Cidade das Portas Celestiais escrita por heeyCarol


Capítulo 3
Era uma vez uma Bruxa


Notas iniciais do capítulo

Segundo capítulo!!! Esse aqui vai focar um pouco mais nas investigações que estão acontecendo, e já é uma base para algumas teorias, além de explicar algumas coisas que são fundamentais para toda a trama. Preste atenção, há detalhes importantes aqui, e quem sabe umas dicas do que está por vir? Obrigada pelos comentários no capítulo anterior, vejo vocês nas notas finais!
Sem mais interrupções, o capítulo...



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2

No canto dos aposentos reais, a rainha das fadas escovava seus cabelos ruivos de forma suave em frente a penteadeira. Ela fazia aquilo com muita frequência ultimamente, apenas sentar ali e ficar encarando o móvel perfeito, mas quando fazia isso, sabia que os súditos pensavam que estava louca. Nunca falaram, nem mesmo murmuraram entre si, mas ela sabia o que se passava por suas cabeças.

A questão era que ela adorava aquele espelho.

O móvel em si era insignificante, e mesmo com uma simplicidade que ressaltava beleza, não se importava com aquilo. Oh, é claro que não se importava nem um pouco com aquilo. O que importava para ela era a parte de cima, o espelho, que também era irrelevante – embora também tenha sido enfeitiçado para mostrar apenas seus melhores ângulos – onde se encontrava a moldura. De longe, com a luz que ela deixava invadir o quarto, qualquer um confundiria o brilho com o de milhares de diamantes, embora para fosse mais preciosa do que qualquer joia que pudessem ter-lhe oferecido.

Se aproximasse o rosto o suficiente, estreitando os olhos, veria que na verdade se tratavam de pequenos cacos que reluziam seu reflexo como um vitral. E ela o fazia todas as vezes que se sentava: em silêncio, encarava seu reflexo e deixava que os pequenos cacos refletissem em tons de laranja de seus cabelos e o branco de seu rosto. E então sorria, um sorriso afiado que faria o coração dos inimigos gelarem; e ela sabia daquilo também.

Era um tanto agridoce pensar que o espelho de Jonathan Morgenstern se encontrava ali, reduzido a um pouco mais que pó; porém, ela gostava de tê–lo consigo, uma promessa silenciosa de que jamais se renderia a qualquer um daqueles vermes Caçadores de Sombras.

Repousou a escova de modo lento, silencioso e quase contemplativo sobre o móvel, verificando mais uma vez as orelhas pontudas. Ela tinha um excelente plano em mãos, e uma raiva que transporia quaisquer barreiras até finalmente poder alcançar o seu objetivo. Nada a impedia.

Um som oco irrompeu pelo cômodo, e ela imediatamente permitiu a entrada da fada, não podendo conter um sorriso ao vê-lo. Desde Meliorn, Marterón havia se tornado seu servo mais leal... e um amante em horas oportunas. Havia se desenvolvido bem como fada, e provado sua lealdade muito mais vezes do que julgava necessário, mas era bom saber que o tinha nas mãos. A fada a fitou por um instante, deixando um sorriso malévolo aflorar nos lábios finos de cor escarlate.

— Suponho que tenha tido sucesso em sua pequena missão.— pronunciou a rainha enquanto levantava-se e seguia até a porta. Trajava um vestido tão leve quanto uma brisa – e quase tão transparente quanto – feito de um tecido fino cor de ocre, o busto e o tronco decorados com pequenas folhas de diferentes tons de laranja e verde maduro, que davam a impressão de que dançavam pelo seu corpo, perfeito para uma comemoração silenciosa.

— Oh sim, minha dama. — dissera a fada, e ela conteve o impulso de torcer o nariz. Fingia que havia superado a morte de Morgenstern, e não demonstrar incômodo ao imaginar a voz dele pronunciando aquela frase era uma ótima maneira de convencer o público. — Garanto que a bruxa não vai contar nada aos Caçadores de Sombras sobre nosso pequeno segredo. Aliás, limpei todos os rastros. Garanto que nada vai ligar a garota ao crime.

A rainha sorriu demonstrando sua satisfação.

— Sabe que não podemos perdê-la Marterón — ela aproximou os lábios rubros próximas às orelhas pontudas do outro, sentindo o cheiro de canela e folhas secas — ela é a nossa arma mais preciosa, a barganha pela nossa liberdade.

