Fábulas do Cotidiano escrita por Annie Azeite


Capítulo 2
Peter Pan




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 Peter se balançava para frente e para trás enquanto sentia a corrente de vento em seu corpo em movimento. Brincava sozinho no balanço do parquinho, observando de longe as outras crianças correndo umas atrás das outras, escalando a rede da casa de brinquedo e deslizando pelo escorrega colorido. Não entendia por que todos preferiam não se aproximar, mas tinha um forte palpite de ser por suas vestes sujas e gastas pelo tempo em que não as trocara. O menino não lembrava quando fora a última vez em que esteve em casa, já nem lembrava mais o motivo de ter fugido... Tudo parecia muito confuso depois de tanto tempo abandonado.

Sentia-se um telespectador, atento a todas as vidas que não fossem a sua. Tudo era mais interessante do que um garoto perdido sem fazer ideia de como voltar para casa. Em sua mente, havia um turbilhão de pensamentos, estava tão absorto neles que se sobressaltou com o barulho da corrente enferrujada do balanço à sua direita. Uma jovem garota se acomodou no assento de madeira, jogou o volumoso cabelo avermelhado para trás e se segurou com as duas mãos nas correntes que a suspendiam. Talvez Peter não tenha sido muito discreto em observá-la uma vez que a menina notara rapidamente a atenção recebida.

— Por que está aqui? — perguntou ela, enquanto esticava as pernas para pegar impulso.

Peter abriu a boca para responder, mas emitiu apenas alguns murmúrios incompreensíveis. Aquela que acabara de lhe dirigir a palavra era Wendy, a paixão platônica do menino.

tudo bem com você? — insistiu a menina, curiosa. Peter não entendia por que sua presença a intrigava, tentava decifrar suas expressões, compreendê-la. Ele sempre a admirava de longe, sabia seus gostos e talvez seus medos. O amor era capaz disso? Alguma coisa em seu peito o fazia acreditar que conhecia aquela menina há muitos anos e, embora se achasse jovem demais para ter uma namorada, nutria por Wendy uma espécie de afeição.

— Wendy — Foi tudo que ele disse, deixando um rastro de confusão no rosto da menina, talvez se perguntando como ele conhecia seu nome sem os dois jamais terem conversado.

Ela parou o balanço por um instante, usando os pés para contornar o corpo para o lado.

— Eu não … — começou, mas, para infelicidade de Peter, foi severamente interrompida.

Sua mãe surgiu para levá-la embora pelo braço, cochichando algo que o jovem tinha certeza ser sobre ele. Já estava acostumado à rejeição, mas aquilo doeu de uma forma que Peter jamais experimentara. Pela primeira vez, desejava voltar a ser invisível como há alguns minutos, quando cada habitante daquele bairro seguia sua rotina normalmente e ignorava a existência e sofrimento do coitado. A indiferença era mais tolerável do que o desprezo. 

Em poucos segundos, Wendy e sua enraivecida mãe se juntaram a um grupo de outras mães que seguravam seus filhos e dirigiam olhares de reprovação para o menino. Peter se sentia desconfortável com aquela situação de tantos olhos o insultando silenciosamente. Por que as pessoas eram tão más com ele? Nunca fizera mal a ninguém, não roubara um centavo. Apenas estava sujo, com fome e perdido. Era esse o seu pecado?

Aos poucos, o parquinho se esvaziou, as pessoas iam embora para casa ou se reuniam ao que Peter acreditou ser um clube de ódio gratuito. Os brinquedos antigos e gastos pelo tempo estavam, ineditamente, silenciosos. Não havia o ruído das correntes do balanço, das articulações enferrujadas da gangorra ou das gargalhadas das crianças. Naquele momento, tudo que preencheu os ouvidos de Peter foi a sirene de uma viatura.

