O Prisma escrita por Yellow


Capítulo 5
Cidade dos Anjos


Notas iniciais do capítulo

FELIZ ANO NOVO!! É, 2015 acabou :(, mas ainda temos todo o tempo de mundo!
Desejo-lhes um feliz ano novo, e muitas felicidades; vida próspera e etc, coisas do tipo!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/656285/chapter/5

Os corredores escuros eram os mesmos de sempre.

E, como todos os outros dias, ele tinha um pouco de medo de passar sozinho por aquela parte do orfanato. Não era tão assustador, mas desde criança algo ali o deixou receoso, uma coisa estranha estava impregnada lá, todavia Enzo nunca soube explicar o que. As sombras pareciam avançar mais, o acolher friamente, deixando as pernas bambas.

Mas como as outras vezes, teve que atravessar mesmo assim. Via os quadros nas paredes para se distrair. A mesma face eternizada daquela mulher de cabelos pretos, e rosto de coração. Diziam que ela era a fundadora dali, mas não havia outro tipo de homenagem para que isso se confirmasse.

Chegou na antessala quadrada e alaranjada, onde dispunham sofás de couro e uma tevê ligada, em um canal no mudo. Já havia passado da hora das crianças dormirem, e não era comum descumprirem as ordens dadas pelas cuidadoras, elas podiam ser doces e atenciosas, mas eram rígidas e bravas quando queriam ser. Enzo só havia levantado pelo mal presságio e para pegar um copo de água na cozinha, caso o contrário, fosse apenas uma insônia típica, continuaria na cama.

Lentamente desligou a televisão, ainda zonzo de sono.

O local foi tomado pelo silêncio total, com nenhuma estática ruindo. Toda ação que fazia ali era como um tiro em um vidro, e ficou cauteloso para não acordar ninguém. Foi até a cozinha, e, tentando não fazer barulho ao pegar um copo de vidro, o encheu.

Viu um movimento nas sombras, se antecipou antes de pensar em balbuciar um feitiço. Convivia com outras crianças, ordinários que mal podiam imaginar que a magia existia, e que Enzo tinha tais dons. O surpreendendo, quem saiu de trás da porta não foi um de seus colegas de abrigo, e sim uma das cuidadoras.

Beth era, em suma, uma mulher cansada. Os cabelos castanhos com mechas acinzentadas, a expressão cansada, com olheiras fundas e roxas, porém muito sorridente e expressiva. Os ombros finos estavam baixos. Ele olhou para ela, e recebeu o olhar escuro, cor de carvão. Os olhos rígidos e sérios, presos nele.

— Beth…? — disse, mais como uma pergunta. — Você…

Ela se afundou na geladeira atrás dele, o ignorando.

— Já estou de saída. — falava, com a cara ainda procurando algo naquele gelado. Voltou, com o rosto fundo e cansado.

Enzo reviu as rugas de fadiga pela milésima vez, poderia descrever o rosto dela como descreveria o seu. Aquelas linhas sutis que compunham aquela face tão fina e pequena, delicada como a mais cara das porcelanas. Desde que Enzo apareceu naquele lugar, sem muita ideia de quem era, ela o ajudou, sempre.

Dentre todas as crianças dali, Beth desenvolveu um laço quase materno com Enzo, justo por ele ser como ela, um mago. O ajudou a controlar-se quando perdeu o controle dos poderes e quase incendiou tudo. Enzo podia rever a cena em sua mente. O dedo fino, que mal cabia o anel que viera com ele, piscando em luzes multicoloridas, que incendiavam o local. Ele gritava sem saber o que estava acontecendo com ele mesmo.

Beth no mesmo dia explicou o que eram, e como os poderes de ambos funcionavam. Daquele dia em diante ela se propôs a treiná-lo, a ajudá-lo em controlar sua mágica, e a usar ela conforme queria.

