Caleidoscópio de Retalhos escrita por Calisto


Capítulo 5
Ulisses




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Capítulo IV - Ulisses

"As ações dos homens são os melhores intérpretes de seus pensamentos"

James Joyce

 

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Peixes estava exausto.

Passara a noite anterior em claro, checando os registros dos alpinistas das cordilheiras de Kashmir, em vão. Não havia mais do que termos de responsabilidade e check-ins de turistas de toda parte. Sem o nome que foi usado para assinar os termos, seu progresso fora comprometido. Todos já haviam desocupado as mesas quando ele finalmente desceu para o café. Todos, menos Sagitário, que brincava distraidamente com os talheres.

“Hey, Peixes! Procurei você por toda a parte! Onde estava? Libra queria muito te esperar, mas, você sabe, ele é bem ocupado”, disse ele. Os cabelos negros estavam presos para trás num rabo de cavalo, emoldurando uma expressão animada e casual. Ambos os cotovelos estavam apoiados na mesa, para o horror de Libra, se ele estivesse presente.

Peixes sentira falta do amigo. Os últimos dias foram tensos, e ele era um dos únicos capazes de acalmá-lo.

“Desculpe, perdi a noção do tempo”, respondeu o mais novo. “Como foi a viagem?”

O rosto de Sagitário se iluminou com a pergunta, e mesmo se ele quisesse, teria sido impossível esconder o entusiasmo contido em seus olhos castanhos.

“Foi incrível! Queria que estivesse junto. Passamos por alguns vilarejos asiáticos, seguindo o rastro dos Caídos, mas não encontramos nada demais. Bom, pelo menos foi o que Libra disse. Os rios eram lindos, uma queda d'água mais bonita que a outra. E as pessoas eram tão simpáticas e cordiais. Seguimos para Oeste e paramos na cordilheira de Karakoran. Era uma paisagem espetacular! Só não gostei muito da ausência de vegetação. Não ficamos muito tempo por lá, porque os Caídos chegaram e tivemos que recuar. Voltaremos em três dias, porque...”

“Espere. Karakoran?” interrompeu Peixes, quase se engasgando com o café.

“Sim. Então, eles estavam em um grupo de quatro e tinham uma besta enorme. Libra disse que aquilo era uma hidra . Usam esses seres par....”

“Vou com você.”

A surpresa no rosto do moreno não podia ser maior.

“O quê? Peixes, você me ouviu? Mesmo Libra evitou lutar contra aqueles caídos. E eles tinham uma besta! De jeito nenhum vou te colocar em risco. Todos me matariam.”, devolveu ele, a voz exaltada, mais enérgica que o normal. Coçou a cabeça, apertou os lábios e continuou, “Por que quer ir até lá?”.

“Ouvi que é uma vista incrível. Também quero ver como lidam com as diferenças culturais.”, respondeu o pequeno, sem pensar muito. Sagitário franziu o cenho, brincando com o cabelo.

“Talvez não seja uma ótima ideia eu te contar isso. Mas suas narinas inflam quando você mente”

Peixes sentiu seu rosto queimar, enquanto escondia o nariz com a mão ociosa. O moreno sorriu e continuou.

“Vamos lá, somos parceiros. Pode me contar qualquer coisa, sabe disso.” Ele colocou uma das mãos no ombro do outro, encorando-o. Sentava-se confortavelmente no pequeno assento de madeira, e era difícil não se sentir a vontade com a aura alegre que emanava de seu corpo relaxado. Peixes suspirou antes de falar.

“Scorpio esteve lá. Quero ver a montanha por mim mesmo e investigar essa história”, respondeu.

O moreno cruzou os braços.

“Estranho Capricórnio não ter enviado alguma equipe para lá. A não ser que...”, ele olhou para Peixes, o semblante desconfiado, “...a não ser que ele não saiba.”

O silêncio do pequeno foi tudo o que ele precisou para chegar na conclusão.

Não. Não. Você não está escondendo dados dos seus superiores. Me recuso a acreditar nisso.”, ele falava, agitando a cabeça.

“Eu não tenho escolha”, resmungou.

“Sempre existe uma escolha! Peixes, você entende o quão perigoso é isso? Podem te acusar de traição!"

Sagitário falava entredentes, tentando ao máximo ser discreto, quase sem sucesso. As pupilas estavam comprimidas, intimidadas pelo sol que já estava alto no céu.

"Não sei o que vão fazer com ele se interpretarem mal as coisas ou se tomarem a parte pelo todo!"

"Você não tem que se preocupar com isso! Não é seu trabalho. Seu trabalho se resume a descobrir o máximo que puder e contar para os três grandes, nada mais"

"E deixar morrer quem foi criado comigo?”, interrompeu ele. “Eu não sou assim, Sagi. Eles vão julgá-lo mal se eu não interferir. Eu já me limitei ao meu trabalho uma vez, e ele perdeu a asa. Não vou cometer o mesmo erro de novo."