 A medida que o barulho ia aumentando, o carro diminuía a velocidade, até estacionar perto da calçada. Em seguida, dois policiais uniformizados saltaram do carro, vindo em direção ao parque. Eles pararam para conversar com o círculo de pessoas que dirigia olhares e apontava na direção do menino e todo o corpo de Peter enrijeceu. Estava tremendo, com medo. Não fizera nada de errado e os vigilantes não tinham razão para prendê-lo, mas algo o fazia acreditar que tudo acabaria muito mal.

Tentou correr e se surpreendeu ao descobrir que era incapaz de tal feito. Seus joelhos doíam, o peito queimava, a coluna estalava. Desesperado, ansiava pelo ar que, por mais que fizesse o máximo de esforço para aspirar, parecia não encher completamente seus pulmões. Não aguentou manter o ritmo por mais de 15 segundos e então caiu, rígido e dolorido, no asfalto áspero.

Os dois policiais correram em sua direção e, para surpresa de Peter, estavam preocupados. Um deles o ajudou a se levantar enquanto outro usava o celular e checava uma fotografia em sua posse. Não foi pela dor física ou o ralado em seu joelho que uma tímida lágrima escorreu por sua bochecha. Era felicidade. O menino finalmente experimentava da compaixão das pessoas a sua volta.

— Sim, nós o encontramos — respondeu o homem ao telefone. — Está um pouco desorientado, mas não está ferido.

Peter não compreendeu o que aquelas palavras significavam, mas elas o enchiam de esperança. Eles vieram à sua procura? Quem? Alguém realmente se preocupava com ele? O garoto tinha centenas de perguntas sem respostas, mas guardou suas dúvidas unicamente para si e entrou no carro a pedido dos policiais. Nunca andara no banco de trás de uma viatura, sentia-se um criminoso sendo levado para a prisão, contudo, se convenceu de que aqueles bons homens à frente da grade de metal não o fariam nenhum mal.

O carro atravessou algumas ruas residenciais, sem chegar a se afastar  tanto do ponto de partida. Durante todo o percurso, a vizinhança mantinha o mesmo padrão de casas amplas em tons pastéis com muros baixos e jardins floridos. Em pouco menos de vinte minutos, a viatura desacelerou e estacionou em frente a uma das residências que não destoava em nada das demais, sequer era familiar para o menino. Seus pais moravam lá agora? Teriam se mudado?

Encorajado pelos dois homens da lei em sua guarda, atravessou o quintal extenso em direção à entrada da casa desconhecida. Ao subirem os degraus da varanda, reparou no casal que o aguardava na porta da frente. Os policiais foram ao encontro do homem enquanto sua companheira corria em direção a Peter. Ela o envolveu com avidez, amparando a cabeça em seu peito. O garoto mantinha os braços inertes ao lado do corpo, imóvel sem saber exatamente como agir, mas, apesar de não retribuir o abraço, sentia-se confortável em seu interior. Enfim, estava em casa.

A mulher se afastou, permitindo que Peter a observasse melhor. O cabelo loiro estava bagunçado num coque feito às pressas, havia ranhuras vermelhas ocupando todo o branco dos olhos e os cílios se encontravam unidos pela umidade das lágrimas.

— Mãe? — chamou ele, fazendo a adulta, que já havia retomado a compostura, desabar novamente em lágrimas e soluços. Aquela pequena palavra tinha um efeito estranho e imediato sobre ela e Peter não era capaz de entender o porquê.

— Você está bem! Graças a deus você está bem! — certificou-se ela. Não parecia nem um pouco furiosa pela fuga de seu filho, apenas aliviada em finalmente encontrá-lo. — Não sabe o quanto fiquei preocupada!

Peter mantinha-se imóvel, perguntando-se o motivo de ter abandonado aquela moça gentil que o amava tanto. Sua vida parecia um amontoado de peças de quebra-cabeça bagunçado. Por que ele se sentia tão confuso?

