Cidade das Portas Celestiais escrita por heeyCarol


Capítulo 10
Negociando com o Demônio


Notas iniciais do capítulo

Partindo do pressuposto de que o capítulo anterior não foi completamente/absolutamente/irrefutavelmente confuso, trouxe mais um para complicar mais a cabeça de vocês :)
Bom capítulo!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/658158/chapter/10

8

A sala era escura, sem muitas luzes além da antiga luminária a óleo na parede, iluminando pouco o cômodo e deixando-o parecido com as fotos antigas que haviam em alguns livros na biblioteca do Instituto, em um tom que pairava entre amarelo e ocre de acordo com as sombras. A mesa era de uma pedra escura, mas Emma duvidava que fosse ônix ou vidro de Nevrac, como murmurara Jem quando entraram. Joelenne Le Fae não era conhecida por sua riqueza, mas de certa forma era bem paga por seus segredos: recebia mercadorias do Submundo, desde Droga Demoníaca a armas de qualidade razoável que trocava por mais segredos e dinheiro suficiente para se sustentar até que precisassem de seus serviços outra vez. Uma mulher perigosa, dependendo de seu ponto de vista, alguém que luta de ambos os lados e nenhum ao mesmo tempo.

Jules avaliava um armário de vidro, onde em cada prateleira jazia os objetos que a mulher havia considerado preciosos demais para penhorar. Um anel de fada em formato de folha, um pequeno vidro com sangue vampírico, uma caixa prateada que lembrava muito uma antiga Pyxies, uma pedra grande, de aspecto leitoso e brilhante: adamas bruto.

— Será que é realmente confiável? — perguntou Jules. Estava apreensivo demais com a ideia de que poderiam estar em risco indo até ali.

— É a única chance que temos de saber o que aquela bruxa poderia querer conosco — murmurou — talvez até possamos descobrir a relação dela com aquela garota, Mackenzie.

— Achei que Tessa e Magnus já estivessem cuidando disso. — respondeu num tom preocupado. Emma não gostava de vê-lo assim, era como se alguma parte dele estivesse faltando. Jules era a confiança e a calma, uma brisa agradável do verão. Emma era quem devastava tudo com preocupações e falsa segurança. Eram um equilíbrio, mas agora a balança parecia mais desnivelada do que nunca.

— Não temos garantia de que Tessa conseguirá acessar as memórias de Mackenzie. Nunca tentou se Transformar em alguém que perdeu lembranças demais, e o feitiço que modificou a aparência dela pode interferir no processo. — argumentou Jem, não sem bondade na voz.

A cortina de contas roxas sacolejou atrás deles, e quando se viraram, se depararam com um garoto de no máximo dez anos. Tinha marcas roxas abaixo dos olhos azuis fundos, a boca apenas uma fenda na face rechonchuda demais. Havia algo de estranho nele, embora Emma não soubesse exatamente o que.

— Minha Senhora pode recebê-los agora — disse antes de se virar novamente e atravessar o arco da sala, seguido por Emma, Jules e Jem. Se depararam com um corredor incrivelmente comprido para a casa aparentemente pequena do lado de fora. Conseguia sentir a magia ali, misturada ao cheiro de queimado das luminárias a óleo presas à parede.

— Não estou gostando disso Em...— murmurou o parabatai — tem algo estranho nesse lugar.

Fazia sentido a casa ser enfeitiçada, afinal, com o que sabia, Joelenne provavelmente tinha muitos inimigos. Mesmo assim Emma não gostava daquela sensação inesperada também, o ar cada vez mais pesado se condensando ao temor de Jules e a ansiedade que tinha por descobrir uma pista importante sobre a morte dos pais. Arrepios na espinha vinham e voltavam a cada porta que passavam, uma mais fria, outra mais quente, uma completamente roxa e a seguinte rabiscada de branco, cinza e preto em letras ilegíveis.

O menino parou de repente, virando-se para eles.

— Escolham uma porta. Uma para cada.

Jem franziu o cenho.

— Queremos uma em que sua Senhora esteja. — falou, olhando em seguida para Emma, como que perguntando se sabia de algo. A ideia havia sido dela, porém nunca havia ido até lá de fato; Joelenne era conhecida por todo Submundo, era impossível todos os relatos serem mentira.