Sagitário nunca tinha visto uma expressão tão determinada no rosto de Peixes. Era assombroso como um rosto tão infantil podia inspirar tanta firmeza. Os braços, rígidos junto ao corpo, sustentavam punhos cerrados. Ele suspirou.

"Mesmo se eu quisesse te levar comigo- o que eu não quero— Libra jamais permitiria."

"Ele permitirá. Porque você vai falar com ele.", devolveu o pisciano.

"O quê??!", respondeu Sagitário, quase aos berros. "Você sabe como ele é! Ele não vai mudar de ideia assim de repente."

"Realmente, não de repente. Você ainda tem três dias para plantar isso na cabeça dele", replicou o mais novo, "Diga que é importante para o meu desempenho como inquisidor, e que eu me sentiria mais relaxado". Ele franziu a testa, pensativo. "Convença-o de que consegue me proteger, e que não agirá imprudentemente"

Sagitário franziu o cenho, como quem ponderasse a ideia. Peixes continuou:

"Por favor, Sagi. Um dos motivos pelos quais eu te contei é que, mesmo se eu quisesse, não conseguiria mentir pra você. Eu sei que você consegue. Por favor, eu vou te obedecer quando estivermos lá. Não vou fazer nada que te prejudique, eu juro."

Os cabelos azuis desgrenhados emolduravam um rosto pidão, como uma criança que implora um doce para a mãe em um supermercado.

"Droga, Peixes!", soltou o moreno. O rosto do pequeno se iluminou. "Tudo bem, verei o que posso fazer."

Ele ergueu os braços em vitória, um sorriso de orelha a orelha

"Obrigado, obrigado, obrigado, Sagi! Você é o melhor!"

Sagitário sorriu discretamente, satisfeito. Mais relaxado, terminou de contar ao mais novo sobre sua viagem e sobre o que tinha descoberto na viagem com Libra. A maior parte do tempo, discorria alegremente, mas seu rosto tornava-se soturno quando falando dos Caídos.

Estes viviam em guerra com as criaturas celestiais. A maioria deles se resignou ao Inferno, mas outros nunca se conformaram com a queda e queriam vingança a qualquer preço. Na era das trevas, quando as punições do Primeiro Reino eram mais rigorosas, centenas de anjos foram mutilados e tornaram-se caídos.

Proporcionalmente, a parcela de revoltosos tornou-se maior, e muito sangue foi derramado para que os ânimos dos dois lados se acalmassem. Desde então, o Primeiro Reino tem evitado atirar anjos do Céu.

"Bom, tenho que encontrar Áries agora. Até mais", disse Sagitário, levantando-se para ir embora.

Peixes acenou em despedida. Arrumou seu café da manhã quase intocado em uma pequena trouxa e seguiu para os corredores cinzentos que levavam até Scorpio.

Passou pelo procedimento habitual com os guardas e adentrou a sala.

Scorpio estava sentado em sua cama, com um grosso livro em mãos. Afastou-se para a cabeceira quando viu o pequeno entrar, como quem desse lugar a alguém. Peixes aceitou o convite e sentou-se ao lado do garoto com cabelos violeta. Entregou a ele sua sobremesa e tomou seu café da manhã em silêncio, pensativo.

Não pode evitar sentir certa expetativa na conversa com Sagitário. Sempre quisera ir em missões ao Segundo Reino, mas seu tamanho sempre fora um impedimento, e a superproteção de Libra e Câncer em relação a ele tampouco ajudavam.

O simples pensamento de ir até lá para descobrir o que pudesse sobre o passado de Scorpio o animava, e a cautela exigida, junto com o perigo eminente, tornavam aquilo ainda mais excitante.

Precisava da autorização de Libra.

Scorpio o encarava.

"O quê foi?", perguntou o pisciano, sentindo o olhar intenso que o trouxera de volta para a realidade.

Ele deu um sorriso torto.

"Estou tentando te deixar desconfortável"

Peixes riu.

"Não está dando certo"

"Imaginei que não", respondeu ele, ainda sorrindo.

Passou mãos por trás da cabeça, massageado a nuca e brincando com as mechas soltas dos cabelos escuros. Peixes notou o livro que o maior tinha colocado de lado quando ele entrou. Esticou suas mãos para pegá-lo.

“Ah, esse é incrível. Confesso que tive que tentar lê-lo mais de uma vez”, ele disse, enrubescendo, ao ler o título – Ulisses¹. Ele devolveu o livro para a cama e continuou, “É difícil me concentrar em coisas monótonas, e esse livro é praticamente um fluxo de pensamentos”.

Scorpio assentiu, suspirando.

“Também tive que tentar várias vezes antes de finalmente conseguir. Mas é genial o modo como Joice narra uma coisa tão banal quanto um dia de trabalho contando exatamente o que se passa na cabeça de Bloom.”

Peixes estreitou os olhos, agitando a cabeça.

