O Desfastio de Mara Dyer escrita por Layla Magalhães


Capítulo 10
9




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/655626/chapter/10

NOAH

Cada pessoa tem uma sequência cardíaca diferente. Não diga isso ao seu cardiologista — ele vai discordar, pois essas características vão além do que um estetoscópio pode captar.

Tum-tum — ela está relaxada, descansando. Seus lábios estão levemente entreabertos, seu peito levantando e abaixando periodicamente com suas respirações profundas.

Tum-tum — há uma pausa de milissegundos depois dessas duas batidas para então elas voltarem, leves e descontraídas — tum-tum.

As batidas do coração de Mara seguem esse processo estável e permanente que pode correr por horas à fio se o sono dela for profundo o suficiente. Posso facilmente ouvir seu ritmo cardíaco até o dia do Juízo Final, e ainda assim, não parecerá tempo suficiente.

Seus compassos suaves relembram-me das notas da guitarra, o seguimento de batida e pausa, pressão e relaxamento, como se as cordas certas fossem pressionadas — vários toques separados unindo-se para soar como um só. Elas tem sons singulares, e não apenas o baque mudo do coração bombeando sangue. É quase um suspiro em meus ouvidos. Um suspiro de Mara, cálido e espontâneo, perseguindo meus pensamentos de uma forma alucinante e fazendo-me ciente de cada sensação que transcorre seu corpo, fazendo-me ciente de seu cansaço, de sua tristeza, e da sensação mais presente ultimamente, sua angústia.

Ela está angustiada por tudo o que aconteceu — tudo esse que não entendo completamente, mas já me repudia com horror.

Tudo o que sei, até agora, são sobre os números. Mara tinha múltiplas fraturas. Duas costelas quebradas. Três dedos dos pés deslocados. Um dedo da mão estilhaçado, provavelmente fora destruído quando sua palma fora perfurada, bem no meio, por uma lâmina fina, embora afiada. E, apesar de saber contar muito bem todos os infortúnios de seu corpo, contar todas as vezes em que sua barriga mostrara perfurações fora péssimo. Péssimo não descreve um por cento do que verdadeiramente senti, toda aquela dor e impotência, meus olhos ardendo com o calor de meu cérebro em pura ira.

Quem faria uma coisa dessas? E por que motivos?

Não sabendo a resposta para nenhuma dessas perguntas, concentro-me novamente na respiração de Mara.

Ela exala como se estivesse em plena dor, inalando esperança e expirando a escuridão que a sobrecarrega. Se nada interferir no processo, essa sequência se mantém — entretanto corro meu dedo pelo lado interno de seu pulso, delineando as veias verdes e azuis escuras que mapeiam os caminhos mais fáceis e seguros até seu coração. Ouço a sinfonia se transformar quase instantaneamente, indo de uma sequência de tum-tum para um tumtumtumtum sem hífen, sem pausa, sem tranquilidade. Seu coração bate com pressa, correndo. Correndo em direção à comoção de percepções que meu toque lhe dá, se afogando na intensidade delas.

Mara.

Em meio a dor, ela ainda reconhece meus toques. Em meio a escuridão, ela ainda reconhece a luz.

Ouço a respiração dela quebrar o ritmo profundo e seus dedos se moverem inquietos. Ela está acordando. Seus resmungos se tornam repetitivos e suas pernas se movimentam sob o lençol. Percebo um pouco tarde demais que ela está tendo um pesadelo.

Apoio minha mão em seu bíceps e balanço-a levemente, não querendo perturbá-la além de seu estado já apavorado. Sussurro seu nome, querendo tirá-la do que quer que esteja a aterrorizando, mas Mara não acorda.

Tentando ser mais eficiente desta vez, levo minha mão até a curva de seu pescoço e aumento o volume de minha voz. Os braços dela já lutam contra os meus na intensidade do sonho, e quando finalmente consigo acordá-la, não vejo alívio em seus olhos. Vejo terror, puro e sólido terror, como se a realidade fosse pior que o pesadelo dela.

Não consigo uma palavra dela, pois suas lágrimas começam a escorrer quase instantaneamente.

— Mara?

Seus lábios se movem, mas nenhum som saem deles. Ela parece rezar fervorosamente, seus lábios em harmonia com suas lágrimas — movendo-se, não parando um segundo, começando devagar e partindo para uma velocidade estarrecedora.

— Não consigo te entender, amor — tento parecer seguro para ela, mas minha voz reflete a agonia inebriante que está meu interior. Farejo meu medo. Sinto seu cheiro, seu sabor, vejo-o em minhas mãos, ouço-o em meu coração agitado. Ouço-o no coração agitado de Mara também.

