Four Seasons escrita por Christine Rodin


Capítulo 1
I. Primavera


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo vai ser bem inocente, mas bastante sentimental. Ficou longo comparado aos meus padrões, então espero que aproveitem.



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Allan POV

Acho que a primavera sempre foi minha estação favorita. Lembro que a essa época do ano, quando eu era criança, costumava me divertir explorando os campos da cidade em que morava no interior da Escócia, o vento suave batendo nas bochechas, o aroma das flores silvestres nativas que eu tanto amava sentir.

As sensações que tinha durante os dezesseis anos em que estive na nossa pequena propriedade rural permanecem gravadas de forma agradável na minha memória, e eventualmente me pego recordando, como se pudesse degustar aquelas sensações de novo se me esforçasse pra lembrar de um detalhe a mais. E lembrava principalmente agora, que a primavera acabava de chegar a Paris - para onde nossa família se mudou dois anos atrás, por conta de um novo emprego dos meus pais na área de biotecnologia.

Como uma boa cidade turística em um país turístico, tudo aqui parece impecável para receber os visitantes que viriam a qualquer época do ano, mas a primavera costuma ser um dos seus períodos favoritos. Afinal, teriam a chance de ver Versalhes com seus jardins completamente floridos, Bordeaux com suas vinícolas em esplendor máximo, ou até mesmo a própria torre Eiffel, de arredores tingidos de rosa pelos ipês que floresciam a essa época.

Mas a verdade é que tudo tem um ar especial na primavera. Tudo parece mais feliz, mais romântico, mais bonito. As pessoas também. O clima não é tão frio, então dá uma sensação boa se você quiser caminhar com alguém, ir a algum restaurante ao ar livre, ou até parar em uma pracinha para admirar a natureza que desabrocha, como uma obra de arte em cores vívidas. E isso me pareceu ser uma boa ideia quanto ao que fazer agora: sentar próximo a uma das árvores do Parc des Buttes-Chaumont, que não fica muito longe de casa, e aproveitar o clima enquanto não chega a hora de arrumar as coisas e ir à faculdade (em que atualmente curso arquitetura e urbanismo).

Não estou exatamente desacompanhando dessa vez, já que tenho a companhia das minhas aquarelas de desenho e do meu grande caderno próprio para esse tipo de pintura. Sim, eu amo pintar, desenhar, qualquer coisa que me permita registrar em imagem e com minhas próprias mãos quão lindo é tudo que vejo à minha frente. Por isso Paris não me pareceu um destino tão ruim assim quando pensamos em nos mudar: é o lar dos meus artistas favoritos. Me sinto como em um quadro de Monet ou Renoir quando olho ao redor, e isso nunca deixou de me impressionar um pouco.

Com traços leves, tento inserir no desenho o modo como a luz do sol do começo de Junho incide nas grandes árvores, que balançam em um sinfonia perfeita com o vento primaveril. Tento prestar atenção em cada detalhe, para não deixar nada de fora das minhas pinceladas rápidas.

Foi então que notei um novo detalhe na paisagem. Um rapaz de cabelos lisos e ruivos caindo repicados de leve pela nuca, sentado em um banco, a alguns metros de distância. Parecia ser alto, tinha alguns piercings na orelha e um no lábio inferior. Seus músculos destacados por baixo da camiseta branca e casaco preto de botões despojado indicam que provavelmente deveria malhar. Era bonito, e mais que isso intrigante.

Talvez pudesse ser chamado de "delinquente juvenil" por alguém que costumasse julgar só por aquele semblante, mas esse não é um termo que eu queira usar. Eu não o conheço, e taxar alguém só por um olhar ou dois não é algo que vá me parecer certo. E na verdade, o tal homem parece ter a minha idade ou até ser mais velho que eu, e eu tenho 18 anos, então mesmo que julgar fosse o caso, não poderia chamar de "juvenil".

"Mas vamos lá, a ideia é representar a paisagem como a vê, não é? Cada parte dela. Com todas as pessoas."

Pensando nisso, concentrei-me no rapaz adiante e deixei que minha imaginação tratasse de por no papel os detalhes que eu não conseguia enxergar pela distância. E quanto mais atenção prestava, mais curioso ficava. Ele parecia refletir sobre algo. Por que será que estava sozinho? Estava esperando alguém? Às vezes ele parecia falar consigo mesmo, e eu não entendia muito bem, tentando, inutilmente, ler seus lábios.

