Left Behind escrita por Khaleesi


Capítulo 9
Capítulo 9 - Not Only Good


Notas iniciais do capítulo

Olá! Eu sei que estou um pouquinho atrasada, era pra ter postado ontem como prometido, mas enfim... Antes tarde do que nunca!
Esse capítulo ficou um pouco mais leve e parado, mas prometo que o próximo vai ser agitado!

Enjoy ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/658087/chapter/9

Capítulo 9 – Not Only Good

 

E L L I E

 

As imagens borradas passavam por minha mente de maneira desordenada e inconstante. Acordei em um veículo em movimento, caída sobre Sam e ao lado de pessoas desconhecidas.

— Ellie? —chamou minha irmã. — Ei, fique comigo.

Minha visão oscilava e a lateral de meu abdômen ardia como se estivesse em brasa. Então de súbito apaguei novamente. Quando enfim abri os olhos estava sendo carregada para fora do carro. Sam me apoiava por cima de seu ombro com a ajuda de um garoto asiático. Tive breves relances da conversa na estrada e lembrei-me brevemente do garoto parado ao lado do outro homem.

Ambos me guiavam por um longo pátio asfaltado e cercado por grades. A frente andava uma mulher de cabelos curtos e um velho de muletas. As pessoas falavam agitadas, mas eu não conseguia distinguir suas palavras. Sentia-me fraca, mal conseguiria andar sem o auxílio de Sam e do garoto. Adentramos um prédio, descemos escadas e deixei-me levar por corredores escuros até que passamos por um portão com grades de ferro e o som da ferrugem nas dobradiças me trouxe de volta por alguns segundos. Passamos por um espaço com algumas mesas e prateleiras, no qual encontravam-se outras quatro pessoas que nos olhavam confusos.

— Ela está ferida —anunciou uma voz feminina.

— Por aqui! — chamou outra voz.

Seguimos por um corredor repleto de celas, então me dei conta de que estávamos em uma prisão.

— Ellie, aguente firme — pediu Sam ao meu lado.

— Deitem ela aqui — disse outra voz desconhecida, então ambos me guiaram para dentro de uma das celas e depositaram-me em um beliche velho. O leve impacto com o colchão foi o suficiente para causar uma pontada aguda de dor no ferimento. Levei a mão até o rasgo em minha pele involuntariamente, retorcendo a boca.

O homem velho depositou as muletas ao lado do beliche e se aproximou mancando. Pude ver brevemente seu rosto bondoso repleto de rugas causadas pela idade, cabelos e barba brancos e roupas surradas, típicas de fazendeiro. Retorci-me na cama após mais uma pontada no ferimento.

— Beth, preciso de toalhas limpas, uma agulha e linha — pediu o velho. Suas palavras ecoaram em minha mente... Agulha? Linha?!

O homem levantou minha blusa na altura do ferimento e analisou-o com um semblante preocupado.

— Você pode ajuda-la? — ouvi a voz de Sam.

— Sim, ela vai ficar bem — informou o fazendeiro. — Mas preciso que a segure.

Sam aproximou-se e sentou-se no colchão, segurando minha mão.

— Ouviu isso? Você vai ficar bem — eu podia ver nitidamente o desespero estampado em suas feições.

Sem mais demoras uma jovem loira adentrou a cela acompanhada de uma mulher de cabelos grisalhos, ambas carregando toalhas e suprimentos médicos. Engoli em seco quando entregaram tudo ao homem, que manuseou a linha e a agulha entre os dedos.

— Isso vai doer — avisou ele, erguendo a agulha preparada.

— Não... — esforcei-me para dizer, balançando a cabeça em negação. Tudo que não queria era mais dor do que já estava sentindo.

— Ellie, você precisa disso — pronunciou-se Sam. — Você consegue.

Ela segurou meus braços com força enquanto alguém segurava minhas pernas e um desespero momentâneo tomou conta de mim. Eu estava com medo, muito medo.