ξ

Irmão Ezra avaliou o corpo apenas com o olhar, deixando as mãos esguias escondidas no manto cor de pergaminho. Caleb queria perguntar como eles faziam aquilo sem sequer tocar no corpo, mas ao invés disso ficou calado; Irmão Ezra não era muito amigável, e sempre lhe pareceu mais frio e distante do que qualquer Irmão do Silêncio.

Enquanto esperava uma resposta, resolveu se concentrar nos vidros sobre a mesa metálica próxima a ele, onde uma substância roxa gasosa condensava-se dentro de um balão de fundo chato. Béqueres e Erlenmeyers estavam espalhados com substâncias brilhantes tanto líquidas quanto gasosas, e uma que ele conhecia bem estava suspensa em um pequeno tripé: icor demoníaco, preto e brilhante à luz bruxuleante do cômodo.

É uma bruxa, morta por cães infernais. Irmão Ezra disse com uma voz grave em sua mente, e Caleb imediatamente voltou sua atenção para o corpo sobre a mesa. Não havia dúvida de que se tratava de um ataque de cães infernais, o problema era que isso não é algo comum.

— Ela não teria invocado os cães, teria? Pelo o que eu saiba, apenas feiticeiros podem fazer isso.— respondeu Simon, quebrando o silêncio pesado que Caleb não havia percebido estar ali até esvair-se.

Não. Creio que tenha sido algo planejado, uma morte encomendada. Cães Infernais não são como os outros demônios, eles são comandados por alguém, e é quase impossível que ataquem algo que não seja seu alvo.

Caleb revirou os olhos de modo discreto. Eles sabiam daquilo, precisavam de uma informação útil para começar a investigar.

Cuidado Caleb Herondale, estava começando a tolerar você

Ele surpreendeu-se por um instante, olhando para a expressão dos tios; aparentemente, o Irmão havia se direcionado apenas a ele. Caleb sabia que os irmãos dificilmente demonstravam emoções humanas, porém eles podiam fazê-lo, e no caso, quase sempre eram negativas quando se tratava dele desde pequeno, quando seus pais não permitiram que o estudassem e retirassem amostras de seu sangue.

Desde a Guerra Mortal, Caçadores de Sombras mais velhos que perderam suas famílias se juntaram ao grupo de eruditos, e, portanto, não eram tão tradicionais; não era possível saber ao certo qual deles era um dos que recentemente foram integrados ou se já estavam ali a tempos, mas Irmão Ezra, que escutava seus pensamentos de forma inoportuna e resmungava quando sentia-se levemente ofendido, provavelmente era um deles.

— Não temos outra informação além dessa?— questionou Isabelle, colocando as mãos na cintura. Isso era uma espécie de alerta vermelho quando se tratava da tia.

Desculpe, mas avisarei se encontrar algo mais.

Dessa vez Caleb conteve o revirar de olhos e se direcionou à escada espiral no canto da sala, um pouco ansioso para sair dali, sem sequer esperar os tios. Depois dos agradecimentos deles – inúteis, a seu ver – terem sido abafados, começou a pensar no que seus pais fariam se estivessem em sua situação; o que fariam se estivessem vivos.

O que o grande Jace Herondale faria? De acordo com Isabelle, ele já teria um plano audacioso em mente. Caleb tinha muitos planos audaciosos, e um temperamento controverso, que imaginava terem sido características herdadas do pai, muito além da aparência. A mãe, a extraordinária Clarissa Herondale, já teria usado seus dons para algo mais útil do que abrir as portas de um necrotério. Caleb, porém, tinha tudo isso: os dons, a técnica, o talento, mas não conseguia pensar em nada naquele momento.

Esfregou o rosto com a palma das mãos, exausto.

Sentia falta dos pais, mas agora, mais do que tudo queria eles ali.

Questionara a Clave desde a declaração do desaparecimento deles a sete anos, mas não teve resposta. Ao que parece, ninguém tinha. Havia algo errado nas barreiras da Rússia, e perderam contato dias antes; só souberam o que havia acontecido quando tio Simon quase desmaiou de dor no meio de uma batalha, a marca parabatai desbotando próxima a seu pescoço. Na noite do mesmo dia, tio Alec havia ligado, informando a mesma coisa com a voz embargada. Clary e Jace Herondale estavam mortos, deixando seu único filho de dez anos com os Lightwood; uma tragédia familiar que havia se repetido.

