaves do carro e eu fiquei esperando na porta. Pude então observar melhor a casa dele e percebi que não era muito diferente da minha. Enquanto na minha tinha um muro enorme impedindo qualquer visão da casa, na dele o muro era de cobogó, uma espécie de tijolo vazado, mas ainda sim só me deixava analisar melhor a casa caso eu chegasse bem perto. A casa dele estava ao fundo, depois de um gramado que fora aparado a cerca de um mês e já estava precisando de outra mas mesmo assim estava bem tratado. Não havia nada de diferente das casas comuns, uma varanda com uma rede, alguns jarros de planta espalhados, enfeites de jardim, como eu disse, nada de especial.

Me assustei quando o portão da garagem abriu de repente e ele saiu de lá já dentro do carro. Ele acenou, apontou em direção a porta e eu entrei. Fomos conversando enquanto eu indicava o caminho da escola. Conversamos sobre nossos gostos, costumes e manias. Éramos bem parecidos em alguns pontos e bem diversos em outros, ele gostava de ler assim como eu, mas preferia os clássicos como Machado de Assis e Fernando Pessoa, enquanto eu preferia os moderninhos como ele disse, como PJO e HP. Ele gostava de esportes mas preferia caminhadas noturnas enquanto eu era mais chegada em esportes matinais. Conhecendo um pouco mais sobre o meu vizinho misterioso eu me senti menos mal por ter aceitado a sua carona.

Quando chegamos na escola eu olhei para ele, me despedi e ele me deu um beijo na bochecha. Eu devo ter ficado vermelha igual um pimentão porque ele tratou de se explicar rápido.

— Oh, me desculpe. Me desculpe mesmo.

— Tudo bem – Respondi com um sorriso e retribuí o beijo. – Sério. Eu só.. Não sei o seu nome.

— Prazer. – Estendeu a mão como quem cumprimenta o seu novo chefe. – Meu nome é Carlos Antônio. Carlos Antônio Veras Díaz, e vossa senhoria?

— Anna Bolenna. – Fiz uma reverência tão pomposa quanto a dele. – Anna Bolenna Martinez de Andrade, como a rainha da Inglaterra com um n a mais de bônus.

— Hahaha, eu adorei. Agora vá, não quero que se atrase.

Eu acenei com a cabeça e saí do carro. Fui em direção à escola e tive a péssima ideia de olhar para trás e quase dei de cara com uma árvore. Ele ainda estava lá, e também estava olhando para mim. Me deu tchau e saiu. Quando me virei para entrar na escola e vi a cara da Lisa e da Juliana percebi que tinha feito a maior burrada da minha vida aceitando aquela carona.

— Aaaaahhh!! Quem é ele Anna? Quem é? E porque você não me contou?

Do jeito que ela estava gritando todos já estavam olhando pra gente e não demoraria muito para a diretora vir investigar a origem daquela algazarra.

— Lis, para de gritar! Você está chamado a atenção das pessoas.

— Ei maionese, relaxa.

Lis ficou quieta, ela odiava aquele apelido e toda vez que alguém a chamava assim ela ficava sem reação, mesmo já tendo escutado isso um milhão de vezes.

— Mas conta logo. Qual é a do motorista misterioso?

Ela levantou uma das sobrancelhas como sempre fazia quando queria ver as coisas explodirem, e eu jurava poder ver um brilho maldoso nos olhos dela. Eu odiava aquela malícia escondida por trás de cada palavra da Ju, mas não nego que é algo interessante de ser ver porque ela sempre consegue tirar as pessoas do sério. Era interessante, mas não quando era comigo.

— Ele é meu vizinho Ju. –Ela revirou os olhos com desdém, mas ignorei e continuei. – Eu perdi o ônibus e ele me ofereceu uma carona. Só isso.

Havia me esquecido de que a Lisa estava lá. A essa altura ela já tinha saído do choque maionese e resolveu entrar na onda da Ju.

— Ah sim. Você vem de carro com ele, dá um beijinho de despedida, olha pra trás depois de descer do carro e quer nos convencer de que não rolou nada?