Mas o tempo passou rápido para os dois. Beth era uma enfermeira residente no hospital da cidade, e só havia voltado para lá para acertar pendências que tinha, desde anos atrás de quando morou lá. Acabou arranjando um emprego provisório de cuidadora daquele orfanato. Foram menos de três anos da imensa amizade deles. Enzo contava suas chateações para Beth, tudo o que vivia, quando voltava da escola com as outras crianças do abrigo. Ela sempre o recebia de braços abertos, perguntando sobre seu dia.

Enzo também aprendeu muito daquela mulher. Ela já havia sido vítima de um feitiço que a deixou com os cabelos brancos, e que a fazia se cansar com mais facilidade, comparada a uma pessoa sadia. Por isso ela parecia ser tão frágil, como uma boneca de porcelana prestes a quebrar. Beth dizia pouco sobre como adquiriu aquela síndrome, mas uma certa vez disse que foi um conhecido.

— Amadeus. — falou, enquanto olhava para a parede, naquela tarde que Enzo reviu em seus pensamentos. — Amadeus Vilanova. Um feiticeiro.

Ela não veio a revelar mais nada, e Enzo sempre se perguntou como ela acabou arranjando confusão com o tal feiticeiro. Em todos os aspectos, Beth era pacífica, uma alma amena naquela sociedade caótica. Diferente dele, dedicava sua existência a uma causa. Usava seus dons para salvar as pessoas, as curando em casos graves e sem salvação. Enzo era uma pessoa sem causa. E, apesar de ser extraordinário, era apenas mais um ninguém. Outro infernal daquele submundo.

— Enzo? — ela o chamou, o tirando da linha tênue que eram seus pensamentos. O sono o induzia a ter aquelas viagens pela mente, pensando em coisas que o tiravam de situações reais. — Você está bem?

Ele olhou para ela. Fazia tempo que ela não tingia o cabelo como gostava de fazer, as mechas já estavam desbotando, ficando num cinza apagado. A franja, que caia por cima de um dos olhos, já estava totalmente cor de aço.

— Estou — disse, sem muito norte da situação. — Você disse que está de saída. Como?

— Eu avisei. Já está na hora de eu ir. — Ela colocou uma mão no ombro dele. Piscou lentamente, o olhar se desmistificando embaixo dos cílios compridos e cinzentos. Tinham quase o mesmo tamanho, por parte de Enzo, por ser alto, e pelo fato de Beth ser um pouco baixa. — Já fiquei tempo demais aqui.

— Mas… — ele começou, insatisfeito, com a voz controlada saindo pela garganta seca. — Você não pode.

— Sim, eu posso — retrucou Beth, achando a situação um pouco engraçada. — Olhe, sei que você gosta de mim, e eu também gosto muito de você. É por isso que estava saindo de noite, para não magoar ninguém.

— Ia acabar magoando mais.

Ela não respondeu, engoliu em seco a resposta dele, sabendo que ele tinha razão. Não havia despedidas felizes, e os dois sabiam disso. Ela era o mais próximo de família que ele tinha, e, mesmo que ele se apegasse com as outras crianças, nunca se sentiria a vontade. Não podia viver num mundo a qual não pertencia, podia se engar, mas viver entre ordinários era algo desconfortante. Tinha que conhecer outro infernal.

— Você mesma me disse que nós, magos, somos poucos. — continuou insistindo. Beth virava o rosto. Lágrimas ardiam no rosto dele, involuntariamente. Era órfão de pai e mão, jogado na porta daquele abrigo sem memória alguma. Sua única família estava indo embora. — Temos que ficar juntos. Você me fez de seu aprendiz por isso.

Ela apertou mais os dedos no ombro dele, e, por um segundo, achou que ela fosse o agredir.

— Enzo, eu tenho um marido, amigos e uma vida. Os deixei para vir para cá, atrás do que procurava. Eu já encontrei, agora preciso voltar.

Enzo jogou as mãos para cima, desdenhando a conversa.

— Você nunca me disse o que veio achar aqui.

Ela hesitou em falar, o olhou dos pés a cabeça de uma forma que fez ele se arrepiar.