— ... morta — sua oração se torna audível apenas no final, entretanto, logo ela retorna a dizê-la — Você deveria ter me deixado morta. Você deveria ter me deixado morta, Noah.

Só o mero lembrete dessa experiência me faz mal. Quando a vi, toda ensanguentada e presa naquela cadeira caindo aos pedaços, eu agi puramente por instintos. Era meu corpo, e não minha mente, quem cuidava de Mara. Fora meu corpo, minhas mãos, que fizeram a massagem cardíaca em Mara quando seu pobre e fraco e tão intrinsecamente ligado ao meu pobre e fraco coração parara de bater. Meu corpo agiu enquanto minha mente se acovardava, encolhendo-se em uma bolinha em posição fetal, não acreditando, por um segundo sequer, que eu poderia viver sem... sem...

Suspiro, evitando as lágrimas e os olhos magoados de Mara. Não sei como definir tudo o que ela me dera ao longo dos anos, pois ultrapassa o que vejo e sinto conscientemente. Muito do que ela fez e faz é visível a meus olhos, embora muito mais seja visível apenas a meu coração. Cada conselho, cada bronca, cada palavra delicada, cada piada com humor negro, cada se cuida, cada volte para mim mais tarde, cada sim dito com facilidade e não dito com pesar e sinceridade.

A grande verdade é — Mara é um xeque-mate. O meu xeque-mate. Em uma jogada complexa, não completamente planejada mas bem desenvolvida, ela é o meu tudo. Entretanto, em uma jogada simples e irreversível, é o meu nada.

— Eu não podia, Mara. Eu não podia.— digo apenas.

— Mas eu o matei, Noah. Eu. Matei. Ele.

O raptor dela? O torturador?

— Quem, Mara? Quem você matou?

— O nosso filho! Eu matei o nosso filho.

Por um assombroso momento, apenas olho para ela. Ainda sem entender totalmente, peço que ela explique, desde o início, o que ocorrera.

Fiquei pasmo quando soube de sua suspeita de gravidez. Fiquei ávido, num grau de alegria e tristeza que eu desconhecia, quando soube da confirmação de sua gestação. Meu coração ficou em pedaços por meu filho ser tirado tão rapidamente de mim. Minhas mãos tremeram em meu colo pela ânsia de querer tocar na barriga de Mara e tentar sentir o nosso pequeno fruto em seu ventre e apenas... não poder mais. Minha garganta se fechou pela possibilidade arrancada de mim, pelo destino trágico que eu não escolhi, mas que foi castigado em direção a meu pequeno filho mesmo assim.

— Você deveria ter me deixado morrer — ela sussurra mais uma vez, antes de continuar a história.

Entendo o sentimento esmagador que agita seu interior. Realmente entendo. Mas não posso deixá-la pensando que eu escolheria sua morte.

— Mara — meus dedos correm por seus cabelos em um canto de exaltação. Exaltação por poder tocá-la, exaltação por tê-la, bem e viva, perto de mim —, nós ainda poderemos ter filhos. Nós podemos ter mais crianças. Podemos conviver com filhos, sobrinhos, netos, mais futuramente. Poderemos ver crianças por todas as partes, poderemos ter uma só nossa a qualquer momento. Contudo, só há uma Mara. Em todo o mundo. Só há uma de você. Não poderei encontrar outra em uma esquina da vida, não poderei tê-la em meus braços, não poderei... — meu fôlego morre em meus pulmões. Inspiro novamente, procurando o ar e as palavras certas — Você é a única Mara. Outros filhos poderão vir, mas nunca terei outra Mara. Nunca.

Tento descansar meus lábios em um beijo na sua testa, mas ela evita meu toque. Seus olhos brilham um pouco de repulsa, mas não direcionada a mim — posso ver que ela se odeia no momento. Ela se repudia, se reprime, se castiga. Consigo enxergar como ela briga consigo mesma, dizendo-a que ela não me merece, que ela é um monstro.

Um monstro.

Respiro fundo, querendo parar de sentir o ardor em meu peito, a falta do filho que nunca tive. Meus olhos lacrimejam um pouco antes de meu controle ser reestabelecido.

— Quem fez isso com você? — Minha voz sai quase fina, como se minha garganta apertada a impedisse de soar corretamente.

A mandíbula de Mara se tenciona. Suas sobrancelhas negras se unem. Seus olhos assumem uma imensidão de raiva pura e condensada.

— Seu pai.

Sinto-me paralisado por um segundo. Paro de respirar. Paro de piscar.

Meu pai.

— Como? Por quê? — Mais uma vez corpo, e não mente, no comando.

— Ele não queria que déssemos vida a um monstro.

Não contenho o arrepio que assola o meu corpo com as palavras dela.