Também não se parecia muito com os outros franceses com os quais tive contato até agora. O jeito como se vestia era bem próprio, não parecia seguir exatamente os novos conceitos de moda de Paris, que costumavam ser seguidos à risca pela maioria dos parisienses. Sua pele era branca, mas bronzeada, em um tom saudável. Precisei me esforçar para misturar as cores de forma que resultassem na matiz certa daquele tom de pele.

Para os retoques finais - e sabe-se lá o tempo que demorei apenas naquela figura - dei mais uma espiada à minha frente. Foi então que notei. Ou melhor, não notei: ele não estava mais lá. Soltei um suspiro de frustração e deixei os lápis e o pincel caírem sobre a grama em que eu me sentava abaixo da árvore. Talvez eu tenha me empolgado demais com a ideia.

Dando um olhada melhor no papel de tamanho médio em meu colo, percebi que estava quase completo. Senti os cantos da boca dobrarem-se levemente em um sorriso que não se desfez com facilidade. Tinha gostado do resultado até aqui. Acho que iria mostrar ao meu irmão quando chegasse em casa, ele costumava gostar de ver meus desenhos.

– Você desenha bem, garoto. - Disse uma voz masculina e levemente rouca, que provavelmente teria me feito cair de susto se eu já não estivesse sentado.

Virei o rosto o mais rápido que pude com o coração acelerado pelo susto, e me deparei com ele. Sim, ele, o homem que eu estava pintando até alguns minutos atrás. De mais perto, pude reparar em detalhes que nunca perceberia antes: uma cicatriz pequena no canto da testa, a calça um pouco rasgada do joelho pra baixo, o cheiro de perfume, e agora uma espécie de sorrisinho se formando, como se estivesse querendo segurar o riso.

– A-Ah, eu... - Não sabia ao certo como responder. Subitamente senti-me nervoso e me perguntava se ele não havia notado que eu o estava pintando. Talvez fosse por isso que eu sentisse que ele queria rir de mim. Por céus! O que eu deveria dizer? Era mesmo esquisito um estranho começar a te desenhar sem mais nem menos no meio de um parque. - Obrigado.

Pude sentir a vergonha de não ter conseguido explicar nada subir pelo meu rosto até as bochechas, que provavelmente se tingiram de cor-de-rosa. Isso não ajudava muito. Tudo que eu poderia fazer era torcer para que não notasse que era ele a figura sentada em um banco no meu desenho.

– Posso ver? - Ele se abaixou um pouco, analisando mais de perto o que eu havia feito. Parecia surpreso, e eu senti que varria minunciosamente com os olhos cada pincelada que eu havia dado. Nenhuma reação brusca ou fora do comum em algum sentido ruim, então tive a impressão de que as minhas preces tinham sido atendidas. Ao menos em nenhum instante ele pareceu incomodado. - Você é um artista.

Não havia sido uma pergunta, e sim uma consideração.

– Na verdade, eu desenho nas horas vagas. - Sorri como agradecimento, por mais que ainda me sentisse um tanto constrangido. - É que, não sei. Só gosto de desenhar. - Ponderei. - Não que isso me faça um artista, mas eu realmente agradeço pelo elogio.

Ele passou alguns instantes em silêncio, alternando os olhares entre minha aquarela, eu e a paisagem. Não soube desvendar o que aquele tipo de expressão denunciava, mas foi o suficiente para que eu ficasse curioso de novo.

– Não tem que ficar me agradecendo, eu falei porque acho mesmo. - Talvez ele tenha tentando soar gentil, embora não fosse exatamente o que suas palavras demonstrassem. Mas eu achei engraçado que usasse aquele tom, então acabei sorrindo como forma de controlar o riso. - Este aqui sou eu?

Oh, não. Não, então ele percebeu mesmo. E eu não estranharia que me indagasse o motivo de eu ter desenhado um desconhecido sem a autorização do mesmo. Mas, como não tinha nenhuma saída melhor que essa, simplesmente falei a verdade, sabendo que provavelmente o máximo que ele poderia fazer seria me taxar de garoto esquisito que ir embora. Ou me dar algum sermão. Não importava tanto assim, afinal.

