Uma garota chamada Lori escrita por Sapphire


Capítulo 1
Capítulo 1 - Bem-vindo ao Inferno




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"Minha sombra é a única coisa que anda ao meu lado, meu coração superficial é a única coisa que bate. Às vezes eu desejo que alguém lá fora me encontre, até lá, eu ando só"

Música: Boulevard of broken dreams - Green Day

Parte 1: I've been beaten down, I've been kicked around

▐▐

–Aqui é a Sunnyside. - a Dra. Grey disse passando pelo portão enferrujado, William olhou para o letreiro acima que tinha a sua tinta azul quase toda descascada e faltavam as letras u e y. Colocou o capuz e enfiou as mãos dentro do casaco, como se de alguma forma isso o fizesse ser menos notado.

–Você virá de segunda a sábado, das sete da manhã às quatro da tarde tendo uma hora de pausa para o almoço. Como vê, é necessária uma reforma, mas eles não têm dinheiro para isso e embora recebam algumas doações, não é suficiente para pagar alguém para fazer. Logo, você o fará.

Enquanto ela falava em tom autoritário, ele tentava ignorá-la. Odiava toda aquela arrogância e concluiu que ela só poderia ser assim porque era uma pessoa amarga e solitária. Também não era para menos, andava sempre com aquele ar de superioridade vestindo terninhos pretos quase idênticos-embora hoje estivesse com um azul-marinho- e os cabelos curtos bem alinhados, não havia um só fio fora do lugar! Ela devia estar na faixa dos 40 e, ele admitiu, era bonita e exalava poder.

–Boa tarde! -William ouviu um tom diferente de voz e percebeu que estava em uma sala que parecia ser a recepção, a dona da voz era uma garota atrás do balcão com o rosto redondo, olhos azuis, nariz fininho com sardas e cabelos ruivos cheios e bagunçados. Ela estava com um sorriso bem largo deixando em evidência o seu aparelho dentário e aparentava ser uma adolescente.

–Boa tarde. -Ele respondeu. A Dra. Grey colocou umas pastas sobre o balcão e começou a tagarelar com a ruiva, ele prendeu a atenção na decoração do lugar: as paredes eram de uma cor estranha que lembrava vômito, o sofá estava rasgando e o balcão parecia a coisa mais recente que haviam comprado, mas haviam alguns adesivos de peixinhos que já estavam pela metade.

–Ouviu o que eu disse?

Ele olhou para a Doutora, óbvio que ele não ouviu, qualquer coisa era mais interessante do que ela.

–Sim.

Ela ignorou a resposta.

–É importante que se mantenha sempre ocupado, serão escritos relatórios ao final de cada semana. -Virou-se para a ruiva. -Mas não é preciso preocupar-se, ele não causará problemas porque um passo em falso e voltará. -E olhou para ele por cima do ombro. -Acho que ele não quer isso.

Ele deu de ombros, ela não parecia esperar uma resposta mesmo, pois já se dirigia à porta antiga de madeira.

–Comporte-se. -Ela o olhou nos olhos, costumava fazer isso sempre que dava sermões. - Espero o relatório no fim da semana.

E saiu.

–Então, William Charles Anderson, como prefere ser chamado?- A garota ruiva sorriu novamente para o rapaz atraente de olhos azuis e cabelos castanhos. Assim que ele aproximou-se, percebeu o olhar dela pousando sobre sua cicatriz no lado esquerdo que começava no canto da boca e subia diagonalmente alguns centímetros.

–Will. - Respondeu com a voz mais grave para desviar-lhe a atenção, o que funcionou, pois ela balançou a cabeça parecendo tentar afastar algum pensamento.

–Muito bem, Will. Você pode aguardar um pouco no sofá enquanto preencho a sua ficha? A propósito, meu nome é Holly e você pode me chamar sempre que precisar, estou sempre por aqui. -Ela abriu novamente aquele sorriso e ele teve a impressão de que ela sorrira mais em 30 minutos do que a Dra. Grey havia sorrido em sua vida inteira.

Ele apenas acenou com a cabeça e sentou no sofá.