— Vim ajudar uma amiga de longa data, mas ela não precisa mais de ajuda. Tenho que voltar. — Beth respirou fundo para poder olhar para ele novamente. Lágrimas brotavam e reluziam no canto dos olhos. Ela colocou levemente seus dedos no queixo dele, e Enzo pôde ver os anéis reluzindo a pouca luz do lugar. — Você é como um filho para mim, Enzo.

E ele sentiu completamente os sentimentos presos naquelas palavras que Beth dizia. Não eram vazias, tinha certeza. Ela era estéril, e como consequência, o sonho de ter uma filha e morar com a o marido e constituir uma família era apenas mais um ideal perfeito, impossível de se concretizar. Enzo a via ficar triste quando outras mulheres perguntavam a ela sobre ter filhos, que já havia passado da hora. Beth ficava sem graça ao explicar sua situação, e como as pessoas a sua volta fingiam entender. Nunca poderia compreendê-la, pois nunca passaram por situação parecida. Ela já pensara seriamente em adotar, como já falou para ele, mas os tramites eram tão complexos que ela se desanimava. Então, como uma maga, havia encontrado Enzo, como um aprendiz. E o usou unindo o útil e o agradável. Ambos tinham feridas abertas pela falta de alguém, Enzo por não ter pais, e Beth pelo filho que nunca pôde ter.

Enzo se deixou chorar, e ela o abraçou com as forças que tinha. Um abraço quente, caloroso e recheado de amor. Se amavam, e ninguém podia discordar desse fato. Ela estava com ele, o ajudando de maneira direta e indireta desde que ele chegou naquele abrigo, com sete anos e memória que não funcionava muito bem. Ele já tinha desesseis anos agora, já podia se virar muito bem.

— Enzo — ela o chamou, o hálito quente no pé de seu ouvido. A voz sussurrando. — Ela está chegando.

— Ela quem? — Seus braços envolveram Beth fortemente.

— Magdalena.

***

Acordou assustado, pela segunda vez naquela semana.

Eram tantas peças pregadas pela sua memória, que era difícil distinguir a realidade quando acordava de seus pesadelos. Por que havia se lembrado de Beth? Aquilo não fazia sentido algum. Logo ela, que não havia hesitado em o abandonar. Dizia o amar, mas não demonstrava. E Magdalena, tinha calafrios apenas em pensar no nome da mulher que fez sua vida virar de cabeça para baixo. Afastou essas memórias da cabeça, antes de acabar pensado de mais.

Se pegou com a mãos no colar novamente, não conseguindo evitar de pensar naquelas mulheres. Os anéis que Beth lhe dera na despedida naquela noite brilharam por segundos, conforme suas emoções. Ela dizia que ele deveria ter outros anéis, para canalizar mais energia, e assim ficar mais forte. Mas, como não ligava para poder, e mal prestava serviços, deixou essa exigência abstrair. Todavia, em um raciocínio rápido, agora que estava na ativa, tinha que ser mais eficaz. Já havia falhado com Brenda, não poderia falhar com mais alguém.

Quando levantou da cama e abriu a janela, viu que a tarde já começava. Teve que dormir muito para se recompor do gasto excessivo de energia no dia anterior. Não tardou para fazer a higiene matinal. Enquanto desfrutava de seu cereal, gastou um pouco de tempo assistindo o jornal do início da tarde. Pessoas sendo encontradas mortas e outras desaparecendo, como sempre. Olhou para a janela em um ato reflexo, e viu apenas ghouls, demônios, vampiros e lobisomens. Estavam ocultos, disfarçados na sociedade, com a mesma aparência e gostos dos humanos, mas com seus verdadeiros interesses ocultos. Jordão e Ariel passaram por sua mente, a menina de madeixas louras e o rapaz desgarrado com roupas folgadas, tão ordinários que ninguém desconfiaria deles. Teve um lapso de memória no dia anterior, a garota fada, de cabelos loiros que caiam exatamente na altura da cintura, e simetricamente cortados numa franja acima dos olhos. Sentia ao longe o feitiço que encobria a verdadeira aparência dela para os ordinários ao seu redor, e os encantos de beleza que usava, como toda a fada. Imaginou se a garota ruiva ao lado dela sabia o que a amiga realmente era.