– Bem. - Tomei fôlego. - É. Eu pretendia desejar a paisagem, mas como você estava lá, pensei que será legal não perder nenhum detalhe. Me perdoa se te incomodou, eu..

Ele me interrompeu com outro riso. Podia jurar que se risse de mim seria de escárnio, mas na verdade me pareceu um riso sincero. Pelo visto ele via certa graça em mim e na minha situação.

– Que é isso, incomodou nada. É a primeira vez que me desenham. 'Tô grato que eu não precise pagar pra ninguém desenhar, porque eu não ia pagar mesmo. - Ele sorriu, e eu estava sem graça, mas sorri de volta, feliz que ele tivesse levado isso no bom humor. - Se bem que... Você desenha muito bem mesmo, garoto. Pra você eu até que pagaria.

Devo admitir que fiquei feliz com essas afirmações. Ele parecia ser um cara legal, embora talvez botasse medo em algumas pessoas por aquela aparência: o fato de ser alto, os piercings, os músculos, o cabelo ruivo e tudo mais. Mas não dá pra ficar com medo quando ele sorri daquele jeito. É o tipo de pessoa com quem você quer passar horas conversando, embora eu não me parecesse muito com ele em nenhum desses aspectos. Aliás, devo ser exatamente o tipo de pessoa que parece querer fugir de você quando você pressiona uma conversa. E às vezes até quero sim, mas não agora. Não sou lá muito bom no que diz respeito a manter diálogos, mas nesse caso me pareceu confortável, natural.

Quando dei por mim, ele já estava sentado ao meu lado, e a conversa fluía muito além do desenho. Fluía quase com a mesma intensidade do vento que nos envolvia e balançava as folhas coloridas das árvores e suas flores, como uma música que só era possível de se escutar naquela época.

– Leon? - Me esforcei para pronunciar direito dessa vez.

– Leon. Caramba, você fala tipo "Líon". - Ele riu da minha tentativa, novamente frustrada. - Os escoceses não têm esse fonema, "Le"?

– A gente não fala desse jeito. - Acabei rindo também. - Leon Kenway. É um nome bem americano. Se você não tivesse me dito de onde era antes de me dizer seu nome eu podia até ter adivinhado.

Uma folha pousou lentamente na minha cabeça depois de cair da árvore acima de nós, mas ele tratou de retirá-la com cuidado antes que eu mesmo pudesse fazer isso. Pensei em agradecer, mas a voz falhou e antes que conseguisse tentar mais uma vez formar as palavras na garganta ele continuou:

– Allan Verlaine. - Falou devagar. - Pronunciei seu nome certo?

– Sim. - Sorri. - "Allan" é um nome escocês, mas você pode chamar também de inglês porque o gaélico escocês e o inglês vêm do anglo-saxão, então se parecem. Sem falar que a maioria das pessoas na Escócia fala inglês, é a língua principal, como parte do Reino Unido. "Verlaine" é um sobrenome francês, acabei herdando por parte de mãe.

– Wow, deve ser legal saber sobre essas coisas. Acho que tudo que eu sei do meu nome é que foi meu pai quem escolheu e a que a sua pronúncia pra ele é uma gracinha. - Sorriu de canto.

Custei a reagir a isso. Não que não tivesse gostado do comentário, mas não estava acostumado a elogios assim. Talvez alguém de fora ao ouvir isso fosse considerar um flerte. E eu não sabia o que considerar, mas senti mais uma vez aquele calor subir do pescoço até as bochechas, fazendo-as corar. Estava com vergonha. Não, ele não estava flertando comigo, embora fosse o que parecesse, eu precisava me controlar. Devia estar imaginando aquilo porque queria que ele estivesse. Porque estava o admirando, um cara tão legal, tão bonito e que me dava tanta curiosidade. Com certeza alguém assim não deveria ser gay, não deveria ser como eu. Então eu não deveria pensar assim, ou supor coisa alguma. O melhor seria agir como se não pensasse nada daquilo. Mas meu corpo insistia em me trair e acabar travando em certos momentos.