— Não podemos escolher apenas uma? Todos queremos ouvir o que ela tem a dizer.

O menino olhou para ela, e então Emma viu, logo abaixo do pescoço, uma marca desbotada. Não era alguma do Livro Gray, mas já ouvira falar; era uma marca de incorporação, onde o corpo marcado nada mais era do que um porta-voz, olhos e ouvidos para quem o marcou. Emma arqueou as sobrancelhas, um tanto impressionada; isso era usado de forma mais comum em países como Indonésia e Filipinas, fazendo jus ao apelido de zumbinismo.

— Minha Senhora não fala mais do que o necessário. Não cria dúvidas, responde apenas o que querem saber para aqueles que querem saber. Cada um de vocês quer algo diferente, e terão, mas nada mais que isso.

Jem abriu a boca para argumentar.

— Não adianta Jem. — falou, olhando em seguida para o menino. Imaginou de onde teria vindo, se morreria com Joelenne ou seria liberto algum dia, numa idade em que sequer lembraria dos pais… seu coração sufocou aquela sensação instantaneamente — Como podemos saber qual é a porta certa?

Tudo o que ele fez foi sorrir.

— Vocês vão saber.

— E se errarmos?— inquiriu Jules.

A criança ficou em silêncio, como se estivesse dormindo de olhos abertos. Ela não se importa…

— Vamos embora, isso foi um erro — Emma surpreendeu a si mesma, mas já estava dando meia volta… se deparando com outra parede. A cortina de contas havia sumido, assim como a sala atrás dela.

— Estamos presos. — declarou o obvio, sentindo uma pontada de raiva crescer dentro de si. Esmurrou e chutou a parede, mas tudo o que conseguiu foi um forte latejar nos punhos. Chutou mais uma vez.

— Em. Em. — parou ao ouvir a voz de Jules, grave, porém tranquilizadora. — Vamos apenas fingir que isso é um jogo de Tarot, ok? Vamos escolher uma porta.

Emma o olhou, e então se voltou novamente para as portas. Alguma delas deveria levá-los a Joelenne, e com ela, à saída. Caminhou pelo corredor sem olhá-las, apenas tentando sentir algo… Jem já havia desaparecido quando se virou para olhar Jules entrar na sua, a porta vermelha sem detalhes.

O toque foi delicado como as patas de um gato, e o calor antes latente começou a ficar mais forte. Era de um tom delicado de verde, com flores pintadas como se fossem iluminuras decorando a lateral; no centro, dois querubins com olhares afiados sorriam para ela, maliciosos, como que desafiando-a.

Emma rodou a maçaneta, que estava impressionantemente gelada para o calor que sentia pinicar a ponta de seus dedos.

— Emma Carstairs! — anunciou alegremente uma voz feminina, fazendo com que Em recuasse levemente com o susto antes mesmo de sequer entrar na sala — Oh, não se acanhe! Espero por você desde aquele terrível incidente em Malibu.

Desde a morte dos meus pais, corrigiu mentalmente o eufemismo, agora abrindo a porta por completo.

 

ξ

 

Um fio de cabelo? — perguntou Mack, sem poder camuflar a surpresa em sua voz. Depois de ouvir a história da rainha, Mack já não temia que espiassem sua mente, contanto que fosse indolor; sentira um estranho orgulho dentro de si durante o discurso misteriosamente apaixonado da fada, e com os argumentos dela, conseguiu se convencer de que o que supôs pela conversa dos Du'sien provavelmente era apenas ignorância por sua parte. Invocaram um demônio, a família dela tinha apreço pelo Submundo, poderia ser nada além de uma macabra metáfora das criaturas.

Mas não conseguia ver como um fio de cabelo a faria descobrir o que se escondia em algum canto obscuro de sua mente...

— Geralmente uso objetos para as transformações, mas não tenho certeza se algo que você usou com a outra aparência vá funcionar — respondeu Tessa Gray em um tom paciente. Mesmo com Magnus contando que ela era uma bruxa com mais de cem anos, era difícil imaginá-la sendo mais velha. Tinha cabelos castanhos brilhantes e uma pele branca e macia… mas os olhos, de um cinza bonito, conseguiam passar a ela a experiência de vida de anos apenas com um olhar, como se armazenassem tudo o que viram no decorrer da vida. Não são como os de Jem, reparou, os dele são mais vivos.

