Com amor, sempre Júlia escrita por Maíra Viana


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Olá, seja bem-vindo(a) e uma ótima leitura! ♥



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Querido diário,

Não sei mais como escrever aqui e nem sei se devo me desculpar. Acho que a Júlia de quinze anos não se redimiria assim; confiante e com a língua quente do jeito que era, a última coisa que faria, seria isso. A Júlia de agora, não se expressa. E é disso que passei a ter medo nessas últimas semanas.

Meu marido, Ricardo, viajou por causa do trabalho e eu estou em casa, "aproveitando" o feriado. Nesse pouco tempo, longe de qualquer companhia (não somente a do meu marido, mas de mim mesma, na maioria das vezes), a solidão me deu um abraçado apertado. E foi aí que eu percebi a marca que seus braços deixaram em meu corpo, mostrando que já me entrelaçavam antes mesmo de eu notar.

Hoje de manhã fez frio e acredite, em Aracaju isso não acontece com frequência. Vasculhei uns trabalhos de inglês para entregar exercícios novos aos alunos e, no meio da bagunça, encontrei você. Um diário de 1992, auge dos meus doze anos. Foi tão estranho ler essas anotações de bons e maus momentos... Poder relembrar dos garotos que amei intensamente, das brigas horrorosas com a minha mãe, notas baixas e brincadeiras no colégio. Eu era tão cheia de vontades, difícil de lidar! Os outros, se quisessem, que se acostumassem comigo. Agora eu me moldo à sociedade, medindo palavras, ações e sentimentos. "Convém" e "não convém", nunca um "quero!", "vou sim!", "que se dane". Ninguém precisou dizer que eu havia amadurecido, para a ficha finalmente cair. Parei de usar tênis que piscava porque passei a me preocupar em não chamar atenção, troquei minhas mochilas de princesas para uma sem estampa, doei minhas tiaras de acrílico e mudei o cabelo. No meio do caminho, perdi amigos e ganhei outros. Assim, cresci. Amadurecer é conseguir dizer adeus.

Eu morava a dois quarteirões da praia e toda vez que meu pai podia, ele levava a família inteira para se divertir. Meus irmãos e minha mãe, ficavam sentados embaixo do guarda-sol, enfiando a areia por entre os dedos dos pés, enquanto eu e meu pai entrávamos na água. Com o vento dançando em nossos cabelos, abríamos os braços em direção ao céu e nos olhávamos. Era o nosso ritual.

— Livre, leve e solta...

— Como as gaivotas! – ele dizia alto, completando. Eu, pequena, olhava para o lado e enxergava o maior homem do mundo, abraçando sua casa. Juntos, nos tornávamos gaivotas, minúsculas diante de um céu ameno e impetuoso, admiradas.

Eu continuo em Aracaju, embora não seja a mesma coisa viver aqui como era antes. Minha mãe se mudou pra Recife assim que se separou do meu pai, os meus irmãos agarraram-se em sua saia e foram atrás. Eu lutei pra permanecer com o meu pai, só que ele, tão entregue à vida, deixou-se ser embalado por toda a infinidade do lugar ao qual pertencia. Me formei, virei alguém perante os olhos que passam corriqueiros na rua e tornei-me esposa.

O Ricardo é um homem inteligente e de postura, a todo instante mantém seu caráter e honestidade no que vai fazer. Mas não amo o meu trabalho, não me reconheço no reflexo dos vidros espelhados e minhas borboletas no estômago, morreram. Objetivo virara obrigação.

Aracaju não está tão iluminado como nas décadas de 80 e 90, não possui calçadas firmes como as de antigamente e nem mesmo a chuva que cai, refresca igual a que antes, acinzentava. Modernidade penetra na cidade, porém, tudo regrediu para mim. Nada parece ter sentido porque apenas um enorme vazio preenche as lacunas de um passado que não volta.

À noite, tentei dormir um pouco mais do que geralmente consigo, só que as páginas desse diário, queriam me ver acordada. As letras me seduziam numa dança calma e hipnotizante.

10/03/1992

“Em algumas vezes, acho que descobri quem eu sou. Em outras, acho que nunca fui alguém. Sou totalmente confusa e não venha me dizer que “as mulheres são assim mesmo” porque conheço gente muito mais feliz do que eu.”

11/05/1993

“Hoje é o dia das mães e não vi necessidade de dizer nem uns meros parabéns para a minha. Parece que essa mania do meu pai de não valorizar as datas, vem me afetando. Parece que tudo em meu pai vem me afetando. Os gostos musicais, o gosto pela arte e pela vida...”