A mulher de cabelos grisalhos aproximou-se com uma toalha molhada e limpou o excesso de sangue. Fechei os olhos com força tentando ignorar o ardor repentino. Assim que ela se afastou, foi a vez do homem, que com agilidade e precisão furou a pele ao redor da ferida e começou a sutura. Retorci-me na cama, não conseguindo segurar os gritos na garganta. Seguravam-me com força, mas não era o suficiente para me conter. Era assustador sentir a picada da agulha e a linha atravessando minha pele.

— Ellie! — disse Sam em meio aos meus gritos. — Você precisa ficar quieta!

O homem parou o processo.

— Não consigo...

— Não vai dar certo se ficar se mexendo assim!

Puxei o ar com força para dentro dos pulmões. Sentia o suor escorrendo por minha testa e um ardor intenso em meu abdômen.

— Termine logo essa droga então... — ralhei.

— Ellie, ele acabou de começar — informou Sam com pesar. — Ainda não fechou o primeiro ponto.

Engoli em seco e olhei diretamente para o velho.

— Faça isso o mais rápido que conseguir — pedi com a voz fraca — Não pare.

Ele balançou a cabeça positivamente, então dirigi o olhar a Sam que compreendeu, e segurou-me com força contra o colchão. Novamente a agulha perfurou minha pele. Reuni o máximo de esforço que pude para conter meu corpo de mover-se involuntariamente em reação à dor, mas era impossível. Eu gritava e contorcia-me, perdendo totalmente o controle, até que a dor foi mais forte que tudo e me fez perder os sentidos e apagar totalmente.

A luz solar iluminava fracamente o aposento quando definitivamente despertei.  Ainda estava deitada em um beliche, minhas costas doíam devido ao desconfortável colchão. Ao lembrar-me da palavra dor levantei a blusa e verifiquei o ferimento. Estava enfaixado e provavelmente suturado. Já não sentia tanta dor, apenas um repentino desconforto. O pior passara.

Ergui levemente a cabeça, deparando-me com Sam encolhida diante das grades, olhando para o lado de fora. Com muito esforço levantei-me lentamente da cama, mas assim que meu corpo ergueu-se alguns centímetros minha visão escureceu, então decidi que era melhor permanecer deitada. Sam pareceu ter ouvido tudo, pois virou-se para mim , nada surpresa.

— Não pode se levantar ainda.

— Não me diga — ironizei, sentindo as palavras rasgarem minha garganta. Só então havia percebido como estava com sede, e faminta.

— Como se sente? — perguntou ela.

— Melhor impossível — respondi, suspirando pesadamente. Dei-me conta de que não fazia ideia de onde estava exatamente e de quem eram aquelas pessoas que haviam nos ajudado. — O que aconteceu? Quem são aquelas pessoas?

— Não faço ideia — ela riu sem humor. — Depois que você apagou não tivemos muito tempo pra conversar... Mandaram entrar no carro então viemos direto pra cá.

— Foi muito ruim, hein?

Trocamos um olhar de cumplicidade, repensando o quanto havíamos nos ferrado tanto em tão pouco tempo.

— Treze pontos — informou ela. — E muito sangue. Disseram que a bala fez um belo estrago, mas que vai ficar bem.

— Uau — exclamei com frustração, lamentando internamente por aquilo ter acontecido justamente comigo.

Parei por alguns instantes, tentando me lembrar exatamente do momento em que fora atingida. Estávamos como reféns de dois homens que provavelmente nos matariam cedo ou tarde quando Sam golpeou um deles, fazendo-o desviar a direção da arma para mim e disparar. Mesmo de raspão, eu poderia garantir que levar um tiro fora a pior dor que passara em toda a minha vida; a sensação de ter a pele rasgada por um objeto metálico voando em alta velocidade contra seu corpo era indescritível. Com toda certeza detestaria repetir a dose. Recapitulei os últimos acontecimentos do ataque, chegando ao momento em que pulei nas costas do segundo homem, em uma tentativa falha de enforca-lo por trás, e acabamos rolando pelo chão e a situação voltou-se contra mim, até que ouvi o disparo de uma arma e em questão de segundos pude enxergar nitidamente à bala adentrando o crânio de meu agressor e saindo pelo lado oposto, estourando seus miolos e derramando uma chuva escarlate em meu rosto.