— Como se Transformar em mim a fará ver minha mente? Tinha um demônio ontem, ele… conseguia se transformar em pessoas também, isso quer dizer que também conseguia ver minha mente? — por favor não, por favor…

— Não, eu sou… diferente. Posso realmente me tornar uma pessoa, pensar como ela, agir como ela.

— Como um dopplegänger? — perguntou Mack, que não sabia se sua pergunta havia sido idiota ou perspicaz. Não tinha mais senso de realidade desde conheceu os Caçadores de Sombras.

— Algo bem parecido — sorriu Tessa — mas eles são apenas ficção. Não precisa ficar envergonhada querida, minha ascensão ao mundo das sombras também foi confusa e um tanto conturbada. — Mack viu o breve olhar que ela depositou em Caleb no canto da sala, que parecia ouvir pacientemente uma Micca ávida por respostas. — Mas creio que logo se acostumará. Tem muitos livros que pode ler, vou me encarregar de achar um códex para você.

Mack assentiu timidamente. Decidiu que gostava de Tessa e do jeito tranquilo e simpático como a tratava.

— Agora vamos descobrir quem é você. — disse ela, assumindo uma postura ereta. Tessa fechou os olhos, uma pequena ruga despontando em sua testa representando sua compenetração. Desviou o olhar para Caleb apenas um instante, se deparando com os olhos verdes dele avaliando-a de forma misteriosa; a marca em seu braço desbotara algumas horas depois de tê-la feito no dia anterior, agora deixando apenas finas linhas camufladas em sua pele.

Antes estava decidida a não acreditar em qualquer coisa que ele lhe dissesse, embora estivesse igualmente apreensiva com as verdades da rainha, mas a marca…Estheroburis, recordou-se, o mesmo nome que veio a sua mente na hora em que ele terminara de desenhar. Sabia que Caleb falava a verdade, e de alguma forma conseguia sentir a força que o desenho possuía, infiltrando-se na mente dele para interceptar as mentiras e causar uma dor causticante se as contasse, o que também a impediu de fazer as perguntas que queria, com medo do que poderia acontecer.

Quando voltou-se para Tessa já não via mais a bruxa de olhos cinzas e cabelo castanho. Ela havia encolhido perceptíveis quinze centímetros, e fios loiros caíam suavemente sobre seus ombros; Mack não pôde encarar os próprios olhos quando Tessa a fitou. Eram de alguma forma frios e intensos, como as ondas de um oceano se quebrando contra uma costa congelada.

— Acha que conseguiu Tessa? — Caleb perguntou aproximando-se de Tessa para avaliar o trabalho.

— Eu… não sei. Não vejo nada.

Mack só reparou que havia prendido a respiração quando finalmente expirou, em um misto de decepção e alívio; parece que ainda não estava tão confiante quanto pensava, afinal.

— Qual é o seu nome? — perguntou Micca, juntando-se a eles. Magnus observava tudo com seus olhos felinos, à distância.

— É tão confuso, — declarou Tessa — me chamam de tantos nomes. Mackenzie Di Breau, Mackenzie Ravennox… — suspirou — não está funcionando. Têm de perguntar coisas realmente relevantes e que de alguma forma tenham uma resposta mais precisa, caso o contrário só posso responder isso. Nomes sempre são muito vagos.

Caleb a olhou, o verde de seus olhos tão brilhante que Mack quase podia ver o reflexo de todos os pensamentos que ele forjava por detrás deles.

— Mack, você deve perguntar.

Mackenzie piscou.

— Como eu…?

— Caleb tem razão. — Magnus falou, mas não como se tivesse gostado de tê-lo feito — Apenas você tem dúvidas relevantes. Será como uma troca de informações; se perguntar o que te deixa mais apreensiva ou em dúvida, talvez consiga recuperar alguma coisa de você, e então Tessa poderá fazer uma outra pergunta, que desbloqueará esta versão de você — Magnus a indicou com um floreio entediado.

Mack se virou para Tessa, sem saber ao certo o que perguntar. O que gostaria de saber que os outros pudessem ouvir?

— Uma estela, você se lembra de uma estela?