— Caleb…— Isabelle chamou tocando seu ombro de leve. Imediatamente se recompôs, mascarando suas feições como aprendera a fazer desde pequeno, quando estava no enterro dos pais vestindo branco pela primeira vez, tentando manter-se forte, e como quando andava pelas ruas de Ídris em meio aos murmúrios dos outros Caçadores de Sombras, fingindo que aquilo não o afetava.

—Vocês não vão deixar isso de lado, certo? -— questionou enquanto seguiam pelos corredores de pedra e ossos. Caleb fez questão de não fitar as paredes.

— O que quer dizer? — perguntou Isabelle, que não parecia estar em dúvida quanto a questão.

— É óbvio que Irmão Ezra não contou tudo. Sabemos que estão nos escondendo algo…

Simon sorriu de canto quando chegaram à escada que dava para o cemitério. Crânios olhavam para eles através dos olhos ocos em meio ao escuro, iluminados parcialmente pela pedra enfeitiçada da tia, pareciam querer avisá-los sobre algo. Em um momento mórbido, Caleb pensou o que aconteceria se os marcasse para que falassem.

— Entendemos Caleb, mas não é como se pudéssemos sair investigando secretamente os movimentos da Clave para sabermos o que acontece…— ele fitou o tio com desapontamento, até perceber que ele piscara furtivamente com o olho direito.

— Além disso — prosseguiu Simon — você deveria fazer algo mais útil do que investigar a Clave secretamente, como tirar a ferrugem daquela moto demoníaca lá na estufa. — Isabelle deu uma cotovelada forte entre as costelas de Simon, que ofegou baixinho.

— Acho que ele já entendeu, Si.

O vento frio atingiu o rosto de Caleb fortemente, e sua visão focou logo no céu acinzentado, anunciando que em breve haveria uma tempestade. Os prédios reluziam como mercúrio, e se não fossem os táxis toda a rua pareceria uma fotografia em preto e branco.

— Claro que entendi.— respondeu por fim — Estou louco para brincar de detetive…

ξ

Mackenzie se encolheu quando as portas do metrô se abriram, revelando a estação do Bronx. Por algum motivo idiota havia imaginado as crianças ali, encarando-a como se fosse um monstro, prontos para pularem em cima dela e distribuírem socos em seu abdômen enquanto choravam, achando que ela havia matado sua mãe. Provavelmente teria deixado, e depois de alguns segundos, tentaria explicar o que conheceu sem derramar muitas lágrimas, mesmo sem muita convicção de que isso seria possível.

Mas não, a estação estava vazia, com exceção de um homem coberto por um capuz que aparentava dormir em uma das cadeiras de plástico verdes, logo abaixo de uma propaganda de salgadinhos pichada com um desenho preto que mais parecia dezenas de riscos aleatórios e aparentemente indecifráveis. Quando saiu do trem, pôde sentir o cheiro de chuva e esgoto penetrar suas narinas, fazendo seu estômago revirar. Era estranho estar ali em plenas duas da tarde; nunca havia voltado tão cedo para a casa, muito menos saía da academia de dança sem ter de correr para chegar ao The Blue Point – um bar de jazz algumas quadras dali – para não se atrasar para o horário da noite.

Senhora Hartmann a havia dispensado, falando que, enquanto as investigações da polícia quanto ao caso não fossem encerradas, ela não poderia trabalhar ali. A chefe era uma mulher pequena, cabelos castanhos espessos sempre presos para trás com alguns fios grisalhos bem colocados, destacando o olhar severo; nunca havia sido muito receptiva com Mackenzie e sempre a julgou como uma pianista regular, “substituível”, porém uma violoncelista acima da média. Mas Nova Iorque estava cheia de músicos, e se Mack traria uma péssima imagem para a academia – mesmo tendo cometido crime algum – não havia motivo para mantê-la.

Mack suspirou, sentando-se dois assentos de distância do homem, que se mexeu levemente. O cheiro de lixo parecia mais desagradável ali, mas ela apenas recostou-se contra os azulejos brancos da parede.

Comprimiu os lábios pensando no que poderia dizer às crianças se elas ainda estivessem no apartamento. “Sinto muito” estava fora de cogitação.