Olhei para Sam encolhida contra a parede e passei a vê-la de uma maneira diferente. Ela havia matado um homem. Mal conseguia imaginar como se sentira a respeito, e não tinha certeza de que conseguiria tocar no assunto sem deixa-la pior do que já estava.

— Estamos trancadas? — perguntei, analisando as grades de longe, que tinham saída para um corredor estreito cercado e um pouco mais à frente erguiam-se grandes janelas de ferro. Estávamos em um andar superior.

— Claro que estamos — informou ela. — Não confiam em nós para nos deixar soltas.

— Ótimo — reclamei. — Saímos de uma prisão para entrar em outra.

— Pelo menos estamos vivas — repreendeu ela. — Não se preocupe eles vão nos soltar logo. Não podem nos prender aqui pra sempre.

— Sam, não sabemos que tipo de pessoas eles são.

— São do tipo que salvam a vida de um desconhecido — lembrou ela. — Isso é suficiente.

— O Governador também salvou nossas vidas — retruquei. Ela parecia não ter uma resposta desta vez.

Após vários minutos em silêncio, ouvindo apenas as tais pessoas desconhecidas conversando no andar de baixo decidi me levantar. Apesar de tudo o que passara nas últimas horas sentia-me cansada de ficar descartada em um colchão duro, faminta e sedenta, esperando a boa vontade de estranhos.

Ergui-me da cama com cautela e repousei os pés no chão. Em seguida apoiei-me no suporte do beliche e me coloquei de pé lentamente. Aguardei até que a zonzeira momentânea parasse para que pudesse me movimentar, então dirigi-me ao portão e colei-me às grades tentando enxergar o lado de fora sem muito sucesso.

— Ei! — sacudi o portão. — Ei!! Nos tirem daqui!

— Para com isso — ralhou Sam, ainda sentada.

— Você quer sair daqui ou não?

Antes que ela respondesse uma garota loira apareceu acompanhada de um garoto que eu não havia visto até o momento. Lembrei-me da jovem que ajudara o velho fazendeiro e que provavelmente estava segurando minhas pernas enquanto ele trabalhava. Tinha feições finas e delicadas e olhos bondosos. Já o garoto trazia uma carranca crônica estampada no rosto, fitando-me com os olhos mais azuis e belos que eu já havia visto. Parecia ter a mesma idade que eu, porém era mais alto – o que era obvio, qualquer um era mais alto que eu – e trajava uma camisa xadrez, um chapéu de xerife que cobria os cabelos negros e trazia uma pistola preso ao coldre na perna. Ambos carregavam latas e garrafas d’água nas mãos.

— Desculpem por fazê-las esperar tanto — pronunciou-se a loira, sem jeito. — Devem estar com fome.

Ela passou dois enlatados de feijão já abertos e com colheres pelas grades da cela. Sam recebeu-as, e parecia não saber o que dizer. Em seguida o garoto nos entregou duas garrafas cheias com água.

— Obrigada — agradeceu Sam.

A garota loira assentiu.

— Vamos soltar vocês logo, não se preocupem — informou ela. — Rick, nosso líder... Não está com a cabeça no lugar por enquanto... — Pensei no homem que abordara Sam na estrada após atropelar os errantes. Com sua postura autoritária e voz decidida não era nada difícil imaginá-lo como o tal líder do grupo

Ela secou as mãos em um pano que trazia pendurado ao ombro e sumiu pelo corredor estreito. O garoto permaneceu no mesmo lugar, a mão repousando sobre a pistola no coldre.

— Qual é — insisti. — Não vamos atacar vocês ou coisa assim!

Ele balançou a cabeça.

— Não sabemos quem vocês são — então girou nos calcanhares e seguiu o mesmo caminho da loira, desaparecendo de vista. Bufei frustrada e sentei-me ao chão.