Micca a olhou confusa, mas se voltou para Tessa quando esta descreveu a estela da qual se lembrava.

— Adamas com o cabo esculpido em forma de asas, era da minha mãe.

Mack sentiu o coração descompassar quando ouviu. Minha mãe…

— Quando foi a última vez que viu a sua mãe? — perguntou Tessa.

Mack se concentrou, mas tudo o que viu foi escuridão. Abriu os olhos com uma pequena lamúria, voltando-se para Caleb.

— Eu não consigo. Já havia me lembrado da estela, mas não da minha mãe. — nem sequer pensei na minha mãe este tempo todo, pensou sentindo a bile subir pela garganta trazendo consigo um gosto amargo que pareceu consumi-la; por que lembrava palavras e imagens sem nexo quando tinha coisas mais importantes para saber?

— Os grimórios — falou alguém no fundo da sala. Elizabeth e James Silverblood assistiam a tudo por detrás das sombras das prateleiras da biblioteca, pesquisando em livros sobre perda de memória e feitiços; bem, Elizabeth estava, mas James parecia mais interessado em fuzilar Mack com o olhar. Magnus havia começado a pesquisa também, mas depois que declarou em voz que alta que “O Alto Feiticeiro do Brooklyn não precisava de todo aquele trabalho e experimentos são definitivamente mais divertidos” as páginas do seu se viravam sozinhas na mesa com algum feitiço aparentemente simples. — dizem que há marcas que podem recuperar memórias perdidas. — continuou Elizabeth — O Livro Gray é seu Magnus, porque não podemos usá-lo?

— E roubá-lo da Clave? Tsc, estes são meus planos para o mês que vem, já estou cometendo muitos crimes neste.

Miccaela pareceu surpresa.

— Você deu o Livro Gray para a Clave?

— Óbvio que não. Por que acha que estou tão frustrado hoje? Não foi por falta de glitter. Ele seria perfeitamente útil. Mas desde o problema com as barreiras eles “pediram emprestado” e o pegaram; para ser menos vergonhoso vamos fingir que eu misericordiosamente os deixei usar, mas não acho que têm intenção de devolver.

— Era de propriedade dos Caçadores de Sombras, se estou certo. — argumentou James, que levou uma cotovelada da irmã.

— Ah, posso lhe garantir que era meu. — incitou Magnus, faíscas azuis já dançando por entre seus dedos.

Mack deixou os olhos vagarem pela sala em busca de apoio, mas Micca estava consternada murmurando algo para si mesma, enquanto James falava alguma coisa em outra língua; Elizabeth pediu para que parasse, Magnus respondeu James na mesma língua, deixando o Caçador vermelho de raiva. Então seus olhos pousaram em Caleb, debruçado na mesa próxima à janela com Tessa ao seu lado, ainda com a sua aparência, observando os movimentos cuidadosos da mão dele sobre a contracapa de um livro.

Saiu do meio da confusão discretamente, embora achasse que haviam se esquecido dela tal como fizera com Caleb e Tessa, e foi em direção a mesa. O desenho era negro contra as páginas, uma grande espiral triangular que parecia formar um labirinto simples.

Tessa fraziu o cenho, fitando Mack com um olhar que não soube decifrar; por algum motivo ainda não conseguia pensar que ela era uma cópia idêntica de si. Franziu as sobrancelhas como que perguntando o que estava errado quando ouviram o estrondo, virando sua cabeça tão rápido para ver que sentiu que quase quebrara seu pescoço ao fazê-lo. Dezenas de livros se encontravam caídos no chão, a maioria com as páginas dolorosamente voltadas para baixo, amassadas; o peitoral de Magnus subia e descia enquanto James Silverblood sorria, a adaga na mão. Tessa bufou, já não mais transformada em Mackenzie. Era a verdadeira Tessa, alta, morena e indignada.

Senhores — falou exasperada. Os olhares de James e Magnus se direcionaram instantaneamente para ela — podem se matar em outro lugar, mas não em uma biblioteca. Olhem o que fizeram com os livros… Magnus, pensei que fosse mais maduro do que isso, e você — ela apontou para James — pare de ser uma criança mimada.

James abriu a boca para falar algo quando Elizabeth o olhou, e foi o suficiente para que se calasse.