Enxugou as mãos suadas nos jeans agora limpos, embora levemente desbotados, que havia colocado sem necessidade, e lamentou em silêncio a futura ida à agência de empregos temporários logo ali na esquina. A primeira vez que foi havia sido um tanto desagradável, principalmente pelo fato de suas qualidades se limitarem a música e não ter formação em nenhuma outra área específica. Ela também havia se surpreendido com aquilo, mas na verdade não se lembrava de qualquer outra coisa que pudesse colocar no currículo.

De repente dezenas de imagens do carpete vermelho do cinema e o cheiro de óleo e manteiga da bomboniere a atingiram como um tapa, mostrando a ela o quanto estava desesperada.

As coisas não andam bem, não é?–— questionou uma voz sem tom, levemente arrastada.

Ela olhou de soslaio para o homem que ainda estava coberto pela sombra, mas pôde ver o queixo quadrado e a barba por fazer; ela não conseguia enxergar os olhos nem o cabelo, embora tivesse a ligeira impressão de que a cabeça seria roliça e careca.

— Ah, sim.— respondeu se erguendo, o corpo entrando em estado de alerta. Algo naquele homem a fez despertar de seu torpor antes mesmo que tivesse chance de entrar em tal estado.

Os tempos andam difíceis para todos nós, não é verdade?

Mack sentiu os ossos tremerem como se dezenas de abelhas estivessem zunindo dentro deles. Aquela voz…ela conhecia aquela voz, mas não tinha tanta certeza, assim como nenhuma lembrança útil lhe veio a mente naquele momento.

— Quem é você? — questionou se levantando de súbito, surpreendendo a si mesma. Mack sentiu seu sangue gelar quando o homem gargalhou, parecendo nem um pouco disposto a responder sua pergunta, muito menos deixá-la sair dali sem que a perseguisse.

Droga Droga Droga!

Sabia que ela tinha concordado em te esconder, mas não sabia que havia lhe deixado…aliás, te transformado por completo o homem falou, ponderando entre se levantar ou permanecer sentado. Ela por outro lado, ponderava entre se afastar devagar até ter caminho livre para sair correndo ou permanecer imóvel e se deixar ser assaltada, afinal, tinha apenas três dólares nos bolsos, o troco do café que comprou no Java Jones entre uma conexão e outra no início de seu estado melancólico graças aos cinco dólares que uma bailarina lhe ofereceu antes de ser expulsa da academia.

Talvez ele me mate porque não tenho dinheiro suficiente. Pensou entre inspirações, o que não ajudou muito a acalmá–la.

Tentava manter o controle da situação, mas era difícil quando seu estômago parecia querer se romper em uma bomba de suco gástrico e seus ossos permaneciam com aquela estranha vibração, que estava longe de ser algo metafórico e sim um telefone no vibra call. Seus dedos estavam literalmente trêmulos, como se segurasse um daqueles massageadores eletrônicos que alguns homens vendiam no centro.

— O que você quer? Apenas me responda isso, ou me deixe ir embora.

O encapuzado ficou em silêncio por alguns segundos, o que pareceu estranho a ela, já que antes ele conversara com bastante fluidez.

Oh, não tomarei mais o seu tempo. Vim apenas avisar para que você se proteja, caso o contrário, você não será mais necessária.

— Me proteger de quê ? — questionou erguendo as sobrancelhas. O homem se levantou, silencioso como uma sombra, e antes que ela pudesse se esquivar ele a agarrou pelo pulso, não havia sido bruto, porém ele exalava possessividade…e sangue; se não estivesse tão assustada provavelmente teria vomitado em cima dele sem hesitar.

Você não sabe nada ainda…tão ingênua. ele passou as mãos frias pela pele febril de suas bochechas, e Mack teve certeza de que aquilo não era um gesto comum para ele.— Uma hora você saberá, apenas espero que interprete os sinais de forma correta, e lembre-se… — ele se aproximou de seu ouvido, os lábios frios roçaram em sua pele — o que importa é o seu sangue. Ela pode ter te ajudado, mas não deixe que ela te use.

Quando Mack se deu conta, estava apenas ela na estação, a brisa do próximo trem invadindo o túnel em uma torrente. De imediato colocou a mão na bochecha, onde um rastro ardente se fazia perceber assim como em seu pulso.

Com certeza não havia sido um fantasma.

Correu em direção a chuva com um arrepio percorrendo sua espinha, tal como se roçassem uma lâmina em seu pescoço.