— Vamos entrar, querida? — interveio o homem que, após dispensar os policiais e preencher a papelada, se juntou ao menino e sua mãe na porta de casa. — Tenho certeza que Peter está cansado.

O guturoso ruído de seu estômago fez Peter acreditar que não era apenas cansaço que o incomodava, entretanto, não se oporia a deitar numa cama macia depois de tanto tempo vagando por ai.

Adentrou pelo portal de madeira maciça logo após seus anfitriões e reparou no interior da casa, tão gracioso quanto sua faixada. A sala era ampla, com um grande lustre de cobre no centro e uma imponente escada vitoriana. Havia tantos quadros e pinturas que mal se conseguia ver o revestimento das paredes. Um luxo incomparável ao do asfalto áspero das ruas em que se perdera. 

— Pode sentar aqui — sua mãe apontou para o sofá bege em frente ao rack da TV. Apertou o ON do controle remoto e deixou no canal que exibia telejornal. — Vou pegar alguma coisa para comer, está bem?

Sem aguardar resposta, ela sumiu pela porta que dava acesso à cozinha e o homem que Peter ainda não reconhecera foi atrás. Lá de dentro, ouviu o tinido de porcelana contra a bancada e alguns talheres. Ansioso, imaginava qual lanche suculento estava prestes a comer.

— Não sei mais o que fazer, ele está piorando muito rápido — confessou sua mãe, cuja voz ecoava pelo corredor. — Acha que devemos interná-lo?

O menino se sobressaltou, esbarrando no abajour da mesinha de apoio. Ser internado? Aquela não parecida uma boa ideia, não importando quão diferente ele estivesse. Acabara de chegar e ja se sentia querido naquela casa. Por que queriam se livrar dele agora?

Não conseguiu ouvir mais nada da conversa no outro cômodo, porém o que havia escutado até aqui era mais do que suficiente para desesperá-lo. Levantou-se do sofá e se pôs a andar de um lado para o outro, impaciente, pensando em alguma forma de consertar as coisas. Quando sua mãe voltou da cozinha trazendo um prato de biscoitos e uma xícara de café com leite, sabia que precisava dizer alguma coisa:

— Desculpa ter fugido, mãe.

A mulher arregalou os olhos, tomando cuidado para não derrubar a louça em suas mãos. Ela entregou a comida para seu companheiro, ajudou o menino a se sentar no sofá novamente e explicou em um tom gentil:

— Eu não sou sua mãe, querido. — Fez uma pausa para verificar a reação do seu até então filho e, assim que julgou seguro, prosseguiu: — Não lembra de mim, pai? Sou sua filha.

Peter pensou que aquilo pudesse ser alguma espécie de piada de adultos que ainda não possuía maturidade para entender, mas os semblantes de seriedade do casal a sua frente demonstravam o contrário.

— Consegue se lembrar, pai? — insistiu ela. — Costumava me chamar de sininho...

De repente, Peter teve um vislumbre de uma menininha com saia de bailarina e asinhas de mentira correndo pelo quintal. Sacudia um pedaço de graveto como se fosse uma varinha e, embora estivesse toda suja de terra, era a princesinha mais linda do mundo.

— Sininho... — Peter repetiu, apreciando o som de cada sílaba, ainda que não compreendesse exatamente o que aquilo significava.

— E esse é o meu marido — ela continuou esperançosa, apontando para o homem que acenou brevemente com a cabeça —, seu genro.

Nada fazia sentido para Peter. Como a mulher que até pouco tempo acreditou ser sua mãe poderia ser sua filha? Ele era um adulto? Não era uma criança? Tinha quantos anos, afinal? Os fatos pareciam embaçados em sua memória, como se tentasse enxergar através de um vidro empoeirado.

— O médico explicou, lembra? — esclareceu ela, sempre de forma paciente e cautelosa. — O senhor tem Alzheimer, pai, uma doença que faz esquecer das coisas.