Sam estendeu um dos enlatados para mim e meu estômago retorceu-se ao sentir o cheiro dos feijões cozidos. Peguei a lata e mergulhei a colher enchendo-a com o alimento e levando diretamente à boca. O gosto não era dos melhores, mas os roncos sedentos vindos de meu estômago indicavam não se importar nem um pouco com isso. Em poucos minutos terminei a refeição, e não satisfeita desejei ter pego o peru selvagem antes de ter deixado a floresta.

Apanhei uma das garrafas e bebi quase metade do líquido refrescante em um só gole, deixando que escorresse por meu rosto e molhasse minhas roupas. Sam observou a tudo com divertimento.

— Até parece que estava perdida em um deserto.

— É mais ou menos isso — brinquei, voltando a garrafa a boca e bebendo mais alguns goles.

Satisfeita, depositei-a fechada sobre o chão e relaxei contra as grades de ferro. Só então havia parado para pensar em tudo que passara naquele curto espaço de tempo. Antes, quando éramos apenas Sam, meu pai e eu as coisas nunca ficavam tão ruins. Tínhamos nossos momentos de achar que nada daria certo, que não encontraríamos comida, água ou abrigo, ou que seríamos cercados por errantes e não haveria escapatória, mas no fim tudo sempre se acertava. Quando o papai estava conosco, as coisas estavam sempre sob controle, e agora, tudo parecia despencar cada vez mais, e nos soterrar com todos os desastres contínuos. Suspirei frustrada com o tamanho do buraco deixado pela saudade em meu peito. Uma angústia profunda começou a me tomar por dentro, mas ergui a cabeça e não permiti que ela me vencesse novamente. Se eu queria sobreviver não poderia ceder e chorar todas as vezes em que a tristeza me atingia.

Fui retirada de meus devaneios quando o garoto do chapéu voltou desta vez acompanhado da mulher de cabelos grisalhos.

— Devem estar querendo se limpar — disse a mulher. — Vamos deixa-las sair, uma por vez.

Sam e eu nos entreolhamos e ela indicou o lado de fora com a cabeça.

— Vá primeiro, você precisa mais.

Franzi o cenho, imaginando como estaria minha situação. O garoto puxou um molho de chaves do bolso e abriu a cela, liberando o espaço para que eu passasse, então trancou-a novamente.

— Se precisar de mais alguma coisa me chame — a mulher me entregou uma toalha velha, porém limpa. — Eu sou Carol, e este é o Carl, ele vai te mostrar o caminho até os vestiários.

Troquei um olhar com Carl que não parecia nada feliz em ter que me guiar pela prisão.

— Sinto muito, não temos muitas roupas que possam servir... A não ser que não se importe em usar os macacões da prisão — sugeriu Carol, com um sorriso brincalhão. Balancei a cabeça em recusa. — Certo, até mais então.

Ela virou-se e caminhou para a direção oposta, deixando-nos sozinhas com o garoto. Olhei para as chaves em sua mão, pensando que poderia pegá-las se fosse rápida o suficiente para desarmá-lo também...

— Nem pense nisso — disse Carl, como se lesse meus pensamentos.

—Não pensar em que? — disfarcei, e ele bufou.

— Vamos logo para os vestiários.

Ergui a mão indicando para que ele passasse.

— Mostre o caminho, chefe.

O projeto de cowboy virou-se e passou a caminhar pelo corredor com a mão colada ao coldre como se suspeitasse que eu fosse ataca-lo a qualquer momento. Descemos as escadas de ferro e deparei-me com mais celas, mas estas estavam abertas e guardavam os pertences das pessoas que vivam ali, que a propósito me lançaram olhares suspeitos quando passei, os quais decidi ignorar. Seguimos por passagens e corredores escuros; era incrível como tudo ali era cinzento e sem vida... Se ficasse mais do que alguns dias presa em um lugar como aquele enlouqueceria facilmente.