— Peço desculpas. — falou a irmã, recebendo de Tessa apenas um aceno e de James uma careta, como se tivesse levado um tapa. — Acho melhor sairmos daqui, não concorda James?

— Não.

— Que pena — ela agarrou seu braço e o puxou para fora da biblioteca, fechando a porta com um estrondo. Mack se sentiu mal por Elizabeth; reparara no quanto os irmãos pareciam deslocados no grupo, mas a culpa era de James, integralmente detestável, e ela, fiel o suficiente para não abandonar o irmão, se tornava um alvo latente da raiva que ele causava.

Voltou o olhar para os outros, em silêncio.

— Então — Magnus quebrou o silêncio batendo uma palma, enroscando os dedos logo em seguida, como se estivesse esperando para agarrar alguma coisa — creio que não tivemos muito sucesso em nossa pequena missão.

— Não acho que seja verdade.— se pronunciou Tessa, embora parecesse confusa.

— O que quer dizer? — perguntou Mack, a ansiedade pesando em sua garganta. — Se lembrou de alguma coisa?

— Bem… não tenho certeza do que é, mas tenho medo de estar certa. — suspirou, fechando os olhos como se estivesse avaliando as palavras — Parece que você é poliglota.

Mack deu de ombros.

— Por que isso seria tão ruim? Não é nenhum segredo eu falar espanhol.

Tessa repuxou o canto da boca, parecia com medo de sorrir.

— É realmente muito ingênua… não é do espanhol que estou falando, nem qualquer outra língua mundana.

Sentiu a espinha enrijecer e seus músculos tensionarem.

— Tessa, você acha que ela…? — Micca começou, olhando para Mack. Seus olhos negros carregavam um pequeno temor misturado ao sentimento de pena de quando se vê um animal ferido e não tem como ajudar. Engoliu em seco.

— Repito, não tenho certeza, mas… Mackenzie se lembra de nomes quando vê as marcas, nada que tenha sido ensinado ou que eu já tenha ouvido falar. Talvez os verdadeiros nomes delas.

— Ela fala a língua dos anjos. — completou Caleb, seu tom de voz indecifrável.

ξ

Joelenne sorriu quando terminou, apoiando-se na mesa em expectativa, esperando que Emma pudesse falar algo. O que posso dizer? Acabei de descobrir que meus pais foram mortos pela própria Clave.

— Tem certeza… de todos os fatos, de tudo? — perguntou sentindo a língua dormente em sua boca, como se tudo não passasse de um sonho amargo. Se lembrava de quando tinha doze anos, parada no gabinete de Jia Penhallow e olhando em seus olhos quando ela disse que o caso estava encerrado. Não era possível que estivesse encobrindo uma operação obscura, era?

— Eu já lhe disse criança…

— Não sou uma criança — corrigiu Em pela segunda vez durante toda aquela conversa. Joelenne tinha alguns fios grisalhos em meio ao cabelo preto e um rosto de pele escura em formato de coração, algumas rugas expressivas marcando a lateral de seus olhos. Devia ser no máximo dez anos mais velha que Em, e não era o suficiente para chamá-la daquele jeito, embora se sentisse tão incapaz quanto o que o apelido sugeria.

Senhorita Carstairs, minhas fontes são completamente confiáveis, mas não posso lhe vender confiança, esta quem tem de ter é você, eu já lhe contei tudo o que sei. Os fatos não mentem, a Clave os achava perigosos.

— Um segredo os tornou perigosos…

— Um segredo não, uma descoberta. Quando se descobre que um anjo falhou, que um demônio antigo supostamente destruído está retornando para se vingar de todos… essas são coisas que com certeza devem ser eliminadas antes que causem um alarde.

Isso. Não. Justifica. Nada — respondeu entredentes. Em sentia os punhos fechados sobre o colo, as unhas praticamente rasgando as palmas; aquela sensação era extremamente familiar, a raiva, a incapacidade. Se sentia novamente uma garotinha em Idris, agarrada à sua espada e se permitindo chorar, jurando que seria a última vez.

Não, não vou chorar agora.

— E no entanto, você ainda está viva. — pronunciou as palavras com cuidado.

Joelenne apenas deu de ombros.

— Em meu trabalho não tenho amigos ou inimigos. Apenas aliados perigosos e menos perigosos. Os que me querem morta são inimigos dos que me querem viva, o trabalho sujo fica com eles.