Hesitou em revirar a mala de roupas, principalmente depois de ver seu antigo grimório. Aquele livro surrado que tanto adorava, já não sabia quantas horas da sua vida havia passado na frente daquele tomo antigo, fazendo e refazendo diferentes anotações, magias, fórmulas de confecções de poções.

Na capa estavam escritas as palavras “Querer, Ousar, Saber e Calar”, as palras de todo mago, de acordo com Beth, que lhe ensinara boa parte das coisas que ali estavam. Enzo seguia sua vida baseada nessa frase, sempre queria mais conhecimento, para isso não abria mão de ousar para obtê-lo. Sentiu-se bem por um segundo, como se sua vida nunca tivesse sido de fato sua. Como se nada de extraordinário tivesse acontecido num passado recente.

Depois de finalmente comer e se aprontar, Enzo foi realizar a única coisa que tinha para fazer.

***

As ruas do centro ferviam.

E, exatamente como nos outros dias que já estivera ali, era apenas mais um no meio da multidão. Ombros se esbarrando, pés se chutando e algumas pernas ocupando espaços que deviam ser de outras. Se alguém decidisse ficar parado, certamente seria pisoteado. As pessoas andavam sérias em plena quarta feira, preocupadas com seus problemas, além das complicações ouvidas em rádios e dadas em jornais. Em uma banca, que Enzo vislumbrou a virar uma esquina numa praça antiquada, via-se a manchete em letras garrafais.

MAIS PESSOAS DESAPARECIDAS

Como qualquer outro ali, Enzo temeu um pouco. Talvez o próximo fosse ele. Era comum pessoas sumirem, afinal, pessoas desapareciam toda hora, a todo o instante. Não era estranhos os mais perdidos na vida serem raptados por infernais, como vampiros os usarem para sugar seu sangue, e jogarem os corpos fora depois, ou lobisomens em frenesi de raiva. Mas, quando os desaparecimentos já começavam a levantar suspeitas, os infernais davam um jeito de abaixar a poeira, seja se policiando ou usando de suas conexões na sociedade ordinária.

Enzo olhava as pessoas a sua volta, com rostos tão fechados e pouco receptivos. Pensou se aceitariam se descobrissem sobre os infernais, e o quão bonito era aquele jogo de sombras e luz na cidade, de dia, apenas humanos comuns, a noite, aquelas criaturas sem coração e alma. Monstros viciados em matar.

Ele sentiu o vento morno do dia sem muito sol. O céu era cor de aço, com nuvens cinzentas pairando sobre ele.

Avistou a fachada da livraria Lair entre um prédio e uma loja de departamento. Era cor de musgo, um verde morto e sem vida. As letras pintadas de vermelho estavam desgastadas pelo tempo e erosão, e, só podia realmente entender o que aquele lugar era quando se lia a pequena e modesta placa, pendurada atrás de um vidro. A mesma placa avisava que a livraria estava aberta.

Bastou abrir a porta que um sino em algum anunciou sua chegada. Seus olhos foram inundados por uma paisagem completamente diferente das ruas de ladrilhos do centro velho da cidade, apesar de ainda ter um ar antigo e clássico. O chão era constituído por ripas de madeira, que pouco rangiam quando andava-se por elas. Os corredores aleatórios feitos com estantes abarrotadas de livros finos e grossos, outros volumosos e tentadores aos olhos de Enzo, que sempre foi um ávido leitor. Ao longe, uma garota estava imersa na leitura temporária de O Ateneu, o rosto coberto com seus cabelos caramelos.

Ele passou por ela, e foi direto para um balcão de mármore que jazia ao fundo. Nele, outra jovem desfrutava de um livro que ele não conseguia ver a capa. Essa, por sua vez, tinha o rosto visível, mesmo que estando baixo, Enzo capitava suas feições. Eram aquilinas, finas e precisas. Os olhos finos e escuros, uma escuridão que contrastavam com a pele leitosa. Os cabelos eram compridos e escuros, caiam como uma cortina fina e sedosa. As pontas, notou Enzo, adquiriam uma coloração azul claro, tingidos de forma muito bonita numa cor que combinava.