Paramos de andar e Carl empurrou uma porta à direita com o letreiro que indicava os vestiários. Adentramos o cômodo que parecia ser o único lugar preenchido com lajotas brancas e não concreto. Havia chuveiros de um lado do aposento, bancos de madeira e algumas prateleiras vazias e do outro, pias de ferro e espelhos manchados distribuídos pelas paredes. Carl apanhou um balde cheio com água ao lado dos bancos e depositou-o sobre a pia, então voltou à porta e encostou-se contra o batente, de braços cruzados.

— Você vai ficar aí olhando? — perguntei.

— Não esperava que eu fosse te deixar sozinha pra que pudesse fugir, não é?

Balancei a cabeça.

— Tanto faz. — Dirigi-me a pia e parei diante dos espelhos, assustando-me com meu reflexo. Estava totalmente coberta de sangue seco, de maneira que apenas meus olhos destacavam-se entre o vermelho que banhava minha pele. Abri o zíper do agasalho e retirei-o, jogando no banco de madeira mais próximo, e ficando apenas com a regata azul dos Yankees, aliviando-me por estar com ela quando fugira de Woodbury. Mergulhei as mãos no balde formando uma concha e ao enchê-las de água fechei os olhos e banhei meu rosto, esfregando cada centímetro de minha pele. Repeti o processo diversas vezes, tirando também os restos de algo pegajoso e coberto de sangue dos cabelos, até estar parcialmente limpa. Lamentei brevemente comparando o banho milagroso de Woodbury a um balde de água fria e uma toalha velha. Dirigi-me ao banco de madeira e sentei-me, pegando a toalha.

Olhei de soslaio para o lado, Carl esperava impaciente no batente da porta.

— Então... Há quanto tempo estão aqui? — perguntei, enquanto enxugava os cabelos.

— Não precisamos conversar — cortou ele.

— Só estou tentando tornar o clima mais agradável.

Ele suspirou, talvez ponderando se devia contribuir também.

— Há alguns meses — respondeu por fim, depositando uma mão no coldre e outra na cintura. Tive a impressão de já ter visto aquela cena antes... Aqueles olhos e feições...

—Você é filho do tal líder — supus e ele franziu o cenho.

— Como sabe disso?

— Eu não sei. Mas parece que acertei.

Vi um mínimo sorriso formando-se em seus lábios e tão rápido como surgiu, desapareceu.

— É... Só anda logo com isso — pediu, retornando à carranca.

— Eu fiz alguma coisa pra você não gostar de mim? — perguntei com toda sinceridade possível. Eu realmente não sabia se algo o havia irritado, mas seu desgosto por mim era mais do que visível.

Ele me lançou um olhar que não fui capaz de interpretar e não respondeu.

— Certo, vou fazer de conta que isso foi um não — falei e continuei a secar o rosto.

— Foi um não importa — retrucou ele. — Só vamos ter que te aturar até meu pai decidir botar vocês pra fora assim como fez com os outros.

— Outros? — repeti. — Do que você está falando?

Ele deu de ombros, e novamente não respondeu. Aquele garoto era um verdadeiro enigma, o qual eu gostaria muito de entender. Talvez o fim do mundo tivesse sido pior para ele do que aparentava? Muitas vezes às coisas pelas quais passamos nos mudam de uma maneira radical.

— Já entendi — continuei. — Você sofreu muito nas mãos do mundo e agora acha que maltratar os outros vai te fazer sentir melhor?

Se seus olhos fossem metralhadoras eu já estaria morta e enterrada a aquela altura.

— Você não sabe nada sobre mim! — vociferou ele.

Ponderei por alguns instantes que talvez eu tivesse ido um pouco longe demais.

— Certo... Me desculpe — ele pareceu se surpreender com minhas palavras. — Eu sei que eu não sei nada sobre você, eu só... — Suspirei. — A merda se espalhou pra todo lado e atingiu todo mundo, não precisamos ficar brigando e piorando as coisas.

Ele encarou o chão por alguns segundos, contrariado, mas enfim desfez a carranca e balançou a cabeça positivamente de uma maneira quase imperceptível. Ficamos em silêncio pelo que pareceu uma eternidade enquanto eu continuava secando os cabelos, rosto e pescoço, tentando tirar um pouco da sujeira das roupas também.