Uma doença. Era por isso que tudo parecia tao confuso? Não lembrava como fora parar naquele parque longe de casa nem há quanto tempo estava lá, não sabia por que todas as crianças o evitavam ou as mães o maltratavam e, acima de tudo, não fazia ideia de quem ele era de verdade.

Peter não queria acreditar em tudo que acabara de ouvir, mas, ainda assim, se aproximou da parede em que se encontrava um espelho de moldura prateada. Hesitante, observou com atenção a pele enrugada do homem refletido. O cabelo era branco e já não existia no topo da cabeça, lágrimas escorriam dos olhos envolvidos por bolsas de pele envelhecida e cada ruga que contava em seu rosto eram pelo menos 10 anos que havia perdido. Havia esquecido.

Era verdade então. Aquele idoso estranho no espelho era ele. Toda sua vida não passava de um borrão, perdida no esquecimento. Perdera o dia de seu casamento, o nascimento de seus filhos e a formatura na faculdade, se é que havia se formado. E netos? Ele também possuía? Não lembrava. Todas as suas memórias se resumiam às fotografias convenientemente dispostas em porta-retratos na estante da sala de estar.

Ele contemplou a mulher que descobrira ser sua filha segurando um bebê recém-nascido nos braços, observou diversas imagens das mesmas duas crianças que ainda não conhecera e, por fim, viu-se usando um terno engomado e quepe com brasão dourado. Sabia que aquele homem de bigode espesso e óculos Ray-ban era ele apenas porque lhe foi contado, não seria capaz de se reconhecer mais jovem ou recordar-se de que fora piloto um dia.

Um Piloto... Ele se deleitava com o pensamento. Era ao mesmo tempo gratificante e perturbador: Todos os países que visitou e as memórias que colecionou... Para quê? 

Havia esquecido. 

Inquieto, Peter percorreu os olhos por todas as lembranças impressas nas fotografias, pensando em alguma forma de guardá-las em sua mente. Reparava nas manchas e desgastes das fotos, tão frágeis e ainda assim mais duradouras do que o seu cérebro envelhecido.

 Atentou-se à imagem de uma mulher linda e no auge dos seus trinta anos sorrindo para ele. Como a garota do parque, o cabelo era cheio e avermelhado e os olhos, os mais belos que já vira. O papel não possuía cor além do preto e do branco de antigamente, mas Peter conseguia enxergar o azul complacente de suas íris.

O idoso pegou o retrato em suas mãos trêmulas, marcadas pela idade com pintinhas castanhas e rugas profundas, enquanto os outros dois adultos no cômodo se entreolhavam apreensivos. No mesmo instante, alguns flashes preencheram sua mente: o primeiro beijo na saída do pub em Berlim, ela sorrindo em seu uniforme turquesa da companhia e, a bordo do boeing 307, os dois desbravando terras desconhecidas.

Peter sentiu novamente a bochecha molhada de lágrimas, redescobrindo o infortúnio de lembrar  chamado saudade, mas deu as boas vindas à sua dor com um sorriso. Deslizou os dedos sobre o delicado vidro que protegia a fotografia e, embora soubesse que sua amada jamais responderia, chamou pelo único nome que ainda não esquecera:

— Wendy.

 


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Notas finais do capítulo

Peter pan, menino que não queria envelhecer... E ai? Adivinharam o final? O alzheimer e outras demencias do idoso são bem comuns no meu cotidiano. Tentei mostrar da melhor maneira como funciona a cabeça de alguém com esse nível de confusão mental. Em estados avançados, é quase como se a pessoa voltasse a ser criança mesmo, sem compreender direito a própria identidade. Acho que no final, tudo que parecia confuso, começa a fazer sentido para os leitores, assim como faz para Peter. Ou assim espero rs

Recomendo que assistam esse video, é muito lindo: https://www.youtube.com/watch?v=bkfu-5yy3Ms