Ela levantou a vista, para o ver. O analisou da cabeça os pés. Enzo sentiu algo estranho fluir por seu corpo, no mesmo instante que a olhou. Alguma coisa estava oculta por detrás daqueles olhos.

Enzo hesitou em falar algo, então ela disse:

— Posso ajudar? — sua voz era melódica, suave, em palavras mais bonitas. Soou tão sutil e empenhada no seu trabalho que ele continuou estático.

Em uma ato descompromissado, ela fechou o livro que lia, e Enzo pôde ver a contracapa de O Cortiço. E também viu a mão dela. As veias azuis aparecendo sob a pele do braço, e saltando quando chegavam ao pulso. A pele da mesma cor das pontas do cabelos parecia emitir um leve brilho, que ele não sabia distinguir direito. Nas vértebras, algum tipo de casca avermelhada revestia, fazendo do que poderia ser uma simples mão de uma garota delicada, a mão de um demônio.

Não foi difícil descobrir o que ela era. Uma bruxa, certamente. A assinatura demoníaca em sua mão esquerda comprovava esse fato. Virou o rosto levemente para ver que a garota que desfrutava do livro no corredor agora estava ao seu lado. Ela passou por ele e perguntou o preço do livro, a bruxa respondeu, apontando com sua mão azul para uma tabela de preços presa na parede. Ela sorriu para Enzo quando o fez, pois, àquela altura, já havia desconfiado dele.

Quando terminou de atender a outra menina, a bruxa se virou para ele.

— O que procura?

— Fiquei sabendo que precisam de pessoas para trabalhar aqui. — respondeu, incerto, ainda admirando a assinatura no braço da atendente. Percebeu que estava sendo indiscreto, mas se arrependeu quando viu o olhar que a menina o lançava. Uma mistura de desprezo e interesse, já estava mais do que óbvio que ele não era um ordinário.

Ela mordeu a língua num movimento intrigante, que fez os pés de Enzo formigarem. O analisou da cabeça aos pés, capitando todas as feições dele. Certamente aquele era o momento que ela tentava descobrir o que ele era, e, com os punhos cerrados de nervosismo e os anéis pouco aparecendo, Enzo dificultava os palpites dela.

— Não é uma fada, né? — indagou, com um meio sorriso. Enzo abriu a boca para responder, mas ela o cortou. — Sei que não é, mago — falou tão certeira quanto uma flecha. — Segunda porta à esquerda. — Apontou com o indicador para lugar o qual Enzo deveria seguir.

Uma placa disfarçada revelou-se anunciar artigos de magia, em vez de achados e perdidos. Enzo viu a confusão das letras se desmistificando aos seus olhos, e se reorganizando conforme a magia desbotava em suas vistas. Passou por um arco sem porta, apenas com uma cortina de tiras de pano. O doce cheiro de incensos invadiu seu olfato.

Se viu como no orfanato onde morava. O tempo parecia ter voltado, e ele junto. Aquele enorme corredor, escuro, estreito e sinistro. O local podia ser completamente diferente, mas o medo das sombras permanecia o mesmo. Não somente das sombras, mas o que estava nelas, ou até mesmo o que só ele conseguia ver. Aquela garota bruxa, aquela mão azulada com veias vermelhas saltando…

Causavam-lhe um leve arrepio. Pensou nela usando entranhas de humanos em seus feitiços, e sorrindo, satisfeitas. Afastou-se desse devaneio terrível e se focou novamente no caminho que tinha de seguir.

O corredor acabava numa janela que deixava a luz do sol invadir. Entrou numa porta à esquerda, como ela instruiu. Um cômodo de paredes claras, piso de carpete e paredes abarrotadas de estantes. Essas, por sua vez, diferente das anteriores da livraria, não portavam livros, e sim objetos variados. Enzo viu vidro com olhos de carniçais flutuando em líquidos, ao lado presas de vampiros empilhadas em um colar grotesco, como um terço satânico. Tentou virar os olhos, mas continuou tendo sua visão assolada por monstruosidades. Asas enormes de borboleta enfeitavam a parede a sua frente, asas de uma fada adulta já morta, deduziu.