— Sim, e querem saber? Acreditem se quiser.

Passei por entre elas como um furacão e continuei ignorando os diversos murmúrios e teorias sobre o meu vizinho.

Ainda faltavam 10 minutos pra aula começar e professor já estava na sala quando eu entrei. Passei por ele, joguei minha bolsa e saí. Ele soltou um pigarro de desaprovação e disse:

— Anna? Aonde vai?

— A qualquer lugar que não seja aqui.

— A aula vai começar e você vai receber falta.

— Que eu saiba, ainda faltam 10 minutos e pela lei você não pode começar a aula antes disso, e mais, eu tenho 15 minutos de tolerância. Agora, se me dá licença eu vou sair.

Saí da sala e ouvi alguém cantando Turn Down For What e quis rir. Olhei para trás e metade da sala tinha saído depois de mim. Com toda certeza eu ficaria de recuperação naquela unidade.

Voltei para a sala faltando exatamente um minuto para o começo da aula. O professor já estava fazendo a chamada e quando eu cheguei faltavam duas pessoas para o meu nome. Me sentei, respondi a chamada mesmo sabendo que ganharia uma falta e peguei meu caderno. Comecei a rabiscar linhas, traços e palavras aleatórias, qualquer coisa era melhor que uma aula de história mediada por um dinossauro.

O sinal tocou. Amém, pensei comigo mesma. A próxima aula era prova de português e então eu estaria finalmente livre. Como eu ainda não tinha voltado a falar com a Lisa e a Juliana elas vieram falar comigo.

— Anna!

— Para de gritar Juliana, eu estou bem aqui.

— Olha Anna, me desculpe pelas piadinhas com seu vizinho. – Ela parou e inspirou como se estivesse sendo difícil dizer isso. – Mas não pode me julgar por achar estranho você chegar de carro com um cara desconhecido.

A Ju nunca havia me pedido desculpas uma só vez na vida. Acho, na verdade, que ela não pedira desculpas a ninguém. Eu me senti especial embora soubesse que ela só estava usando aquilo pra descobrir a verdade, seja lá qual fosse.

— Tudo bem Ju, eu te perdoo. Mas eu não estava mentindo sobre não ter acontecido nada.

— Nem um.. – Ela parou de falar assim que eu me virei pra ir embora. – Não Anna, espera. Não tá mais aqui quem falou, o.k.? Agora vamos logo pra aula.

— Certo.

Eu não tinha estudado nada para aquela prova então, com toda certeza eu levaria bomba, mas já estava preparada psicologicamente pra isso. Saí em 15 minutos mas mesmo assim perdi meu ônibus, resolvi então esperar na biblioteca. Desastrada como sempre, eu não vi que tinha alguém querendo sair da biblioteca enquanto eu queria entrar e é lógico que isso não acabaria bem. Dito e feito, dei de cara da com alguém quando abri a porta.

Era o Felipe, um dos meus melhores amigos. Ele era magrinho, com cara de nerd mas era uma ótima pessoa. Seu único defeito era ainda ter esperanças comigo. Eu o conheci na 4º série e desde então ele tem uma queda, melhor dizendo, um precipício por mim. Nos afastamos por um tempo e nos reencontramos já no ensino médio e mesmo assim ele não desencana. Algumas pessoas me chamam de insensível, dizem que eu deveria “dar uma chance”, mas eu prefiro fingir que não sei que ele gosta de mim ao invés de magoá-lo, assim ele também finge que não gosta de mim e tocamos as nossas vidas.

— Ai! Você não olha por onde anda? – Resmungou ele ainda olhando pra baixo como se seus livros fossem mais importantes.

— Me desculpa Felipe, eu não te vi.

— Ah Anna, é você. – Ele ficou vermelho como se se arrependesse de ter brigado comigo. – Está tudo bem, não danificou nenhum livro e minha cabeça ainda está no lugar.