— Você disse que seu pai vai nos botar pra fora? — perguntei, quebrando o silêncio.

Ele riu sem humor.

— Não... Quero dizer, eu não sei — respondeu pensativo, ainda encarando o chão. — Falei por falar.

Assenti, balançando a cabeça. Talvez o cowboy irritadinho pudesse se redimir no fim das contas.

— Mas... E quanto ao seu pai? — Desta vez fui eu quem foi pega de surpresa. Fixei o olhar em um ponto distante, pensando em como responderia aquela pergunta, ou se ao menos conseguiria respondê-la. Por fim, baixei o olhar assumindo uma expressão triste e Carl pareceu entender. — Sinto muito.

— Não tem problema — enxuguei as últimas gotas de água do rosto e levantei-me, pegando o casaco. — Já terminei.

Minha tentativa de tentar tornar o clima mais agradável havia escorrido pelo ralo, e ao menos era culpa do cowboy carrancudo. Eu simplesmente não conseguia tocar naquele assunto com outra pessoa que não fosse Sam... Ainda não.

Carl balançou a cabeça e deixou o vestiário. Seguimos pelos corredores e blocos de celas novamente, passando pelo bloco C, onde subimos os degraus e o garoto abriu o portão da cela para que eu entrasse, dando vez para Sam se limpar. Ela me lançou um breve olhar antes de deixar a cela.

Deitei-me no beliche, entediada, cutucando o suporte da cama de cima. Um pensamento rápido passou por minha mente, então instintivamente levei a mão ao bolso da calça procurando pelo pedaço de papel amaçado, e para o meu alívio, lá estava ele. Graças aos céus eu não o tirara do bolso, um pertence a menos a se perder.

Puxei a foto velha para fora e desdobrei-a cautelosamente. Pelo que pareceram longos minutos vi-me perdida entre os sorrisos daquela família feliz, tão distante que ao menos parecia ter existido algum dia. Acariciei a imagem de meu pai com o polegar desejando que ele estivesse ali comigo, fisicamente, e não apenas impresso em um pedaço de papel como uma memória inalcançável.

O ranger da cela abrindo-se me despertou de meus pensamentos então sentei-me na cama quando Sam adentrou o aposento e o portão foi trancado novamente. Ela se aproximou lentamente ao ver-me com a foto entre com dedos, então sentou-se ao meu lado e encarou o chão por alguns segundos. Ficamos em silêncio até que ela estendeu a mão, pegou a foto e a observou entre os próprios dedos por alguns segundos antes de puxar o relicário da mamãe para fora da blusa e abri-lo. Surpreendi-me com a foto de nossa mãe jovem e bonita, nos abraçando quando pequenas como se fosse o maior prazer de sua vida. Sam segurou a imagem de nosso pai na foto e com a outra mão puxou as pontas do papel, rasgando-o ao redor de maneira que sobrasse apenas o contorno ao redor do papai. Ela encaixou o pedaço da foto no espaço oposto do relicário, antes vazio, então observou por alguns instantes as duas fotos lado a lado antes de fechar o colar e devolvê-lo para dentro da blusa. Senti-me aliviada ao saber que agora a foto estaria mais segura... Aquela era a última lembrança que restava dele, eu não aceitaria o fato de perdê-la também.

Estiquei o braço e peguei o pedaço rasgado da foto, onde a mamãe e nós duas sorríamos, com um buraco partindo a imagem ao meio... Exatamente como nos encontrávamos agora, com um buraco vazio e insubstituível deixado por nosso pai. Dobrei os restos do papel e depositei debaixo do travesseiro.

Já era tarde quando Carl apareceu diante da cela novamente acompanhado de Carol e carregando cobertas. Ele destrancou o portão e ambos nos entregaram os lençóis juntamente de mais enlatados.

— Estaremos bem ao lado se precisarem de alguma coisa — informou Carol gentilmente, então deixou o aposento. — Boa noite.