Ultimamente fazia apenas isso, cumpria ordens, coisa que nunca fizera entre os 11 e 17 anos. Se fizesse não estaria ali, mas era uma coisa na qual preferia não pensar, ele estava no fundo do poço, mas não precisava ficar lembrando-se disso a todo o momento.

–Pronto, terminei! -Ela disse animada saindo de trás do balcão, estava com uma blusa regata branca justa e saia florida tão longa que lhe tapava os pés, o que a fazia parecer hippie. - Venha, vou mostrar-lhe como é aqui.

Ele assentiu e levantou seguindo-a. Eles atravessaram uma cortina de miçangas que não combinava em nada com o lugar e Will se viu em um corredor comprido, as paredes eram pintadas de branco, mas as marcas das mãos das crianças encontravam-se nelas. Holly ia à frente mostrando as salas fazendo com que ele espiasse cada uma delas pelo quadrado de vidro encontrado nas portas de madeira. Em uma sala havia uma voluntária dançando com os alunos, em outra- onde havia crianças mais velhas- um voluntário dava aula de matemática, em outra onde as crianças pareciam ter cinco anos se via apenas os pés da voluntária, pois ela estava sendo sufocada por elas. Fez alguns cálculos, devia dar umas cinquenta crianças no total.

Holly mostrou o refeitório fazendo com que ele imaginasse a bagunça que aquilo ficaria e as irritantes crianças gritando e correndo para lá e para cá.

–O que tem lá em cima? -Perguntou percebendo uma escada no fim do corredor.

–Nada, só alguns entulhos e o fantasma de Joane Smith.

–Quem?

–Nada, é só uma lenda idiota. -Ela riu.

–Hum. -Ele resmungou parando atrás dela que parou em frente a uma porta.

–Tudo o que você precisa está aqui. -E estendeu uma chave a ele. -Vou deixar com você hoje porque amanhã eu só chego aqui às 8h30min. Isso também é seu e isso. -Ela lhe entregou um envelope e um pedaço de papel.

–Esse envelope foi o que a Dra. Grey deixou e nesse papel está o seu endereço, você começa amanhã.

–Certo, obrigado.

–A gente se vê amanhã. -Ela sorriu acenando e voltou pelo corredor, William resolveu dar a volta por fora. Ele saiu pelo quintal dos fundos onde era cimentado e observou um canteiro de flores que se estendia ao longo da parede achando-o bem estranho: em sua metade flores bonitas e coloridas e em sua outra metade gravetos e folhas secas, estava meio vivo e meio morto, assim como ele.

A cidade era realmente pequena e em todas as ruas havia alguma plaquinha indicando seus nomes. Ele andava enquanto abria o envelope, lá havia um chaveiro com três chaves - de sua casa, imaginou -, seus documentos e dinheiro, pouco, o suficiente apenas para comprar comida e objetos de higiene para sobreviver àquela tortura. Guardou os documentos no bolso, puxou algumas notas e entrou em um armazém indo direto na garrafa de Jack Daniels, depois em uns maços de cigarro e um isqueiro, atrás da caixa registradora estava um senhor magrelo com um bigode branco enorme que lhe cobria as bocas, ele o encarou.

–Posso ver sua identidade?

Will suspirou impaciente, será que até mesmo agora que realmente tinha 21 anos as pessoas continuariam a perguntar sua idade? Puxou do bolso a carteira e colocou bem em frente aos olhos do senhor que ainda olhou por algum tempo desconfiado.

–São 62, 45.-Disse mal dando para entender por conta do bigode.

Will jogou 65 em cima do balcão e saiu andando já acendendo um cigarro.

Não foi difícil achar a casa na rua Terrence, era uma casa antiga e parecia abandonada, principalmente comparada às outras casas que pareciam sair de um catálogo de condomínios de luxo, a única coisa que tinha em comum com as outras era o tamanho. Todas as outras tinham um belo gramado com jardim em frente, a dele não parecia nada mais que um grande matagal. Ele ignorou os olhares curiosos, acusadores e até amedrontados de algumas pessoas da vizinhança, testou uma chave e na segunda já conseguiu abrir.