Soltei uma risada meio frouxa e comecei a ajudar ele a pegar os livros. Dentre os milhares de livros que ele pegara estava Dom Casmurro, aquilo me lembrou meu vizinho e eu quis rir mas me controlei a tempo. Quando acabamos ele me agradeceu e quis puxar assunto, mas eu não estava nem um pouco afim de conversar então dei um passa fora nele, me segurando para não ser grossa. Felipe era a última pessoa que eu gostaria de magoar.

— Obrigado Anna. Você está indo pegar algum livro? Posso te ajudar a escolher.

— Obrigada Lipe mas não quero ajuda. Vim aqui só pra passar o tempo até meu ônibus chegar.

— Oh, eu posso ficar aqui com você.

— Não Lipe, sério. – Respirei, eu não posso ser grossa, pensei antes de terminar. –Eu quero ficar um pouco sozinha, se não se importa.

— Claro Anna, se precisar pode contar comigo.

Balbuciei algo como aham e entrei na biblioteca. Escolhi uma cadeira ao fundo e isolada, não precisava nem queria ser incomodada. Pus o fone de ouvido e ativei o modo ignorar pessoas educadamente até o horário do meu ônibus.

Dormi no ônibus e passei do meu ponto então tive que andar até em casa. Quando cheguei minha mãe tinha saído de novo então poderia tirar uma soneca sem ouvir reclamação. Acordei 21:00 com fome, minha mãe ainda não tinha chegado então tive que me virar. Dentre as mais variadas opções, que eram no caso omelete e miojo, decidi que faria omelete, mas enquanto fritava os ovos bateram na porta. Não posso negar que eu gelei. Minha mãe não esquecia a chave e quando esquecia me chamava pelo nome, e o meu bairro era vazio demais, então qualquer visita depois das 19:00 era considerada como perigo.

— Quem é?

Está bem, isso era ridículo. Se fosse um bandido nunca responderia “Ah, sou eu, me deixe entrar e tomar uma xícara de café pra assaltar sua casa depois” mas assim como nos filmes de suspense ninguém pensa nisso.

— Sou eu, Carlos. Seu vizinho.

Não sei se fiquei mais calma ou mais nervosa. Ele nunca saia de casa e ninguém nunca o tinha recebido como visita. Mesmo assim eu abri.

— Buenas noches Señor.

Ele riu e respondeu:

— Buenas noches Señorita.

— Alguma problema?

— Não, é só que você esqueceu seus óculos no meu carro hoje. Como vai terminar de ler seus livros moderninhos sem eles?

— Hahaha, muito engraçado o senhor. Mesmo assim obrigada.

— Por nada. E não me chame de senhor. Bem eu só vim fazer isso mesmo, tenha uma boa noite Anna, e vá dormir para não perder o ônibus amanhã.

— Boa noite Carlos. Durma bem também.

Terminei minha omelete e fui dormir. Ouvi minha mãe chegando, mas estava com sono demais para descer e cumprimentá-la. Mesmo assim pude ver quando ela entrou no meu quarto e me deu um beijo de boa noite. Apesar de quase não ver minha mãe ela fazia o possível pra cuidar de mim e eu agradecia muito o seu esforço. Meu pai me largara quando ainda estava na barriga dela por isso não tenho o nome dele no registro. Ainda bem, odiaria ter que assinar o nome de um cara que nem se preocupou em esperar eu nascer pra dar um pé na bunda de minha mãe. Segundo ela, ele foi embora com uma loira que achou num bordel de beira de estrada, mas ela disse que odiaria que eu crescesse no mesmo ambiente que ele e agradece por ele ter ido embora. E sinceramente? Eu também agradeço.

Adormeci pensando em como seria ter um pai. Um pai presente, que me amasse, e que fosse de verdade. Eu sabia que nunca sentiria isso. Depois que o meu pai foi embora minha mãe não conseguiu gostar de mais ninguém. Apesar de ser um canalha ela gostava dele, de verdade. Meu último pensamento antes de apagar de vez foi que eu não queria isso pra mim e que se um dia eu gostasse de alguém, mataria aquele sentimento.


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Notas finais do capítulo

☠ Agradecimentos à Leonardo S., revisor da minha história;
☠ Não me batam por não ter escrito nada suficientemente revelador.