23/08/1993

“Tenho treze anos e sei que muitas vezes eu faço coisas achando que sei muito, mas depois que vejo que não sei é de nada.”

18/12/1994

“Tentei fazer as minhas coisas o mais rápido possível para que nada deixasse meu pai zangado, mas quando pensei que finalmente a casa teria paz, ouvi a porta do quarto sendo fechada fortemente e um berro vindo de lá. Olhei para minha mãe enquanto ela colocava comida na boca da minha irmãzinha. Ela queria chorar ou já tinha deixado escapulir algumas lágrimas, mas eu sabia que estava sentindo o mesmo que eu. Peguei o garfo e vi que eu estava tremendo. Quando eu soube em 1989 que eu me mudaria para Aracaju, fiquei tão empolgada que virei para o meu irmão que me deu a notícia, e mexi os braços rapidamente, dizendo “olha só como eu to tremendo de felicidade!”e também lembro que já tive tremores por causa do frio e até uns de ansiedade, mas aquela foi a primeira vez que eu tremi de medo. E medo do meu próprio pai.”

18/12/1995

“A voz de Júlio é muito mais fofa do que eu pensei. Na verdade, sou suspeita a falar. Me encanto com qualquer bom dia sorridente e olho no olho.”

Folheando a Júlia menina, ouvi um barulho abafado vindo de debaixo da cama. Respirei fundo. Suspendi o tecido fino da lucidez que se arrastava sobre o piso e bisbilhotei. A claridade da janela ajudava o escuro formado, a se desfazer. Era o meu eu, escondidinho em uma caixa apertada, debatendo-se contra a tampa, querendo se libertar.

E chorei. Chorei pela criança que eu queria voltar a ser, esperneei da mesma forma que as lembranças se debatiam na minha memória e sangrei por dentro, tal como os meus joelhos de moleca.

Saí porta afora do quarto, esbarrando em questionamentos que quase me fizeram dar meia-volta e afundar-me de volta nos lençóis. Dessa vez, não recuei. Os baques não me machucaram porque uma canção foi tocada e todos os meus sentidos aflorados, se definharam. Sem controle, segui por esses becos e esquinas longínquas, guiada por um canto sublime até ao mar. Meus olhos tristes se despertaram com a melodia das ondas, debatendo-se umas contra as outras. E meus pés caminharam por essa partitura feita de areia e certezas, beijando aquele que me acolhe agora. Entrando na água gelada, abri os braços e sorri. 

— Livre, leve e solta, como as gaivotas! – berrei junto do estardalhaço do mundo. 

Com essa atitude infantil, me dei conta de que a Júlia de nove anos que ficava horas criando histórias, sozinha, está aqui. A de dezesseis que enfiou a cara nos livros e passou a estudar feito maluca. Vinte e trinta anos...

Bobeira desejar um túnel do tempo que realmente funcione, quando se há algo muito melhor me esperando. Eu sou o resultado de tudo o que um dia fui, e ainda me resta muito para ser. Se der saudade, é só lembrar que todas as Júlia's do passado, se encontram em mim. É só procurar. O futuro é o daqui a pouco e olhe só para mim! Já sou uma nova Júlia! Menina, moça e mulher. Sempre Júlia.

Mesmo com as amarradas do dia a dia, me sinto livre. Com o peso das consequências, estou leve. Presa em um presente que não me pertence, é hora de me soltar. Amanhã, Ricardo voltará para casa e levará um susto tremendo. Não irei reconstruir os meus sonhos e nem trilhar por caminhos que não mais me cruzam; quando o sol surgir, novas esperanças me cobrirão e uma outra estrada, se abrirá. E é para onde as gaivotas voam que eu irei. O céu é só um pedacinho daquilo que me aguarda e quero levar você pra voar comigo. Aceita?

Com amor,

Sempre Júlia.


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Notas finais do capítulo

Escrevi esse pequeno texto/conto para um desafio no qual me propuseram e aqui está o resultado do melhor que pude fazer. Foi complicado conseguir organizar todas as minhas ideias, afinal, tive que revirar um pouco de quem eu fui para criar a Júlia. Mas faz parte. Temos que aprender a encarar aquilo que nos bate de frente. Espero que você tenha gostado e caso tenha escrito algum capítulo único em formato de diário, a minha MP estará sempre aberta para poder te receber! Sinta-se à vontade (assim como eu sempre me sinto quando converso por aqui e por lá). Enfim, nos vemos quando minha mente parar de me pregar peças e roubar todo o meu foco. Até mais!



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