Como se gritar segredos de Estado a quem pagar mais fosse um trabalho limpo.

— Ainda não entendo como um anjo pode ter falhado. — mudou de assunto, focando o olhar em algum ponto da sala. O pequeno gabinete de Joelenne era todo de madeira clara, com quadros mostrando diferentes cenários. Um parecia representar um por do sol no Lago Lyn de forma quase abstrata, enquanto o da esquerda parecia ter sido uma fotografia tirada no próprio inferno. Entre os dois uma prateleira tinha intercaladas entre os livros caixas de tamanhos variados que mais pareciam alguma decoração obsoleta, e algumas máscaras vudus as encaravam com olhares mortos.

— Não acho que tenha sido necessariamente uma falha. Ouso pensar que pode ter sido proposital…

Emma olhou para Joelenne como se estivesse louca.

— Claro, um anjo teve piedade do demônio que condenou a humanidade, se fosse assim também teria tido piedade dos meus pais, não acha?

— Do demônio, não, do anjo que condenou a humanidade. Se bem que condenação não é a palavra certa; chamaria de igualdade, uma tentativa de abrir nossos olhos.

— Me diga logo sobre a garota para que eu possa ir embora. — mandou, ignorando os absurdos que a mulher dizia. A expressão no rosto dela escondia um certo triunfo por ter irritado Emma, conseguia ver isso.

— Não é isso o que realmente quer saber.

Eu — Emma bateu a mão fortemente contra a mesa, gerando um estrondo que surpreendeu a ela mesma, mas não mudou a expressão — quero que responda o que está acontecendo. Por que, de repente, uma garota aparece disfarçada e atacada por demônios sem saber o próprio nome; quero saber o porquê da Clave estar fazendo operações secretas nas barreiras e que droga está acontecendo lá; quero saber o que, pelo Anjo, o que não estamos vendo.

Joelenne sorriu, e Emma teve de se controlar para não esbofetá-la.

— Meu tempo é curto e minhas informações, preciosas. Se quer mais de mim tem de me dar mais.

Em procurou mais da droga demoníaca no bolso, pegando outro pequeno pacote e jogando-o na mesa, impaciente.

— Me desculpe, acho que já tenho muito disto. Se quiser uma informação realmente útil… posso trocar por essa espada. Uma arma de família possui preços altos no mercado negro.— Joelenne indicou com o queixo a espada presa às suas costas. Em fitou de esguelha o cabo da lâmina sobressaindo por entre suas omoplatas, a empunhadura revestida de couro negro e macio pelos anos de uso, a última lembrança que guardou dos pais.

Isto definitivamente não é uma opção.

Fitou os olhos da mulher. Eles guardavam um brilho cruel atrás de si, desafiando Emma, que não demorou nem dois segundos para perceber que se tratava de uma avaliação; Joelenne queria saber até onde ela estava disposta a ir para ouvir o que tinha a dizer, queria descobrir o preço de seu conhecimento.

Mas Emma precisava das informações para que fossem libertos do cerco da Clave e ela e Jules pudessem visitar Tavvy. Tinha que fazer algo, por Jules.

Agarrou o cabo da lâmina lentamente, ouvindo o som do aço sendo desembainhado. Joelenne sorriu de forma maligna quando viu o brilho da lâmina passear em frente aos seus olhos, enquanto Em fazia movimentos preguiçosos, sem a mínima vontade de colocá-la a mercê daquela mulher.

— Cortana...— falou a negra — definitivamente uma bela arma.

— É, realmente. Fiz questão de mantê-la sempre muito bem afiada, para jamais errar um único golpe — murmurou para a arma como se estivesse conversando com uma velha amiga. E de certa forma, era exatamente isso que sentia, mesmo agora, quando em um movimento rápido a apontou para o peito de Joelenne. Não era algo que costumava fazer com frequência; já havia passado o tempo em que se deixava levar pelo impulso. Mas sentindo o peso de Cortana enquanto a empunhava fazia aquilo parecer a coisa certa a se fazer, a sensação de estar fazendo tudo aquilo por um bem maior fazia seus ombros ficarem mais leves e uma descarga de adrenalina percorrer seu corpo. — Gosta dela assim? — perguntou sentindo um inacreditável sorriso presunçoso florescer em seus lábios.