Uma vez havia lido que demoravam em média quatro segundos para que os olhos humanos reconheçam a cor exata das íris de outro; Mack, porém, havia levado apenas um segundo para assimilar aquele olhar: penetrante, maldoso. As íris brancas e brilhantes como água congelada estavam fixas em sua mente, como se tivessem sido emolduradas. Nelas, ela podia ver fibras pretas que pareciam anormais, como se tivessem sido riscadas com lâminas negras, lembrando-lhe desenhos de giz carvão.

Exceto pelo fato de parecerem ter sido feitas com ódio.

ξ

— Micca, pode abaixar o volume? — Cara pediu pela terceira vez tentando alcançar o mangá das mãos da irmã mais velha.

Micca apenas rolou para o outro lado da cama deixando os dedos afundarem nas páginas da décima edição do Neon Genesis Evangelion, enquanto os choramingos de Cara abafavam a música do Five Finger Deathpunch. Aquilo era o que Micca fazia quando estava entediada: recorria ao seu lado mundano. Porém isso não era alívio, já que a irmã fazia o mesmo toda hora.

— Por favor…estou com uma melodia boa aqui! — reclamou a garotinha, conseguindo arrancar a revista das mãos de Micca em um breve momento de fraqueza.

Olhando da posição em que estava ( que consistia em um contorcionismo que envolvia um pé enroscado com o joelho e a barriga para cima ), Cara lhe parecia uma versão mais nova de si mesma com sardas no nariz e um rabo de cavalo bagunçado.

Será que todas as garotas dessa família estão fadadas a se parecerem?

— Okay Shakespere, vou deixar você escrevendo.— falou arrastando-se até o chão acarpetado e depois indo em direção ao rádio. Por mais que a irmã fosse irritante as vezes, era bom saber que ela também gostava de fazer algo a mais que matar demônios, como certos parabatais faziam.

Assim que apertou o botão o quarto ficou silencioso e parte da tranquilidade que ela sentira ali se esvaíra, como se tivessem jogado a realidade em sua cabeça esperando que a sustentasse. Piscou por um instante, desesperada para encontrar algo no qual se concentrar, terminando por fixar o olhar no quarto em si, com a parede rosa chocking coberta de pôsteres de bandas e alguns desenhos de Caleb que ela implorou para que fizesse, como o de Azlan das “Crônicas de Nárnia” e um que retratava ela mesma bebendo café no Taki’s, que ficavam próximos à sua penteadeira preta respingada de tinta fluorescente e lascada em alguns cantos. Próxima à poltrona de veludo escuro em que Cara estava esparramada escrevendo furiosamente em seu caderninho, se encontrava as fotos da família presas na parede em sua própria bagunça organizada, e abaixo delas, pendurado em um gancho, jazia seu fabuloso cachecol francês vermelho, um presente do tio Magnos Bane – que insistia que a amaldiçoaria se continuasse o chamando de tio – e tio Alec, irmão de sua mãe, com invejáveis olhos azuis. As vezes imaginava como seriam os filhos dele, mas provavelmente seriam uma âncora para ele, ou até mesmo um estorvo, já que viajava pelo mundo agora, retornando apenas quando era requisitado pela Clave algumas vezes, por isso suas visitas são raras e geralmente com segundas intenções – geralmente mais importantes do que o natal. Mas Micca queria que uma vez, ao menos uma vez, ele a tivesse convidado, mesmo sendo obrigada a recusar a oferta. Ela queria provar que tinha uma certa liberdade, uma chance de poder parar com tudo sem sofrer as consequências, assim como ele: continuar sendo Caçadora de Sombras, mas não exercer seu serviço de fato.

O sangue angelical em suas veias as vezes parecia mais maldição do que benção. Era como se tivessem dito: ótimo, nasceu com sangue de anjo, sua vida se resumirá a matar demônios, negociar com feras do submundo e matá-las também – mas apenas quando irritarem você –, e claro, sempre arriscar sua vida pelos mundanos, que viverão sem saber que você existe!

Ela provavelmente tinha algum problema patológico, algum defeito. Pelo que sabia, os Caçadores de Sombras devem amar o que fazem, devem se amar, afinal, eles nasceram com o propósito de proteger o mundo, e nada mais; e quem não era um Caçador de Sombras, ou não sabe sobre eles ou quer ser um deles. Mas ela era diferente e não sentia aquela necessidade de matar e correr atrás de riscos, simplesmente…não via sentido.