É verdade, a nossa conversa estava fluindo muito bem, até que ele disse aquilo e eu fiquei sem reação. E a culpa era minha. Ele falava de um jeito que fazia tudo parecer menos sério, e eu precisava levar isso em consideração. Não sei o motivo de eu ter ficado nervoso com um simples mal entendido que foi todo meu.

– Ei, loirinho. - Dessa vez era ele quem parecia curioso. Eu devia estar sem responder a muito tempo, ou parecendo nervoso. - Em que tá pensando agora?

– Nada. - Comemorei internamente por não ter vacilado na resposta. - Hm, pra ser sincero, acho que eu estava pensando só que estou meio atrasado pra faculdade.

E eu não estava mentindo. Eu já deveria estar lá há pelo menos 10 minutos se quisesse assistir a primeira aula, mas não estou me importando tanto. Sabia que parte dos professores de hoje não iria por conta da greve de ônibus, e eu poderia pagar depois as cadeiras dos que fossem mesmo. Mesmo assim, antes eu pretendia ir. Agora não tenho mais essa pressa.

– 'Tô te atrasando? - Pareceu se surpreender um pouco. - Isso quer dizer que tem que ir. É uma pena, então. É legal falar com você. Mas a gente vai se falar de novo, né?

Ele estenderia sua mão para me cumprimentar como despedida, mas eu a segurei pacientemente.

– Eu não vou hoje. - Sorri. - Vários professores vão faltar por conta da greve de ônibus, e acho que posso pagar as matérias que tiverem aula depois.

Pra ser sincero, faz tempo que eu não tinha essa sensação. De ter um amigo, fazer uma amizade. Era sempre algo muito precioso pra mim, até porque acabei perdendo os melhores amigos que tinha quando me mudei. E a culpa devia ser um pouco minha. Estava sempre tão trancado nos meus pensamentos, com medo de ter contato, com medo de decepcionar as pessoas com esse contato ou com a falta dele, que me fechava estudando, lendo, desenhado, pintando, ou como mais conseguisse fugir. Ficava inerte.

Mas o modo como uma simples conversa com esse rapaz sincero, o Leon, me fazia sentir mais confiante era estonteante. Eu tinha vontade de falar com ele, e esse era um começo. Era o começo. Como o desabrochar de uma flor que passou tanto tempo fechando-se para si mesma. Quase uma primavera interior.

Não sei se ele tem ideia do que uma conversa simples em um parque embaixo de uma árvore acabou de causar em uma pessoa como eu. Devo ser um bobo, besta, seja lá o adjetivo que possa escolher. Mas sinto-me grato a ele por isso. Por ter me dado essa chance e não se assustado com esse meu jeito tão "meu". Ele era bem diferente de mim, e eu podia notar até pelo jeito que ele fala. Mas não que isso realmente importasse pra algum de nós.

Éramos só dois caras sem nada pra fazer conversando em um espaço público. Era só um cara incrível sentado bem do meu lado, que me envolvia com tudo que dizia. Não sei em qual das duas coisas eu pensava mais, mas as duas me deixavam igualmente contente. Considerar qualquer uma delas seria uma raridade pra mim, independente do sentido.

– Você não tem cara de quem costuma faltar aula. - Ele falou, rindo um pouco, enquanto olhava as pessoas que andavam de bicicleta ali perto.

– É porque não costumo. - Sorri, e era verdade. - E você?

– O que tem eu?

– Costuma faltar aula?

Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Parecia pensar no que dizer, e franziu um pouco as sobrancelhas, como se em dúvida. Diante dessa reação, imaginei que talvez não gostasse muito do assunto que se seguiria e quase me arrependi de ter perguntado.

– Na verdade eu não faço faculdade. - Falou lentamente. - Não é muito a minha praia. Eu trabalho.

Confesso que fiquei um pouco mais surpreso do que deveria. Sim, ele tinha cara de quem trabalhava desde cedo, mas mais uma vez caio na minha filosofia de "não julgue as pessoas pela primeira impressão". Será que ele tinha largado? Ou simplesmente não tinha interesse em estudar? De toda forma, não era algo que eu fosse perguntar agora.

– Entendi. - E também entendi o recado. Sem mais perguntas sobre a vida escolar do meu ilustre novo amigo. – Gosta do seu trabalho?