Numa pequena e redonda mesa de centro, um gato descansava, tranquilo, ignorando tudo a sua volta.

— Até que enfim alguém! — anunciou uma voz, no fundo de tudo. Enzo notou-a, era extremamente familiar. Atrás de um das prateleiras, saiu uma mulher alta e curvilínea, os cabelos escuros caindo contra as costas e contrastando com as roupas brancas que vestia. Samanta parecia mais jovial desde a última vez que haviam se visto, na rodoviária. Ela se espantou ao vê-lo.

Enzo também não pôde evitar um espanto repentino.

— Samanta? — perguntou, incerto. — Você…

E, antes de responder, viu as asas que se projetavam das costas dela. Ou pelo menos o que pareciam ser asas. Eram atrofiadas e sem penas, escuras, com os ossos aparecendo na pele e terminações pontudas. Não tinham nem um metro de envergadura direito. Elas balançaram quando a mão de Samanta foi para a boca, surpresa vê-lo.

— Enzo… — começou, ignorando o fato de ter asas. As assinaturas demoníacas em bruxos eram, totalmente, bizarras, eu ver de Enzo. Perguntou para si mesmo se valeria a pena bebe sangue de demônio para adquirir certo poder. Para ele, claramente não. Sempre teve poder, mesmo nunca querendo. Em sua posição, era difícil julgar qualquer ato parecido, seria hipocrisia. Samanta levantou o olhar para ele. — Veio comparar algo? — Apontou para trás, indicando uma das prateleiras de mogno escuro.

Dentro de um pote de vidro, ao fundo, Enzo pôde vislumbrar um besouro de carcaça azul. Ele batia fortemente contra o vidro, produzindo um barulho oco e furioso. Até que, de um momento para o outro, ele se tornou poeira cintilante. Depois de outro empurrão contra a parede de vidro, se formou, no centro do aquário.

— Não… — emendou, ainda prestando atenção no besou. — Na verdade, vim atrás do emprego.

— Mas é claro — disse, apressada. — O emprego — e foi para o lado, as asas encolheram para não baterem contra nada e provocar um dano. — Tudo o que precisa saber é vender livros.

Após um longo segundo, ele respondeu:

— Acho que isso eu sei fazer — brincou. E percebeu que Samanta já estava constrangida com a frequência que ele olhava para suas asas atrofiadas. Ela as encolhia, mas, mesmo assim, estavam expostas. Procurou um ponto aleatório para olhar, e viu uma mão de madeira, com um anel no dedo médio.

Era uma joia bonita e lustrada, apesar de, mesmo estando longe, Enzo perceber uma capa grossa de poeira. Certamente era um anel mágico, que, por lógica, já havia pertencido a um mago. Perguntou-se porque Samanta teria aquilo ali, já que bruxos não precisavam de joias para canalizar sua magia. Com passos leves, enquanto Samanta continuava o observando da cabeça aos pés com aquele olhar inquisitivo e duvidoso, ele se aproximou.

Viu os entalhes bonitos e bem trabalhados. Era de um metal prateado, que ele suspeitou ser prata ou platina. Não tinha pedras ou outras coisas brilhantes para o fazer brilhar e irradiar mais luz do que o normal, já tinha um brilho por si só. Uma glória misteriosa, que o olhar curioso e ingênuo de Enzo.

— Gostou? — Samanta perguntou.

Enzo se virou, com um suspiro.

— Sim, é muito bonito.

Após mais um segundo analisando-o, ela falou, solene:

— Pode ficar. — Sua expressão era feliz, como se tivesse dando seu maior presente para ele. Enzo não viu sentido naquilo, como alguém daria um anel daqueles para um estranho? Enzo gaguejou com resposta, ainda não sabendo ao certo o que dizer. Nunca, ninguém havia sido tão gentil com ele, talvez apenas Beth. Samanta se aproximou dele com passos firmes e rosto inalterável, ela realmente estava feliz por lhe dar aquele anel. — Foi de uma grande amiga minha, uma maga, como você.

