O Mundo do Campo Florido escrita por lahy


Capítulo 1
Capítulo 1




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O mundo do campo florido

 

O som agoniante possuía intervalos regulares. O vermelho aguado pingava gota a gota, manchando o assoalho de madeira que fazia o chão um pouco mais vivo do que a morta e gélida cerâmica. Olhos assustados observavam atentamente o liquido escorrer até que se transformasse em flores. Flores vermelhas, rosas vermelhas.

 

Passo a passo, ele se aproximou da rosa. Sorriu. Sorriu um sorriso dissimulado.

 

Por que a rosa vermelha chamava-se rosa?

 

Segurou a flor, espetando sem querer o dedo médio num dos espinhos. Chorou lágrimas de terror, apavorado diante da possibilidade de doer.

 

Não doeu, e as lágrimas secas tornaram-se símbolo de sua ilusão.

 

Um. Dois. Três passos e estava diante da porta que o colocava como culpado ou inocente.

 

Alguém além de Deus poderia julgá-lo?

 

Seus passos ficaram marcados no tapete de pétalas, afundando-as, destruindo-as.

 

Seus olhos se fecharam para o mundo, mas mantiveram abertos para aquelas rosas rubras. Sonhos despedaçaram-se, desfizeram-se as ilusões. O mundo ao seu redor ruiu. As paredes tornaram-se apenas águas de uma cachoeira onde as águas que não corriam jamais faziam um som. Isso era porque os sons haviam desaparecido. O mundo se silenciou para o momento de sua contemplação.

 

Não havia mais o som da água vermelha tornando-se o coração de uma rosa. A madeira do chão abriu-se. O poço de escuridão tornou-se apenas um buraco negro para onde poderia ser tragado, mas não foi. Seus pés pisavam sobre ele, enquanto a ausência de som se partiu para tornar-se um insuportável ruído de gritos estrondosamente altos.

 

Seus tímpanos estourariam, mas isso não importava.

 

Ele gritou. Gritou como todas as vozes gritavam.

 

A rosa em sua mão se despetalou, os espinhos cravaram-se em sua pele, fazendo com que dela escorresse o mesmo líquido capaz de transformar o mundo em flores.

 

Sim, a beleza era aquela. A metamorfose que fazia da feia e nojenta lagarta a mais bela e singela das borboletas. Aquela dor excruciante, porém inexistente, era o que transformava o mundo em um campo florido com flores de uma cor só.

 

O campo de rosas vermelhas se tornou o caminho pelo qual deveria atravessar e, sorrindo, ele escolheu fazer a travessia.

 

Os espinhos fincaram-se na sua carne a cada passo, e a cada gota vermelha derramada, mais uma flor belamente espinhenta surgia. Ele não notou que sua carne era uma só diante de tantos espinhos, e que a cada perfuração mais e mais espinhos surgiam. Ele continuava adentrando o campo florido, buscando sua metamorfose.

 

Ele sentiu que a mudança já começara. Porque se antes ele tinha medo da dor que nunca vinha daqueles espinhos, agora ele sabia que não eram os espinhos que lhe infligiam a dor.

 

Assim como os gritos de sua garganta não possuíam sua voz. Gritar, gritar, gritar. Não importava porque não era ele quem gritava. Era alguém ao longe, distante, muito além do que seus olhos poderiam voltar a enxergar. Aquela criatura continuaria gritando pela eternidade se não decidisse também atravessar o campo florido que rumava à libertação.

 

Mas aquela falsa travessia era a decepção de sua transformação, pois ao chegar no seu fim descobriu que por mais que se ferisse em busca do néctar que transformava o seu mundo, não surgiriam mais rosas.

 

O campo perdeu o encanto e as rosas murcharam, desfalecendo-se na agonia da perda de sua beleza. Então ele notou que embaixo dos caules espinhentos havia a terra árida e seca. As rachaduras faziam caminhos diversos, sem um sentido exato.

 

Então ele entendeu que por trás de toda a beleza havia a aridez.

 

Teria sua metamorfose dado errado?

 

A lagarta às vezes enclausurava-se no seu casulo sonhando sair uma linda borboleta, mas transformava-se apenas numa insossa mariposa.

 

Decepcionado, ele desistiu de continuar aquela travessia impossível e então notou que os gritos haviam cessado. Será que aquele ser havia morrido? Será que havia se recolhido em sua insignificância até que seu corpo definhasse na mais completa inanição? Era o merecimento que tinha por sua covardia em tomar passos adiantes.

 

Então, como um tsunami com sua fúria inesperada, ele foi jogado dentro de uma paisagem inexistente de anjos vestidos de branco. Um deles movia os lábios lhe falando palavras que não existiam. Sua voz era um som profundamente irritante, tão insuportável que ele teve que cobrir os ouvidos com as mãos e gritar para que se calasse.