“É mais do que ‘um dia de trabalho’. O livro todo é sobre voltar para a Molly no final do dia. É esse o objetivo.”

Scorpio riu frouxamente.

“Molly é quase uma abstração. Ulisses é sobre linguagem, sobre encontros, desencontros, acasos, exceções e regras.”

“Mas ele passa por tudo isso para encontrá-la.”, replicou o menor

“...Assim como o Ulisses da Odisseia. Mas tudo isso se passa no começo do século XX, onde as histórias não tem ogros, feiticeiras, guerreiros e deuses poderosos. Em vez disso, são substituídos por pessoas que querem que a vida seja mais do que um casamento, filhos e uma felicidade artificial.”

“Exatamente. A Molly é tão real quanto todos nós”

“É a narração do subconsciente de um homem beirando à insanidade! O que te faz pensar que tudo isso é sobre voltar pra ela?”

Peixes suspirou antes de responder.

"Porque ele prometeu."

Scorpio o encarou com surpresa.

Achava engraçada a simplicidade com que o outro via o mundo.

"Tem razão. Ele prometeu.", ele disse, baixando os olhos verde oliva para o título e levantando um dos cantos da boca.

O garoto sorriu em resposta. Os joelhos estavam dobrados para trás, e as mãos se apoiavam na cama que afundava com seu peso.

"Talvez esse seja meu livro preferido"

"Certamente é um dos meus também. Quer..." Ele parou por um momento, escolhendo as palavras. "...quer ler comigo?"

O rosto de Peixes se iluminou

"Eu adoraria."

Scorpio moveu-se para o lado, dando mais espaço ao pequeno. Ele se aproximou e sentou-se ao lado do mais velho, cruzando as pernas. Juntos, abriram o título e iniciaram a leitura, parando de quando em quando para comentarem a história ou discutirem as diferentes interpretações da língua em que era escrito.

Peixes não era bom com espadas, arcos e lanças. Tampouco era forte ou tinha excelência em combate corpo a corpo. Mas era diferente quando o assunto eram as línguas humanas.

Apesar de nunca ter ido ao Segundo Reino e não ter tido a oportunidade de praticá-las, dominava grande parte delas, do inglês ao aramaico, devido às longas horas dedicadas à leitura. Quanto mais ele sabia, mais queria estudá-las, e seu conhecimento o salvara várias vezes.

Scorpio sabia disso. Por isso, quando discordavam em algum ponto, tendia a escutar o menor. Era incrível o quanto o garoto de cabelos azulados podia ensiná-lo, apesar de sua pouca experiência.

Divertia-se com as divergências de pontos de vista existentes entre os dois, e o modo como o garoto tomava para si as dores dos personagens. Ele entendia cada um deles, suas dores e medos, desesperos e vícios, e não era um problema pra ele encarnar os pensamentos de cada indivíduo, imaginário ou não.

Leram por algumas horas, discutiram sobre o pensamento da sociedade da época e resolveram suas diferenças de interpretação. Só não discordavam da genialidade do autor.

Peixes deixou a cela um pouco depois do pôr do sol, sendo apressado pelos guardas. Tinha perdido completamente a noção do tempo.

Um pouco mais relaxado, reportou-se a Capricórnio. Este fizera as perguntas de sempre, mal levantando os olhos dos papéis que organizava, o que tornava a mentira ligeiramente mais fácil. Seguiu o caminho habitual para a biblioteca e escolheu alguns títulos que levaria para Scorpio no dia seguinte.

Já estava escuro quando enfim chegou para o jantar. Todos estavam reunidos, rindo e fazendo piadas. Sagitário havia reservado um lugar para ele, e o clima não poderia estar mais descontraído.

Pela primeira vez naquela semana, estava totalmente tranquilo, mesmo com Gêmeos o importunando. Câncer serviu crepes na sobremesa, e todos comeram vorazmente, o que deixou Libra um tanto perturbado. Touro quase não pode esconder seu contentamento por trás da costumeira expressão entediada .

“Eu não vou limpar isso sozinho depois”, berrava Virgo, inutilmente, já que as risadas de Aquário, Áries e Leão preenchiam todo o ar.

A conversa alta, a comida espalhada pela mesa e pelo chão e as gargalhadas depois de uma boa história faziam do lugar exatamente o oposto de um ambiente pacífico.

Entretanto, Peixes sentia, em seu íntimo, que aquela era a calmaria que antecedia uma tempestade. E ele não poderia estar mais certo.

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Nota:

1- Ulisses (Ulysses no original) é um romance do escritor irlandês James Joyce. Por descrever, em diversos pontos, aspectos da fisiologia humana então considerados impublicáveis, o livro foi censurado em diversos países. O título adapta a Odisseia de Homero, condensando a viagem de Odisseu (na pessoa de Leopold Bloom) em 18 horas, no dia 16 de junho de 1904 e início da madrugada do dia seguinte. (WikiPedia)


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