– Gosto. - Dessa vez obtive uma resposta mais rápida e pude ver um sorriso se formar no canto de seus lábios. - Trabalho em uma loja de música.

Devo admitir que isso foi algo que me interessou. Sempre admirei a música como forma e expressão da arte, então vez ou outra tentava me informar sobre o assunto. Até cheguei a fazer aulas de piano quando mais novo. Eu ainda sabia alguma coisa, mesmo que não fosse exatamente um prodígio ou coisa parecida. Mas admirava muito quem fosse.

– Mesmo? - Talvez a minha voz tenha saído um pouco mais animada do que era a intenção. - Deve ser legal trabalhar em um lugar assim.

Ele confirmou com a cabeça e me dirigiu um longo olhar. Tão longo e perdido que cheguei a imaginar que não fosse a mim que ele olhasse, e sim que havia sido eu o ponto que arbitrário que ele encontrou à sua frente para se perder em pensamentos. Assim como eu fazia quase sempre.

Pelo visto não éramos tão diferentes assim, em alguns aspectos.

Alguns minutos se passaram em silêncio, mas mesmo esse tempo sem palavras não me pareceu incômodo. Eu o entendia nesse sentido. É estranho como parece que as pessoas sempre exigem que você esteja dizendo algo, mesmo quando você sente que naquele momento tudo que precisa partilhar em termo de ideias é consigo mesmo. Não por egoísmo, mas porque sempre somos as melhores pessoas para entender a nós mesmos, e ninguém mais pode, deve ou consegue exercer esse papel plenamente. Claro que momentos de contato são fundamentais e especiais, porque significa que estamos dividindo parte do que somos com aquela pessoa. Mas quando estamos em silêncio, dividimos a nossa presença, ou o simples fato de estarmos lado a lado.

Foi então que ele interrompeu minhas reflexões e se pôs a falar baixo:

– Acho que sim. - Dirigiu seus olhos a mim mais uma vez, mas dessa vez estavam fixos aos meus, então eu sabia que não estava perdido novamente em divagações. Ele se aproximou um pouco, e voltou a sorrir gentilmente logo em seguida. - Quer ir lá algum dia desses?

Fiquei feliz com o que ouvi. Como poderia não ter ficado? Queria conhecê-lo melhor. Essas nossas horas de conversa para mim ainda não foram suficientes. E espero que pra ele também não, se queria me ver de novo.

– Quero. - Sorri sinceramente.


O jovem de 19 anos e cabelos rubros esperava junto a uma grande construção de época no coração de Paris. O prédio de quatro andares e largas janelas fazia sombra na calçada, e Leon havia escolhido esperar sua ilustre companhia ali, já que a primavera do final de Agosto logo acabaria, e os raios solares nessa época castigavam as ruas, como se um aviso ao que estava por vir no verão. Pacientemente, aguardava enquanto o horário combinado, as 17h, não chegasse.

Checou seu celular mais uma vez. Eram 16:58.

Pelas últimas semanas em que se falaram bastante, tinha acabado por aprender um pouco a rotina de Allan, que era um ano mais novo que ele e mais de uma dezena de centímetros mais baixo. O tal loirinho de pele tão alva quanto uma flor copo-de-leite provavelmente teria saído da aula às 16:30, e meia hora deveria ser o tempo que demoraria a chegar até o lugar onde tinham marcado de se encontrar.

A verdade é que Leon estava ansioso para encontrá-lo mais uma vez. Pensava em envolver aquela delicada cintura em um abraço, admirar seu sorriso sincero e adorável e ouvir aquela voz tão doce chamá-lo de novo. Amava seu jeito. Amava tudo sobre ele, mesmo sendo tão contrário ao que considerava de si mesmo.

Sim, acabou por apaixonar-se por aquela curiosa figura que decidira pintá-lo sem mais nem menos em um dia florido no Parc des Buttes-Chaumont. E Leon não poderia àquela época, em hipótese alguma, esperar que um dos piores dias de sua vida se transformasse em um dos melhores.