Meu pai fizera isso a ela. Meu pai a instigou com visões, a fez se violentar tantas e várias vezes, machucando a si mesma e ao meu filho, tudo isso para que isso se refletisse em mim.

Agora, sou eu que não suporto ficar em minha própria carne. Levanto-me da cama e encaro a janela, vendo o asco em meu olhar refletido no vidro. Fico com nojo de mim mesmo, ânsias de vômito invadindo meu esôfago mas não cumprindo seu caminho até minha boca. Quero vomitar toda essa sensação que me invade. Quero esmurrar na cara de meu pai todas essas sensações que me invadem.

E, subitamente, querer a morte dele me faz mais mal.

Encosto a testa no vidro frio da janela e concentro-me na respiração de Mara, não conseguindo dar voz a meu coração agora. As batidas estão determinadas, firmes, compenetradas. Olho para trás e vejo uma seriedade nos olhos que me encaram. Vejo a dona daquele olhar sentada completamente ereta na cama, pronta para ir lutar suas guerras. Seus olhos se desviam dos meus para analisarem os locais onde outrora os ferimentos estavam abertos e sangrando e neste momento estão cicatrizados, a pele corada e saudável e perfeita em seu lugar.

Respirando fundo, tento mais uma vez segurar as lágrimas que fazem pressão por trás dos meus olhos. Morte. Tanta morte. Morte das esperanças de que meu pai seguiria um caminho diferente. Morte de uma emoção, de um amor tão forte que emergira com a gravidez inesperada de Mara. Morte com a interrupção inesperada da gravidez que eu aguardava tão fervorosamente sem mesmo saber disso.

Morte morte morte. É isso o que meu pai traz e reserva para todos nós.

— O que você vai fazer, Mara? — Pergunto, por fim.

— Eu vou matar o seu pai — sua voz é feia, sanguinária e ansiosa, como se mal pudesse aguardar por aquilo.

Não sei o que deveria ser certo sentir, mas sinto um alívio perturbador.

— E não quero que você vá comigo — ela continua, surpreendendo-me —, ele ainda é o seu pai, no fim das contas.

— Mara — começo a caminhar até ela, que novamente me para.

— Não, Noah — não sei em quem o olhar dela dói mais, se é em mim ou nela própria.

Abaixo as mãos que queriam estar consolando-a. Bloqueio as palavras que queriam estar aconselhando-a. Aceito o que ela quer, aceito o que ela necessita que eu aceite.

— Só não vá sozinha — um último pedido antes de sair do quarto, atendendo os olhos dela que me perguntam se podem ficar sozinhos.

— Eu não irei — ouço ela me responder baixinho quando estou saindo do quarto, indo em direção à sala, tremendo sob o casaco e sentindo o gelo cruel e arrasador que espelha a nossa relação.

Saio de casa e o vento frio beija e cumprimenta a minha pele. As lágrimas saem irrefreadas dos meus olhos e questiono-me se a friagem da noite não vai congelá-las. Pergunto-me se os meus braços e pernas deixarão algum dia de sentir o peso fantasmagórico do que seria uma criança entre eles; pergunto-me se minhas mãos irão parar de doer com as caminhadas de mãos dadas que não existirão por agora; pergunto-me se um dia meu peito parará de ficar tão pesado, uma sensação oposta ao vazio que o sobrecarrega cada vez mais.

Queria abraçar Mara, queria afogar-me na perspectiva de que ainda temos a nós.

Mas não é disso que ela precisa agora. Não é de mim que ela precisa agora.

Ela precisa de vingança.

Pegando o celular frio e sem vida do meu bolso, disco um número de cabeça. Penso em ligar para Kate, pois como ela também perdera seu bebê uma vez, ela poderia ajudar na situação. Mas não. Espero a chamada ser atendida e quase sorrio quando escuto a voz masculina do outro lado.

— Noah, está tudo bem?

Ignorando sua pergunta, vou direto ao assunto.

— Quais são os seus planos para hoje, Jamie?

— Depende. Minha agenda é bem articulável.

— Bem, e se incluirmos um assassinato nela?

Ele não hesita em responder.

— Tenho um espaço em aberto para hoje, às 21. Está bom para você?

— Ótimo.

— Que bom — posso ouvir seu sorriso no outro lado da linha —, sempre soube que você me ligaria para planejar algo assim um dia. Me diga, qual é o infeliz que encontrará a forca hoje?

— Meu pai.

Jamie respira uma vez.

— Bem, então nada de forca. Acho que algo bem mais lento e doloroso seria preferível. Aonde nos encontramos?

— Na minha casa. Mara espera por você.

E, quando encerro a ligação, algo mais profundo dentro de mim se encerra também.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Desfastio de Mara Dyer" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.