Quando quase brigou com a mãe para deixar que os acompanhasse até o necrotério fora levada pelo calor do momento, ou melhor, pelo tédio momentâneo. Porém, assim que se deitou na cama, ela havia ficado feliz por poder simplesmente permanecer ali, pensar em algo menos mecânico que manusear uma balestra, e até beber um café.

Mas ela, Miccaela Lightwood, podia fazer aquilo todos os dias? Obviamente não.

Ela era uma nephilim, e seu ponto final havia sido escrito antes de sua vida começar de fato.

— Micca…Micca!

O que foi?! respondeu, soando mais rude do que pretendia, mas não era como se gostasse de que a arrancassem de seus pensamentos abruptamente.

— Eles chegaram.— O rosto de Cara estava transfigurado em uma carranca nada convidativa, o que sempre fazia com que parecesse que usaria sua espada para decepar uma cabeça ou roubar o seu doce favorito. Pelo Anjo, elas eram tão parecidas!

Micca havia entrado pelo salão calmamente, mas a medida que se aproximava Caleb podia perceber o quanto não estava nada feliz por ter sido deixada de lado, e ninguém precisava ser seu parabatai para discordar disso. Mas ela também parecia estar ávida por notícias, e se Caleb a conhecia – e conhecia muito bem – sabia que logo sua curiosidade sobrepujaria o rancor…alguma hora; era difícil ter uma resposta precisa quando se tratava do temperamento da prima, que parecia estar em uma eterna e confusa mutação.

— Então, suponho que o “grande roubo” tenha sido um sucesso, certo? — perguntou por fim, colocando uma mecha do cabelo preto atrás da orelha.

Sua voz havia ecoado pela biblioteca e parecia ter ricocheteado nos livros de couro gasto e depois nas caixas de vidro dos exemplares raros, fazendo com que a imensidão do cômodo parecesse ter triplicado. Estavam sozinhos ali, e a luz pálida do céu fora convertida pelo grande vitral do Anjo logo atrás dele, fazendo com que sua sombra fosse contornada por tons claros de azul e amarelo levemente desbotados. Já havia desenhado aquele vitral três vezes, todas de ângulos e iluminação diferente, registrando a forma como ele deixava o cômodo mais misterioso e intenso, como se tudo o que dissessem ali fosse sussurrado pelo reflexo do vidro no mármore lascado.

— Foi, sim. Entediante na verdade, você não gostaria.

Ela arqueou as sobrancelhas, mas não parecia duvidar do que ele dizia.

— Onde estão meus pais?

— Calma inquisidora — ele levantou as mãos em falsa rendição sentindo um pequeno sorriso sarcástico florescer em seus lábios antes que pudesse sequer contê-lo. A brincadeira havia começado quando eram pequenos e ficavam sentados o dia todo embaixo da macieira mais ao longe do solar dos Herondale, e sempre que voltavam para casa ( a maioria das vezes atrasados ) tinham de responder as perguntas dos pais, mais pela parte da mãe dele, na verdade, sobre onde estavam e o que faziam e se “fugiram para Brocelind para fazer alguma brincadeira perigosa com lobisomens de novo ”. Essa era a resposta apaziguadora que conseguia suavizar a expressão de todos, e até arrancava alguns sorrisos contidos; e daquela vez não havia sido diferente.

— Ok, sério Caleb, onde eles estão?

— Digamos que seus pais queriam uma noite romântica, e já que a Clave não passou mais informações não há porque eles não…

— Não, chega. — ela fechou os olhos pedindo para que ele parasse. —Não preciso de detalhes sobre isso, sei que eles se amam. Agora podemos ir ao Taki’s? Poríamos chamar a Cara para ir junto, ela anda muito…

— Eu tenho uma ideia melhor.— interrompeu rapidamente. Se escutasse a ideia toda de Micca e negasse, provavelmente ficaria furiosa. Interrompê-la antes de lhe negar algo era a melhor opção, uma das regras de sobrevivência que ele havia listado mentalmente. — Seus pais pediram para que nós investiguemos alguma coisa, antes que a Clave mande lacrar o apartamento da bruxa.

Essa é a sua ideia? Visitar a casa da…espera, ela era bruxa?— a maioria das pessoas arregala os olhos quando se surpreende, mas Miccaela apenas ergue de leve a sobrancelha esquerda. Caleb se perguntava se era ele o responsável por tê–la deixado sem expressão além de um sarcasmo remanescente e um sorriso sexy, já que um era o espelho do outro. Mas talvez tudo seja questão de sangue na vida dele.

