Lá e Aqui escrita por Lua


Capítulo 1
Banheiro


Notas iniciais do capítulo

Todo enredo, assim como personagens, são minha criação.



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Sua vida já é um universo distante, Camila não sabe mais onde está. Em todos os lugares, em todas as pessoas, menos nela mesma. Talvez tenha se afogado em si, o que é o mais provável, e agora paira sobre o que um dia já foi casa. Paira sobre os sonhos, esperanças e promessas, paira sobre a realidade, o talvez e as incertezas. E é ser nada que a enlouquece, porque ela tem tanto! Sempre teve, desde pequena, quando desenhava colinas floridas e sóis sorridentes no alto das folhas em branco.

Os professores a elogiavam em tudo, nas notas no final da etapa, no comportamento em sala, nas redações, nos trabalhos. Menos nos desenhos e nas maquetes. Nem de longe, ela era a melhor. Só que, para quem a visse de perto, saberia: era só o que Camila desejava. Queria ser boa com os traços e com as artes, queria ser a estrela na queimada, em pular elástico, no pega-pega, esconde-esconde, mas era sempre uma das últimas a ser escolhida para os times de educação física. Ao invés de desistir dos desenhos e dos esportes, continuava sempre lá, na fila para entrar em alguma equipe, tentando enturmar com as meninas que usavam short-saias sem meia calça e contavam estorinhas de namoradinhos. Camila era assim, e é até hoje, elogiada exatamente pelas coisas que não importam para ela; fracassada naquilo que gostaria de ser lembrada.

Porém, não é isso que a corta tão intimamente a ponto de envergonhá-la, é o imenso buraco que ficou pra trás. Sempre se perguntou sobre o final da história, como seria chegar até a última página. Ela não sabe muito bem se o que esperava era um grande “felizes para sempre”, mas tem a enorme sensação de que este é o fim. É como acaba, e o que resta é só o vão. Mas o que acabou, afinal? A pergunta ensurdecedora que estoura os tímpanos sem dó nem piedade. "Por que estou aqui?". 

Ela encara seu reflexo no espelho, encara os traços tão bem delineados de seu rosto, seu nariz delicado, seus lábios finos, seus cabelos grandes e macios, seus olhos desesperados. Dá medo olhá-los, porque se parecem dois pequenos grandes buracos negros, não só pela cor.

“Olhos de ressaca”.

“Cigana oblíqua e dissimulada”.

Riu-se do atrevimento de pensar assim e, logo em seguida, achou graça também de como acreditava, quando pequena, que ao tirar seus óculos tornaria-se um super herói e no momento em que os colocasse novamente, ninguém mais saberia quem era.

"Encare a heroína agora", ela pensava. "Onde estão os super poderes?".

Camila pende a cabeça para o lado, na tentativa de acertar a imagem. Ela sempre achou curioso o espelho refletir todas as coisas às avessas. Para ela, isso é magia; seria fenômeno físico se soubesse explicar, mas não sabe, nunca entendeu. Então é sobrenatural e ponto. "Talvez", pensou, "o espelho não reflita nada às avessas, nós é que estamos ao contrário". E continuaremos assim.

Ela chora. Não sabe dizer se foi antes ou depois de todas as lembranças e pensamentos, não sabe ao certo quando as lágrimas começaram a brotar, mas sabe que ali, descalça naquele chão alvejado, ela está chorando. E chora com toda força que pode, com todo fôlego, até perdê-lo. Chora de soluçar, senta na privada, dobra-se sobre suas pernas e tenta abraçar sua dor, sem intenção de consolá-la. Aquele, há muito tempo, já é o seu canto secreto; é onde vai quando não consegue mais reter as enchentes, ou não quer.

Banheiros. De todos os tamanhos, cores e formatos. Ela conhece bem. Perdeu a conta de quantas vezes procurou por um, cubículo que fosse, desesperadamente, para poder desabar. Desta vez não é no banheiro de uma festa, como da última vez, é no de casa mesmo. Na véspera da noite anterior, ela havia se refugiado em um quadrado com uma pia, uma privada com descarga antiga e uma lixeira transbordante. Apoiada em uma porta minúscula, porque não teria coragem de encostar em nenhum outro lugar, ela contou até dez e se deixou levar por pensamentos distantes. Ás vezes, a necessidade é tanta que não se importa se o lugar é imundo, nojento. A portinha daquele banheiro estremecia com as batidas de alguém furioso querendo entrar, provavelmente bêbado. Pelo menos em sua casa podia chorar em paz.