Carl esperou que ela saísse antes de me entregar um cobertor juntamente com uma revista em quadrinhos e uma lanterna.

— Caso fique entediada.

Olhei surpresa para o objeto, aquela era realmente uma atitude que eu não esperava, muito menos após a pequena discussão que havíamos tido mais cedo. Talvez fosse uma maneira sutil de pedir desculpas?

— Podia ter trazido mais cedo, não? — brinquei, arrancando um mínimo sorriso de seus lábios e lembrando-me de como ficara entediada durante toda à tarde.  — Obrigada.

Ele assentiu então deixou a cela, trancando-a ao sair.

Observei a revista com curiosidade por alguns segundos antes de me virar e me deparar com Sam sorrindo de lado, com as sobrancelhas erguidas.

— Tá olhando o que?

— Nada... — disfarçou ela. — Você faz amigos rápido.

Ela subiu para o beliche de cima, arrumando as cobertas sobre o colchão, e deixando-me pensativa. Amigos? Era estranho e até mesmo engraçado imaginar um amigo como Carl. Talvez fosse cedo demais para deduzir que tipo de pessoa ele era, mas pelo pouco que havia tido não conseguia imaginar que acabaria se abrindo e cedendo espaço para uma amizade. Mas afinal, era cedo demais para deduzir qualquer coisa, ao menos sabia se seríamos aceitas naquele lugar, ou como Carl dissera mais cedo, se seu pai nos mandaria embora.

Após o final do dia eu chegara à conclusão de que apesar de tudo, aquelas não eram pessoas ruins. Mas também não eram apenas pessoas boas. Eram sobreviventes. Todos naquele lugar provavelmente haviam passado por alguma situação que os mudou de uma maneira avassaladora, ou perderam muito para chegar até ali. É claro que desconfiariam de nós, nos manter presas em uma cela ainda era pouco se parassem para pensar no que as pessoas haviam se tornado, e do que eram capazes de fazer. Mesmo ainda estando presa em uma cela e sendo tratada como uma total desconhecida eu não tinha mais dúvidas a respeito; eu queria ficar naquele lugar. Queria a segurança daquelas grades e paredes e a companhia de outras pessoas... Apenas assim conseguiria superar o passado de uma vez por todas.

Com aquele pensamento deitei-me no beliche novamente, tirando os tênis e aconchegando-me entre os cobertores e lençóis. A luz fraca não era suficiente para iluminar as páginas da revista, então acendi a lanterna, agradecida por Carl ter se lembrado de trazê-la e comecei a folhear os quadrinhos. A história em si era bem infantil, e falava sobre um super herói desconhecido, mas não deixava de ser cômica e cativante. Sem ao menos perceber, acabei devorando as páginas mais rápido do que desejava, e com frustração descobri que não era um volume único, e que havia uma continuação a qual eu provavelmente não conseguiria ler tão cedo... A menos que Carl a possuísse seria quase impossível encontrá-la pelo mundo. Deixei a revista e a lanterna apagada de lado e deitei-me puxando as cobertas para cima do corpo e refletindo sobre o dia mais louco pelo qual já havia passado... Acordara em cima de uma árvore, saíra para caçar e acabara sendo pega por dois homens mal encarados que agora jaziam mortos graças a minha irmã, sem esquecer a parte em que fora baleada, para enfim terminar sendo levada para um presídio e ganhar uma revista em quadrinhos de um cowboy mirim mal humorado.

Nada mal, pensei, desejando nunca mais repetir a dose.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí gostaram do encontro de Carl e Ellie? Comentem aí, favoritem, acompanhem, obrigada, obrigada amo vocês, e até o próximo!

Só um obs aqui gente, Left Behind foi indicada no Emmy Awards TWD! Eu não estou acreditando ainda, serio to passando mal! Entrem lá no site ( https://docs.google.com/forms/d/1zxH1w9QqhDBo5tb5PdIQdkVue459uAcPSBBiJuv7fhk/viewform?usp=send_form ) votem por favor e vamos ver no que vai dar! Beijao!