— Então você não quer investigar?

— Eu não disse isso. Mas tem a Cara aqui, não seria legal deixá-la sozinha apenas com a Virgil de vigia…

Virgil era uma coruja cinza que Magnus Bane havia dado de presente para Cara duas semanas depois do falecimento de Church, bem, ao menos Caleb achava que fosse uma coruja. A garotinha havia chorado tanto que chegou a jurar que nunca mais teria outro gato que não fosse o antigo; Magnus, que até então havia levado um gato cinza persa, ao que parece transformou o felino numa ave de rapina rabugenta que só gostava de Cara. Caleb não tinha certeza se no fundo ela ainda era um gato, embora o animal ainda tivesse uns hábitos questionáveis como andar por debaixo da mesa durante o almoço e esperar que todos jogassem a comida de tia Isabelle – seu banquete particular e também de gosto questionável – por debaixo da mesa. Mas era inegável que a ave era uma ótima vigia, e de qualquer forma, isso parecia deixar a prima mais nova tão feliz que valia a pena tê-la por perto.

— Onde estão os gêmeos? — perguntou olhando em volta. Era estranho terem uma conversa particular sem que um dos Silverblood andasse por perto. Segunda geração de Caçadores de Sombras, parecia que se sentiam excluídos de certa forma.

— Não tenho certeza. Eles somem e aparecem quando querem, mas devem estar na cozinha roubando alguma coisa. — respondeu dando de ombros.

— Ao que parece Virgil cuida melhor desse lugar do que qualquer um aqui, então vamos logo. — chamou já indo em direção a estufa. Ele pôde ouvir Micca bufando logo atrás dele, e quase pôde mentalizá-la revirando os olhos.

Quando subiu a escada em caracol ouvindo o som metálico das botas contra os degraus, a primeira coisa que apareceu para eles foi um galho mal podado de laranjeira, que Caleb desviou em um gesto mecânico. Já havia memorizado a estufa assim como as linhas de sua mão. Desde que os pais morreram ele passou a ir todas as noites ali, antes para ver as flores desabrocharem a meia-noite – um segredo que o pai compartilhou com ele, e algo que não contara nem para Micca – e desde então ia para lá desenhar ou simplesmente passar a noite em claro encarando os vidros levemente manchados pela chuva ácida. Nunca para chorar, embora Micca provavelmente pensasse o contrário.

Era reconfortante, embora alguns achassem que se tratava de algum hábito louco, já que a estufa agora lembrava bastante a floresta de Brocelind, crescendo sem controle e impedimento.

Passaram por uma muda de madressilvas e iléas, que fundiam seus aromas e tornavam o ar leve e agridoce. Algumas curvas após a fonte de anjo mais do que maltratada pelo tempo encontrava-se um arbusto seco, e o brilho metálico da moto de Caleb denunciava sua localização por detrás das folhas.

Ela era provavelmente a única coisa nova no jardim, embora já estivesse ali há tempos. Não sabia ao certo como o pai havia conseguido a moto, exceto que agora era dele; um dos poucos objetos que herdou além de armas e espadas, portanto achava que era inútil…até aprender a pilotá–la. A primeira vez que voou com aquilo o fez esquecer de todos os problemas, e havia se tornado até algo boa para o combate contra demônios (nenhum esperava ser decapitado por cima apenas com o céu sobre suas cabeças); mas após conseguir dominar os portais e seus símbolos, simplesmente era um passatempo ultrapassado. Ele não tinha mais tempo para sair voando a esmo, tinha que treinar até conseguir atingir seu potencial por completo, e até isso acontecer, ele, Caleb Herondale, jamais vai descansar mais que o necessário.

—Ainda se lembra como pilotar essa coisa?

—Veremos.—respondeu dando de ombros, puxando a moto pelo guidom. A parte preta do corpo ainda brilhava como se icor percorresse cada canto do escapamento como veias. O cromo ainda permanecia reluzente, embora manchado em alguns pontos com cinzas e poeira.

—Será que a marca ainda faz efeito? Por que senão vamos morrer assim que pularmos.

—Acho que vou ter que fazer outra — respondeu apalpando até encontrar a parte áspera do corpo da moto, que havia sido queimada múltiplas vezes pela estela. — mesmo sem usá-la ela desbota rápido.