Faz quanto tempo mesmo que está ali? Cinco, ou trinta minutos? Duas horas? Sete anos? Eu não sei. Camila também não.

Ela levanta o rosto e fita o azulejo branco, bordado de cinza. Tempos atrás, estava lá, no mesmo lugar, encarando a mesma estampa e imaginando animais, formas e pessoas, nas linhas sem nexo. Olhando para o mesmo horizonte, chorara, por motivos que nem se lembra com clareza. É engraçado; no final somos todos os mesmos, nos mesmos lugares, chorando as mesmas dores, porque uma dor engole a outra quando passa a existir e aquela se alimenta desta.

Camila ouve vozes, alguém chegou em casa, é sinal de que precisa sair logo dali, precisa parar de chorar, mas não quer. Não quer sair nunca. A sensação que tem é que ao rodar a chave na fechadura e se trancar ali dentro, o tempo para, e ela torna-se alheia a tudo. Parece irreal e a realidade pesa demais.

Quando começa enxugar as lágrimas e conter os soluços, surpreende-se. Não tinha notado que aquele choro era tão feroz, tão preciso, tão insaciável. Ela nunca fora muito boa em compreender a si mesma. Outro dia mesmo, ao despir-se e entrar para um banho, não havia percebido o real motivo de estar ali, até que viu-se encolhida na aresta da parede, com a água quente sobre seu corpo, perdida. Completamente. Ah, e quantas vezes isso já se repetiu! Pena que nunca dura tanto quanto deveria. Em dias mais nublados interiormente, o que parece é que se começar a chorar, nunca mais vai parar. Quem dera!Enquanto tenta limpar a maquiagem borrada, é no que pensa.  Ela queria poder não se preocupar com todo resto e verter-se em nascente de mar.

Camila encara sua face no espelho, novamente. Seu rosto está cheio de rastros das lágrimas que cessaram. Seu nariz está extremamente vermelho, a maçã do seu rosto tem um traço vívido, também vermelho, logo abaixo de seus olhos, que ainda estão marejados. Ela lava o rosto e continua encarando a si mesma, dessa vez, sem pensar em nada. Não consegue pensar. Alguém bate na porta indicando que precisa entrar. Pelo visto, não pode-se chorar em paz em lugar nenhum.

Ela espera alguns minutos, avalia se já está em condições de sair dali. A verdade é que não está, e nem vai. Mas mesmo assim, ela respira fundo, põe a mão na maçaneta, pronta para pular de cabeça na confusão do que a espera. Antes de destrancar a porta, lembra-se de acionar a descarga, só por precaução. É muito provável que alguém esteja esperando bem do outro lado. Então, subitamente, Camila tira a blusa e desabotoa a calça. Hoje ela não quer saber sobre quem está lá fora a espera, muito menos de quanto tempo gastará trancada ou que vão pensar sobre isso. Ela liga o chuveiro e decide que vai ficar mais um pouco. Ou mais um tanto. O barulho da água caindo é um alívio, pois ele reprime o sons, e ela pode soluçar, de novo. De repente, uma breve cólera toma conta de si: ela odeia chorar tanto e ser tão vulnerável, tão frágil. A raiva desperta mais desespero, mas não há o que fazer. 

Pela janelinha, ela consegue notar que chove do lado de fora. Nas pontas dos pés, observa que também está ventando. Camila não vê, mas sabe que os galhos das árvores agitam-se violentamente, e que relâmpagos cortam o céu. Ela não pode deixar de sentir um pouco de medo. "Calma", repete para si mesma, "é só a chuva". Mas ela sabe que é mentira, não é só a chuva, e o que teme não está lá fora. A tempestade que desmancha mundos inteiros se arrebenta no peito. No peito dela.

Aqui dentro.


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