Naquela sexta-feira primaveril, havia acabado de brigar com seu padrasto, e por consequência com sua mãe. Não o suportava, e disse-lhe isso poucos instantes de descobrir que teria um irmão. Ótimo. Era tudo que precisava. Menos chance de se separarem e de ficar longe daquele cara. Não queria um irmão, queria morar com seu avô, e que se danasse seu padrasto troglodita e o bêbado do seu pai - que nem fazia questão de saber onde estaria em um dia como aqueles. Ou melhor, não só não fazia questão de saber, como deveria estar fazendo questão de gastar o pouco dinheiro que ainda tinha com alguma prostituta barata da Califórnia. Precisava sair de perto daquilo tudo, precisava respirar ar fresco. E um parque do outro lado da cidade foi o mais longe que conseguiu pensar para refrescar a mente.

Quando soube disso, Allan pouco soube escolher as palavras de imediato. Notara algo errado naquele dia, mas não imaginou que por trás de tantos risos e sorrisos se escondessem coisas desse tipo. Mas tendo o jeito que tinha, não poderia ter deixado de ajudar. Arrumou as expressões à sua forma, e tiveram mais algumas longas horas de conversa sobre o tema na porta de Université de Paris, que resultaram em algumas lágrimas escapadas, momentos confortáveis de silêncio e carinho, e o primeiro beijo que trocaram. Estavam namorando há duas semanas.

Eram 17:08 quando um dos ônibus públicos parisienses estacionou do outro lado da rua. Leon o seguiu com os olhos, e sorriu quando viu uma figura conhecida caminhar apressadamente enquanto o sinal permitia a passagem de pedestres. O loiro usava um suéter creme que lhe caia muito bem com uma camiseta de gola branca por dentro, além de uma boina de lã preta que insistia em cair um pouco de lado quando caminhava. Estava quente, como ele conseguia ser tão friorento? Leon riu com a ideia, e deslocou-se para mais perto da faixa de pedestres.

– Me desculpa pela demora. - Allan estava um pouco ofegante por andar depressa demais para seus padrões, mas parecia visivelmente satisfeito por ter seu namorado à sua frente, coisa que inevitavelmente lhe arrancou um sorriso discreto. - O trânsito.

O ruivo, por sua vez pouco se importando com as pessoas que passavam pela rua ou nos carros, envolveu-lhe a cintura gentilmente com um dos braços, depositando-lhe logo em seguida um beijo no topo da cabeça, próximo à boina. O gesto causou um leve arrepio no menor, e por consequência um sorriso no maior.

– Você só se atrasou oito minutos, amor. - Riu. - Não vai matar ninguém. Mas eu fiquei com saudades mesmo assim. - Disse, fazendo-lhe carinho nos fios loiros que caiam levemente sobre as bochechas rosadas à medida que ficavam mais longos.

Allan estava feliz. Verdadeiramente feliz com aquele momento, e com todas as mudanças que haviam acontecido em sua vida por causa daquela pessoa, que ele havia aprendido a amar. De início fora difícil para ele compreender e aceitar que tipos de sentimentos eles tinham, e que os tinham de forma recíproca.

Não porque não soubesse que era gay (afinal tinha uma boa noção de sua sexualidade desde os 12 anos, por mais que a família não aceitasse isso muito bem). Mas porque tinha um medo quase extremo da rejeição ou de perder um contato por conta dela, então sempre arranjou um jeito de colocar na cabeça que qualquer atração ou paixão que sentisse deveria ser guardada em troca de manter uma boa amizade. Mesmo assim, em certo ponto não poderia negar que estava completamente apaixonado, e Leon já o conhecia o suficiente para entender que algo estava diferente. Conversaram de forma aberta sobre ambos sentirem atração por homens, e isso foi um grande passo para que a aceitação do jovem de 18 anos para consigo mesmo e com a nova situação se desse de forma lenta.

– Amor... - Falou, chegando mais perto do namorado para apoiar-se em seu tórax. Estava envergonhado, mas gostava de ficar assim. Era confortável, e podia sentir-se tão próximo a ele quando gostaria de estar. - Pra onde vamos? Você me falou pra vir pra cá, mas não disse pra onde a gente vai sair.

– Pra um lugar que eu já tinha prometido que iríamos. - Considerou, percebendo a curiosidade do loiro. - E eu sempre cumpro as minhas promessas.