Alcançou o objeto no bolso da jaqueta, sentindo o adamas esquentar quando entrou em contato com a pele.

Aquele símbolo havia surgido de repente quando estava desenhando a moto em uma tarde chuvosa como aquela, porém com o céu ainda iluminado como fogo e o mormaço penetrando sua pele como agulhas em seus poros. Se lembrava do desejo de abrir os painéis de vidro para sentir a água e aliviar o calor, mas tinha quase certeza de que as juntas enferrujadas das molduras se quebrariam se tentasse. Estava realçando o sombreado nas rodas quando sua visão escureceu, como se uma cortina tivesse sido baixada, e o símbolo queimou diante dos seus olhos, lembrando vagamente um coração simplista; dois traços retilíneos cortavam uma curva no meio do desenho. O símbolo não era dos mais bonitos, mas significava uma coisa: inversão.

Assim que a estela terminou de queimar o metal a moto rangeu de forma aguda, como se gemesse de dor. Uma baforada de fumaça negra foi lançado contra o rosto de Micca, que tossiu desgostosa.

— Então? Agora que sua moto é um anjinho, deveríamos ir antes que a Clave lacre aquele lugar.

Caleb suspirou. Não estava exausto, mas símbolos como aquele eram cansativos de fazer; tal como se a estela fosse a extensão de um dedo, toda vez que fazia marcas poderosas elas pareciam ser escritas com seu próprio sangue. Poderia fazer um portal até o Bronx e acabar com aquilo de uma vez, mas queria estar calmo e relaxado caso tivesse que rastrear algum demônio. Além do mais, Bane já o havia alertado para usar portais apenas para longa distâncias, já que seu poder deixava um rastro no vácuo que poderia ser encontrado pelas criaturas e que, embora as chances fossem pequenas, poderiam ser abertos por elas, criando mais portais para aquele mundo. Ele também não gostaria de ser responsável pela segunda maior invasão de demônios da história.

Seus ouvidos estalaram de leve, e ele sabia que isso não era algo muito bom.

Portais.

A mente de Caleb pareceu trabalhar em alta velocidade, mas apenas conseguia sentir um raciocínio latente que ele não conseguia compreender. Peças se encaixavam sozinhas e ele não conseguia ver a imagem que se formava.

— Caleb, você está bem?— a doçura e a preocupação na voz da prima conseguiram arrancá–lo de seu transe. Micca nunca falava daquele jeito.

— Claro, claro, eu só…acho que tem algo errado.

— Sério? Eu achava que assassinatos misteriosos de bruxas inocentes acontecessem todo dia por aqui.— respondeu ela.

— Não, minha cara amiguinha sarcástica. Há algo realmente errado, uma relação com tudo o que anda acontecendo nos últimos meses, apenas não consigo raciocinar direito.—rodou sobre os calcanhares de forma pensativa, e ergueu o olhar para as folhas alaranjadas da macieira logo acima.

— Caleb…do que você está falando?

— Pense bem Micca: A Clave está escondendo algo de nós, os demônios estão aumentando cada vez mais, o assassinato de uma bruxa acontece sem qualquer explicação aparente, e tudo o que sabemos foi que alguém que consegue invocar demônios fez isso…lembra do que Emma Carstairs havia dito? Sobre achar que os pais dela foram mortos por saberem de alguma coisa? — as palavras foram despejadas sem controle em um fôlego só.— Acho que alguém sabe de algo Micca, algo que está trazendo esses demônios pra cá. E estão matando todos que de alguma forma sabem como impedir.

Silêncio. Caleb podia ver a mente de Micca trabalhar através dos olhos escuros e brilhantes, analisando seus argumentos.

—Você tem razão, podem estar interligados, mas não vamos descobrir se continuarmos aqui.— Micca pulou na garupa da moto, que baixou levemente com o impacto.— Céus, e pensar que tudo isso poderia ter sido impedido se tivéssemos ido ao Taki’s.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por terem chegado até aqui! Sei que os capítulos são compridos. Gostariam que dividisse eles em partes ou acham que estão bons assim? O que acham da caracterização das personagens e a personalidade de cada um? Qual o seu favorito até agora? Teorias? Não se sintam acanhados, podem me dar um oi a qualquer hora seja pelos comentários ou por mensagem, adorarei satisfazer esses seus "lados mundanos" ~ leitores entenderão!
Até o próximo capítulo ou antes disso
XOXO



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