— Não posso aceitar. — Mesmo com suas palavras Enzo não resistiu a tentação de pegá-lo. Sentiu a textura com a ponta dos dedos, e a energia correndo por aquele pequeno círculo de metal. Um formigamento inevitável se apossou de seus pés. — Não deve ter sido barato isso.

— Foi o último presente dela — Ela colocou levemente uma das mão no ombro de Enzo, uma mão aveludada e quente, totalmente diferente da filha. Ainda sim, atrás daquela figura acolhedora de olhos escuros e tão compreensível, estavam aquelas asas de pele escura e podre, que denunciavam seu elo demoníaco com os seres do submundo. Enzo contraiu o impulso de não recuar o ombro. — Depois de ela me dar isso, nunca mais a vi.

— É por isso que eu não posso aceitar.

— Pelo contrário — Samanta argumentou, sólida como uma rocha e suave como uma pluma. — Ela era uma maga, como tu. Vocês têm obrigação de ajudar as gerações futuras. Ela iria querer que eu lhe desse. Principalmente por vocês se parecerem. — Sorriu, um sorriso carinhoso que o fez esquecer que ela era uma bruxa. E, nesse instante, Enzo percebeu que aquelas asas não representavam nada.

Hesitou no primeiro momento, mas o tirou daquela mão sem vida, e colocou na sua. Respirou fundo, deixando-o no indicador vazio. E a sensação de algo fluindo pelo seu corpo tomou conta dele.

Voltou a si somente quando a voz de Samanta o puxou do devaneio.

— Você pode começar hoje? — indagou, com um desconforto em sua face. — Tenho que falar com meu fornecedor, e Cornélia terá que cuidar da irmã menor dela enquanto eu estiver fora. Eu não tenho ninguém para cuidar da livraria e dos produtos… quer dizer, se você aceitar, eu terei.

— Sim, eu posso — afirmou, sem hesitar.

Quando voltou à livraria pelo mesmo corredor escuro e mal iluminado, estava acompanhado por Samanta. Ela não tinha remorso em mostrar as asas, e Enzo sabia, e era mais que óbvio, que estavam ocultas por uma série de feitiços e encantos. Era lógico que ordinários não poderiam ver.

O balcão, Cornélia — a filha de Samanta — conversava com uma outra garota. Apenas quando chegaram mais perto, Enzo pôde a reconhecer. Vestia-se com roupas escuras — uma calça preta, com botas de cano curto de saltos médios — e os cabelos rubros eram lustrosos. O rosto aquilino e fino, mas de lhos cansados e olheiras profundas. Elas compartilhavam a mesma idade, apesar de Enzo desconfiar que Cornélia poderia ser alguns dois anos mais velha.

A bruxa falava enquanto enrolava as pontas azuis do cabelo com um de deus dedos azuis da mão esquerda.

— Eu a vi conversando com meu pai — dizia a garota ruiva. Enzo a reconheceu, num lampejo de minuto. Já havia a visto, era a garota da plateia a quem entregara a rosa. — Perguntou se ele sabia da atividade demoníaca recente, e do desaparecimento do pai dela.

— Ela está desesperada para encontrar o pai — Cornélia respondeu, sem ligar muito para o assunto. — Já até desconfiou de mim, acredita?

Elas pararam de falar quando Samanta chegou perto, e pediu para conversar com Cornélia. A garota ruiva ficou lá, esperando pela amiga e olhando para um poto fixo aleatório. O olhar deles se encontrou num instante constrangedor, mas não houve conversa. Permaneceram onde estavam, apenas se olhando. Ela não precisou forçar a memória para lembrar de onde o conhecia.

Estreitou a vista e sorriu, amistosa.