–Bem-vindo ao inferno. -Entrou na casa que fedia a mofo e observou: uma sala com apenas um sofá quase destruído, uma tv de quase 50 anos atrás e uma mesa de centro gasta, os chãos eram de madeira e as paredes brancas estavam descascando. Havia uma escada que dava pra o 2º andar, mas ele não se interessou em subir, apenas andou um pouco mais à frente descobrindo a cozinha que, apesar de ter a estrutura antiga, parecia funcionar bem; Deixou a garrafa na bancada e saiu da cozinha abrindo a porta de outro cômodo que era um quarto simples, apenas com uma cama e um criado-mudo. Pelo menos tinha lençóis limpos, sinal de que alguém deixara ali.

Ele voltou à cozinha para buscar a garrafa e assim que a levou até a boca ouviu batidas na porta, parou por um segundo pensando em quem seria até ouvir novamente a batida.

Andou meio confuso, deixou a garrafa na mesa e abriu a porta encontrando uma senhora baixa com os cabelos bem brancos e olhos azuis gentis que de alguma forma brilhavam.

–Olá, vim dar as boas vindas da vizinhança. -Will demorou a responder ainda não associando as coisas direito.

–Da Vizinhança?Hã...- Respondeu um pouco desconfiado.

–Espero que não se importe, eu trouxe isso imaginando que um jovem como você não gostaria de perder muito tempo cozinhando. -Só então ele percebeu que ela trazia nas mãos uma cesta coberta com uma toalha, logo ela a empurrou contra ele que pegou se perguntando se ela sabia quem ele era.

–Obrigado.

–Não há de quê. -A senhora ficou o encarando com um sorriso largo e depois com um estalo, acenou. -Tenho que ir agora, se precisar é só chamar. Moro nessa casa amarela ao lado, meu nome é Jolene Davis. -Ela disse se afastando e assim que entrou em casa, ele fechou a porta.

Colocou a cesta sobre a bancada da cozinha ao lado da garrafa e retirou o pano que estava sobre ela, havia dois sanduíches de frango, alguns biscoitos que pareciam caseiros, um pedaço de torta de limão e saquinhos de chá. Ele tirou um dos sanduíches, desembrulhou e o analisou sentindo o seu cheiro, onde esteve antes era arriscado aceitar qualquer alimento "dado generosamente" por alguém. E ali poderia não ser diferente, as pessoas achavam que ele era algum tipo de assassino que acabaria com a paz deles e talvez tivessem armado para se livrar dele, mas por outro lado era uma cidade pequena onde todos se conheciam e em cidades assim as pessoas podem ser cordiais e amistosas, no fim ele deu uma grande mordida no sanduíche, mal importava se morreria agora ou daqui a 100 anos.

Will passou o resto do dia deitado no sofá divertindo-se com sua garrafa.

Lori

Lori ria enquanto as crianças saíam uma a uma de cima dela, ela passou a mão no cabelo sabendo que teria que penteá-lo novamente, mas valia a pena, valia a pena cada sorrisinho daquele.

–Meus amores, vamos guardar nossos brinquedos e deixar a sala arrumadinha agora? -As crianças que totalizavam sete na faixa etária entre quatro a cinco anos pularam animadas e começaram a guardar seus poucos brinquedos na caixa, ela também ajudava brincando ora ou outra com uma, quando terminaram, todas se sentaram no chão, ela sentou em frente a elas.

–Agora vamos juntar as mãozinhas assim, - ela juntou as palmas das mãos - fechar os olhinhos - fechou os olhos -e rezar antes de merendar.

Ela abriu um olho e observou todas as crianças fazendo exatamente o que ela pedira, o que achava incrível, pois aquelas crianças eram muito agitadas.

–Papai do céu, obrigada por termos o que comer, abençoe a nossa comida e todas as criancinhas na terra. Amém.

–Amém! - Elas responderam já levantando e começando a pular, Lori sorriu para si mesma e levantou.

–Vamos lá fazer um trenzinho para ir merendar. - Ela bateu palmas e as crianças logo se organizaram no 'trenzinho', Lori pegou na mão da primeira criança e dirigiu-se ao refeitório onde já se encontravam todas as crianças e os voluntários. As crianças menores comiam nas mesas mais baixas, as pessoas que trabalhavam na cozinha já haviam arrumados os lanches. Lori foi sentar-se à mesa junto com os outros voluntários, a hora do lanche era muito mais tranquila que o almoço.