Joelenne conseguia sustentar o mesmo sorriso, porém de forma muito mais irritante.

— Acha que é a primeira a me ameaçar? — ela soltou uma risadinha pelo nariz — Não cedo tão facilmente.

— Algo me diz que cede sim, caso contrário ainda não estaria viva.

Por um segundo, o sorriso dela enfraqueceu.

— Sempre aprendo com o cliente anterior, senhorita Carstairs. A cada nova tentativa tomo novas precauções, e, desta vez, foram os zumbis. — Joelenne ergueu os cabelos do lado esquerdo, revelando uma marca negra sobre a pele escura, a mesma do garoto do corredor. — Eu gosto particularmente desta aqui. Era uma bruxa que morava na Geórgia junto de seus quatro filhos. Um deles em especial adorava saber a localização de entradas para o Reino das Fadas, que ela — Joelenne indicou seu corpo com o próprio queixo, aliás, um corpo que sequer era dela. — insistia em apagar da mente dele. Um dia, no entanto, as dívidas se acumularam e ela se ofereceu como escrava no lugar do garoto. Ela tem poder suficiente para que eu possa me defender.

Emma, inconformada, aproximou mais a espada, sentindo a carne macia por debaixo dela.

— Mas tenho certeza de que a dor você sente. Já estudei essas marcas, sei como funcionam.

O sorriso da mulher morreu no ato. Agora seus olhos estavam duros, encarando os seus castanhos a fim de ver se seria capaz de cumprir a ameaça. Em jamais seria capaz de ferir um inocente, por mais que julgasse necessário, porém, aquela mulher que se apossava do corpo de mães e crianças não se encaixava no termo, e a bruxa pareceu perceber isso.

Depois de alguns segundos, Joelenne suspirou, derrotada.

— Eu poderia sair deste corpo agora e deixar você falando sozinha, mas devo admitir que também estou curiosa. Não sei nada sobre esta garota, mas quero saber. O Submundo está em polvorosa por causa dela, qualquer informação que possa ser cochichada pelo mundo das sombras sempre é de interesse daqueles que querem ter status, e essas pessoas pagam muito bem, aliás, bem melhor que vocês. — lançou um olhar de desdém para a lâmina — Então eu proponho um acordo.

Sem abaixar a lâmina, Emma questionou.

— Que acordo?

— Darei uma pista a vocês, uma pista realmente útil, contanto que assine um contrato para mim, um contrato selado por magia, já que não posso contar com sua boa fé, de que me revelará o que descobrir da garota e o que vocês têm até agora. Isto inclui nome, descrição da aparência, como foi encontrada e quem já a contatou de alguma forma. E a partir daí farei minhas próprias pesquisas.

— E no que, exatamente, esta pista ajudaria?

— Existe apenas um feiticeiro que conheci cuja especialidade é selar a mente das pessoas. Ele está desaparecido há um tempo e, infelizmente, não sei como quebrar seus truques, mas sei quem o conhecia o suficiente para saber. Se acredita que essa garota realmente sabe de algo, direi a localização dele.

Emma ponderou por um instante.

— Este contrato ajudará mais a você do que a mim, não acho que gostei dele. — colocou a mão livre na cintura — Aceito informar o que descobrirmos e o que já temos, contanto que você também me diga o que descobrir sobre o assassinato da bruxa em Nova York, e entregar todos os nomes que tiver para que eu possa seguir com minhas investigações.

Joelenne grunhiu em satisfação.

— Você realmente sabe como negociar, Emma Carstairs — a mulher estendeu a mão quando Emma baixava a espada — Acho que temos um acordo.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Hey! Obrigada por ter chegado até aqui. Espero que tenha gostado do capítulo, lembrando sempre que aceito críticas, sugestões e ameaças leves, assim como torço pra história não estar confusa. A Joelenne foi inventada por mim e ainda não está completamente desenvolvida, portanto não vai ter qualquer conexão com os livros em especial, embora ainda vá aparecer, como devem ter reparado.
Ah, antes de ir, minhas aulas já começaram, mas vou tentar dedicar todo o tempo possível para a fic.
XOXO



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Cidade das Portas Celestiais" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.