– Então é aqui que você trabalha! - Exclamou o mais novo.

O garoto estava realmente impressionado. Era uma loja de tamanho razoável ao estilo vintage americano dos anos 60, com preto e branco predominando na decoração junto aos discos de vinil. Havia inclusive vitrolas de verdade, que não só funcionavam, mas tocavam "Let's Twist Again" na voz de Chubby Checker.

No estabelecimento era possível encontrar desde palhetas personalizadas até um imponente grand piano, que descansava sozinho em um dos cantos da sala, estando um degrau acima do nível do piso do resto do cômodo. Nas paredes era possível ver guitarras coloridas, das quais destacavam-se as vermelhas, cujos tons diferentes estavam todos agrupados. Allan lembrou que deveria ser uma daquelas a que Leon tinha, coisa que descobrira semana retrasada.

Camisetas de bandas (predominantemente de rock) e CDs também eram fartas na loja, e ficavam no canto oposto ao grand piano, próximas à secção de cordas. O loiro sorriu de leve ao lembrar também que já havia visto o namorado usar algumas delas, então supôs que deveria ser ainda mais fã dessas coisas do que aparentava ou dizia ser. Sim, definitivamente, um trabalho adequado à sua personalidade.

– Caramba. - Olhou ao redor, ainda embevecido por conhecer o lugar e associá-lo a Leon de tantas formas. - É realmente muito bonito aqui, e é a sua cara.

O ruivo pareceu satisfeito com o comentário, mas apenas fez um sinal com a cabeça e retirou da parede uma das guitarras. Vermelho profundo, parecida com a que tinha em casa. Allan se perguntou se seria da mesma marca.

– Não é por coincidência, mas estamos sozinhos aqui. - Leon comentou, de forma quase orgulhosa. - Eu tenho as chaves, e hoje o patrão disse que iria fechar pra reabestecimento do estoque. Por isso não tem tanta coisa quanto normalmente tem, precisa vir depois em um dia que estiver lotado de instrumentos novos.

Riu em seguida, e deixou a guitarra sobre o colo enquanto a ligava a um amplificador sobre o balcão e se sentava em uma das cadeiras próximas a ele, fazendo sinal para que Allan o seguisse. Este obedeceu sem delongas, e estava realmente curioso quanto ao talento de seu jovem amante. Por isso, acompanhava com os olhos cada movimento, como se cada um deles fosse extremamente essencial. E para ele, era mesmo.

– O que quer que eu toque? - Falou, acariciando mais uma vez a face do mais baixo, que colocava sua boina sobre o balcão e ajeitava os cabelos.

– Hm, que tal uma música que gosta? Qualquer uma. Quero conhecer. - Sorriu.

– Tá certo. - Aceitou, mas logo um sorriso malicioso se formou em seus lábios finos. - Mas depois você vai também ter que tocar uma que goste.

– A-Ah?! Mas eu não... Leon, eu não toco guitarra, sabe disso.

– Eu não estava falando da guitarra.

O rapaz de cabelos rubros, notando a confusão do outro, endireitou-se na cadeira e levou uma das mãos a apontar para o grand piano que ficava a algumas passadas do local onde estavam.

– Você disse que tocava piano quando era menor, não é?

Allan abriu a boca e pretendia dizer algo, mas suas cordas vocais lhe traíram. Não fazia ideia de como ele lembrava disso. Pelo visto o Kenway tinha uma memória melhor que o previsto, mas sim, era verdade que já tocara.

– Eu tocava, mas perdi o jeito.

– Ah, vamos. - Colocou a mão sobre a de seu namorado e entrelaçou-lhe os dedos de forma suave, observando enquanto o loiro sorria envergonhado. Ele era realmente tímido, e Leon entendia isso, mas queria estimulá-lo a sentir-se mais seguro com ele. E, aos poucos, de fato parecia estar dando certo. - Só eu vou te ouvir. E você vai me ouvir tocar agora também, não é? A gente pode errar à vontade, você e eu. Não precisa se sentir desconfortável comigo.

O silêncio que se seguiu foi breve. Os olhares um do outro, após se encontrarem, não se desviaram. Ficaram apenas se observando, ainda com uma das mãos entrelaçadas, desfrutando daquele precioso momento em comum. Foi quando, simultaneamente, sentiram a mesma necessidade, que foi compreendida no momento em que o mais alto percebeu as bochechas de seu amado corarem.