Ele estremeceu. Sentiu os braços amolecerem e as pernas gelarem. Começou a suar frio. E falou para si mesmo que não estava sentindo aquilo, não podia sentir aquilo novamente, não de novo. Implorava para si mesmo, mesmo sabendo que não podia evitar. E foi como a última vez: sentiu estar conectado com tudo e todos. Respirou fundo, tentando sair dali, mas era como se ele não tivesse pés, e seu corpo se estendesse pelo chão, subindo pela mobília. Era angustiante sentir o coração batente das pesoas ao seu redor, apesar de que o coração da garota era calmo.

Felícia. Uma voz sem sexo ou emoção anunciou a ele, quando os flashes acabaram.

— Oi? — ela respondeu.— Me chamou?

Enzo a olhou de soslaio. Não podia ter feito aquilo novamente. Aquelas imagens confusas que passavam por suas vistas, sem explicação alguma, eram tão agonizantes. Nada podia explicar aquilo, ninguém sabia o que acontecia com ele. Já era a terceira vez que aquilo acontecia. E agora tinha que explicar que, por motivos desconhecidos, havia descoberto o nome dela.

Abriu a boca para responder, mas, nesse instante, Cornélia voltou.

— Tem como vocês voltarem mais tarde? — perguntou a bruxa. — Minha mãe vai sair, e tenho que cuidar da minha irmã.

A garota ruiva — Felícia — não hesitou em responder.

— É, acho que tem — emendou, não muito satisfeita. — Trago os outros, quando for mais tarde.

— Tudo bem.

E com isso, a conversa das duas se encerrou. Felícia saiu pela porta da livraria, enquanto Cornélia se desfazia das presilhas do cabelos. Os jogou para trás, e ele pôde perceber que a ponta das madeixas compartilhavam a mesma cor da mão dela. Duvidou que aquilo fosse natural.

— Ei — chamou. Enzo olhou, tímido. Viu que ela o encarava determinada, e com pouca graça. — Acho que não preciso explicar muito. Tem uma tabela no caixa com o preço dos livros, e os disponíveis. Tudo bem? — E sem esperar ele concordar, prosseguiu: — Eu vou estar la dentro — Apontou para a porta —, me chame caso alguma coisa acontecer. Ou não, você pode muito bem se virar sozinho.

Se perdeu brevemente no turbilhão que era a fala de Cornélia. Apenas fez que sim com a cabeça, para ela não tornar a repetir aquelas palavras rápidas. Tabela no caixa, preços, livros… não era tão difícil assim.

Samanta cruzou a livraria para sair, e, depois de breves palavras de despedida, Enzo percebeu que ela estava de mãos dadas com a mesma garotinha que ele conhecera no rodoviária, a mesma que o acordou. Ela carregava em seus braços o gato cinza da sala que ele tinha acabado de sair, e ele não parecia estar nada confortável. Ele mostrou os dentes depois que ela o apertou.

Jester! — exclamou.

A bochecha dela adquiriu uma coloração levemente escura, um rubro desgastado que mal poderia ser considerado vermelho. Cornélia olhou assustada, e correu para o lado da irmã menor e se ajoelhou, para ficar do mesmo tamanho. Colocou os dedos suaves contra a bochecha dela, e, comum gesto rude, afastou o gato.

— Irma! — advertiu. — Quantas vezes vou ter que falar que esse pulguento é um mal agradecido?!

O rosto da menor corou e se contraiu, numa faceta de dor e vergonha. Ela olhou para Enzo, ele soube que ela também o reconheceu. Vestia uma calça de moletom, e uma blusa folgada. Os cabelos escuros soltos caiam pelas costas pequenas dela. Era uma criança adorável, mas, assim como a mãe e a irmã, tinha uma assinatura. Do topo da cabeça, saiam os chifres escuros e meio atrofiados, apesar de curtos. Os dedos das mãos eram garras afiadas, assim como os pés. Uma cauda escamosa balançava atrás dela.

Enzo sorriu, amistoso, tentando não se espantar tanto. Foi tarde quando ele percebeu que a bochecha dela já não estava mais sangrando, nem havia uma marca esbranquiçada para comprovar que, outrora, ali já houve um ferimento.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

- Feliz 2016, meus queridos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Prisma" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.