–Bom, o importante é manter as crianças longe dele, nunca se sabe o que uma pessoa como essa pode fazer. - Ouviu Betty falar quando se aproximou.

–Hey. -Ela sentou puxando uma das barrinhas de cereais do seu bolso. -Sobre o que estão falando?

–Sobre o novo funcionário. -Joanna apoiou-se sobre a mesa.- Veio de um reformatório, não sabe?

–Não. -ela deu de ombros abrindo a embalagem. -Mas qual o problema?

–Não ouviu direito? -Betty franziu a testa. -Ele é perigoso, pode ter sido um bandido, traficante, assassino.

–Ou simplesmente ter feito uma besteira quando adolescente, se ele saiu de lá é porque não representa perigo. - Ela mordeu a barra, como se nada de novo estivesse acontecendo. Betty ficava impressionada com a ingenuidade de Lori, devia ser porque ela tinha 17 anos, não era instruída para os perigos da vida e tinha um coração do tamanho do mundo.

Todos deram uma pausa na conversa enquanto comiam seus lanches.

–Mas ele é um gato. -Sophia, que estudava junto com Lori, comentou.

–Há meia hora você não pediu que eu te protegesse dele? -Samuel disse confuso.

–Bom, caso aconteça alguma coisa, mas isso não quer dizer que não posso olhar para ele. Não o vi de frente, mas tenho certeza de que é bonito.

–Só você mesma. -Lori balançou a cabeça rindo.

Depois do lanche, todos voltaram às suas salas e realizaram suas atividades, já eram 17h quando Lori se arrumou para ir embora. Entrando na recepção, ela viu Holly e Gina, a enfermeira de 35 anos que trabalhava no único hospital da cidade e cuidava das crianças no turno da noite junto com mais duas mulheres.

–Olá. -Lori sorriu para Gina colocando a bolsa no sofá enquanto se organizava.

–Olá, minha princesa. -Gina sorriu de volta apoiada no balcão observando algumas fichas de crianças.

–Nós estávamos conversando sobre o novo membro da equipe. -Holly sorriu mexendo em um dos cachos enquanto observava Lori vestir o casaco.

–Todos só estão conversando sobre isso hoje, ele é algum tipo de celebridade? -Lori debochou e as outras duas riram.

–Não vejo o porquê de se preocuparem, todos deviam lembrar que não se julga um livro pela capa. - Gina falou com a voz serena de sempre.

–Na verdade, se for julgar pela capa -Holly abriu um sorriso travesso - eu diria que é um ótimo livro.

As três riram.

–Ai Holly, você não existe. - Lori ajeitou a bolsa no ombro. - Vou indo, até quarta.

–Até. -As duas responderam.

Lori foi caminhando pela rua calmamente, sua casa era a duas quadras do orfanato. Chegou em casa, pendurou seu casaco ao lado da porta e avistou um movimento na cozinha.

–Pai, cheguei. -Ela disse indo para a cozinha onde encontrou seu pai usando um avental e picando tomates.

–Oi, meu amor. -Ela deu um beijo na bochecha dele que retribuiu dando um em sua testa. -Estou preparando o jantar, espero que esteja com fome.

–Com muita. -E deu uma piscada. - só vou tomar banho e já desço para jantar.

Will

William acordou com o coração acelerado, aquele pesadelo o vinha assombrando há três anos. Ele sentou-se e respirou fundo tentando colocar as coisas no lugar, olhou para a garrafa pela metade em cima da mesa, os restos do lanche e depois para o relógio antigo na parede, 4h21. Ele balançou a cabeça e voltou a olhar, a mesma hora, era a realidade.

Limpou a mesa jogando o lixo na cozinha e apoiou-se de costas na bancada com os braços cruzados, odiava o reformatório, odiava a tutora, odiava seu pai, odiava os pesadelos, odiava aquele lugar e aquela casa, por Deus, como ela fedia!

Foi até a sala, pegou um cigarro e o acendeu dando um trago, depois ligou o rádio onde estava tocando "She will be loved", sentou no chão colocando as mãos sobre o rosto sentindo as lágrimas queimarem em seus olhos.

"Please don't try so hard to say goodbye"


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