Devagar, guiou sua mão livre até a face do loiro, que correspondeu tocando-a de leve enquanto tinha a pele tocada de forma gentil. Um sorriso brotou no rosto de ambos, e só se esvaiu quando a aproximação de Leon permitiu que seus lábios se encontrassem. Os de Allan eram macios nos dele, e ambos se moviam em uma sincronia quase perfeita. Foi um beijo doce, paciente, que durara apenas o suficiente para que se sentissem um pouco mais completos um do outro, mas o suficiente para tirar o fôlego.

Separaram-se sem pressa, aproveitando aquele instante que tinham juntos preenchendo-o com mais olhares. Depois de alguns minutos, Leon endireitou-se na cadeira, pondo a guitarra em seu colo e segurando seu cabo tentando recordar-se.

– Se é pra ser uma que eu gosto... - Treinou alguns acordes iniciais, antes de começar a música. - Acho que pode ser essa daqui. Toquei em um show de talentos da escola na época que eu ainda estudava, então acho que ainda sei bem os acordes.

But if I try
To make sense of this mess I'm in
I'm not sure where i should begin
I'm falling, I'm falling

Allan prestou atenção nos sons de guitarra e na voz levemente rouca e de tom grave que tanto gostava, ambos ecoando pela sala vazia em um ritmo sincrônico. Conhecia aquela música, porque era o toque do mais velho, e ele já havia tido a curiosidade de pesquisar para ouvir a versão completa. Era uma música de rock do início dos anos 2000, "Over My Head", do Sum 41. Sorriu, pensando ser bem a cara dele, e amava ouvi-lo cantar.

– E aí, o que achou? - Riu. Tinha dado melhor de si, e um dos reais motivos pelos quais escolhera aquela música fora para tentar impressionar seu pequeno.

– Você toca tão bem! - Qualquer um com um olhar um pouco mais perceptivo poderia jurar que seus olhos cor de mel brilhavam naquele instante. - Podia me deixar te ouvir mais vezes, hm? A sua voz é linda. - Considerou sinceramente.

– Obrigado. - Pareceu satisfeito com a resposta. Pra ser sincero, queria uma dessas mesmo. - Mas agora é a sua vez.

O mais baixo encarou-o e pensou em negar, mas aquele beijo havia sido uma espécie de consentimento, e não era exatamente o tipo de "promessa" da qual conseguiria se livrar facilmente.

– Está bem. - Suspirou. - Acho que tenho algo em mente. - Sorriu.

Os dois caminharam até o grand piano e Allan sentou-se confortavelmente na cadeira, levantando a madeira preta e lustrosa que cobria o grande teclado. Era realmente um belo instrumento, e supôs que deveria também ser caro. Mas preferia não pensar nisso. Pensaria no quão feliz estava por estar ali.

– Então qual vai ser? - Leon também parecia curioso.

– Conhece Vivaldi? - Passou os dedos pela superfície branca e preta das teclas.

– Aposto que todo mundo conhece. Mas acho que não saco tanto de música clássica quanto você.

Leon posicionou-se por trás do garoto do piano, abaixando-se um pouco e envolvendo-lhe mais uma vez a cintura com os braços e beijando-lhe a bochecha, provocando outro tão conhecido arrepio.

– Bem, essa costumava ser minha música favorita dele. E achei que deveria escolher esta, porque me lembra bastante o dia que te conheci. Estava com ela na cabeça. - Posicionou as mãos tentando lembrar-se das partituras que costumava ler. - Faz parte da orquestra mais famosa dele, a Quatro Estações, ou Four Seasons.

Começou a tocar, tomando cuidado para manter um ritmo constante. A melodia era de certa forma contagiante, nem agitada nem lenta, tinha um quê artístico. Leon tinha noção de que Allan deveria saber bem o que fazia em um piano, mas lhe pareceu ainda mais bonito que o esperado. Tanto a música quanto seu semblante sorridente ao tocá-la.

– Nossa, é realmente lindo. - Pareceu quase boquiaberto. - Qual o nome?

– Primavera.


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Notas finais do capítulo

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