 

Os anjos das histórias não eram daquele jeito. Os anjos das religiões eram belos, puros; mas aquele anjo o atormentava, destruía-o, açoitava-o. Foi então que ele descobriu que era da boca dos anjos que saiam as palavras que proferiam a desolação do mundo. Com toda a sua força, ele tentou impedí-los, jogando-se contra eles e tentando ferir-lhes. O líquido vermelho que manchava a terra de madeira não era capaz de fazer as flores ressurgirem, pelo contrário. À medida que eles espalhavam-se pelos quatro cantos do céu branco iluminado pelo vidro que não trazia sol. A cada gota que caia, ele era arrastado mais e mais para fora do mundo ao qual pertencia. A terra árida deixaria de ser árida e o campo florido deixaria de existir. As paredes retornariam aos seus lugares e a cachoeira da qual não saia som secaria mesmo que jamais tivesse jorrado algo de sua fonte.

 

Só então ele notou que os anjos haviam lhe lançado um encantamento, impedindo-o de mover-se. Mas ele sorriu vitorioso, pois um dos anjos havia caído. Seu poder não era mais o suficiente para arrancá-lo do campo florido.

 

Porém finalmente seus olhos enxergaram que a escuridão da luz era a luz da escuridão. Foi sua vez de gritar, gritar agonizando como o ser que gritava distantemente. Finalmente ele entendeu que os gritos eram seus e não deles e que suas feridas eram dele e não suas; que os campos floridos eram na verdade incolores o bastante para que seus espinhos fossem metalizados para infiltrar-lhe não o poder de trazer a beleza, mas do líquido para a tortura eterna da realidade.

 

Ele não desejava abandonar o mundo ao qual pertencia, por isso largou dos anjos, correndo para que encontrasse a porta que o levasse até a cachoeira que traria o campo florido. E mesmo que seus olhos vissem flores e cores que não eram parte daquele cenário surreal de variedades realísticas, ele ambicionava apenas o campo de uma cor só. Rubra e espinhenta, onde faria sua travessia rumo a beleza suprema da perfeição.

 

Foi em sua fuga desesperada para a fuga que deveria fazer que encontrou aquele quem não era um anjo, mas o guardião do portão dos mundos de uma cor só. Ele sorriu, reconhecendo alguém de sua mesma espécie. O outro, porém, o olhou com olhos vazios que nada enxergavam, mas que viam além da alma.

 

- Você já sonhou que o sonho que vivia era um sonho que jamais poderia ter sido sonhado?

 

O questionamento veio sem o mexer dos lábios, mas mesmo assim possuía o sotaque arrastado de uma língua desconhecida. Foi fácil de entender o porquê diante da aparência alienígena do guardião do portão dos mundos, pois nenhum ser vivo poderia ser tão belamente aterrorizante, nem possuir olhos de cor tão incomum para a sua raça.

 

- Para onde eu posso atravessar?

 

O questionamento veio de uma voz que não era sua, e que não pertencia ao estranho a sua frente, quem gargalhava alto. Ele soube que poderia ir dali para qualquer mundo, porque o estranho lhe contou que todos os caminhos existentes levavam a mundos diferentes, mas que a maioria dos seres vivos preferia ir sempre pelos mesmos caminhos, olhar pelos mesmos ângulos e procurar sempre a mesma resposta.

 

Então ele poderia voltar para o mundo do campo florido?

 

A resposta para sua pergunta não feita foi a quebra de uma ilusão, pois veio no sotaque arrastado.

 

- Não existe o mundo do campo florido.

 

Como não existia se ele havia estado lá?

 

- Não existe a cachoeira que jamais tem águas a jorrar.

 

Ele havia visto o que nunca esteve lá e ouvido o som que jamais existiu.

 

Não querendo acreditar, desafiou o guardião dizendo sem palavras que necessitava de provas, pois ele pertencia àquele mundo. Diante de tal desafio, o guardião abriu a porta do portão dos mundos, permitindo que ele visse o que era a verdade absoluta sobre o mundo das ilusões.

 

Seus olhos enxergaram que o mundo de uma cor só possuía várias cores que não podiam ser vistas por aqueles quem jamais haviam visto o mundo do campo florido. Era por isto que era o mundo de uma cor só, pois as cores lá estavam e ninguém as via. Queria gritar para aqueles que passavam apressadamente rumo a lugar nenhum para que suas mãos alcançassem o céu de um azul tentador e que seus olhos perdessem a visão por admirar tão puramente o verde vivo que era pigmentado com pinceladas de rosa, amarelo e branco; mas ninguém o ouvia, pois acreditavam que aqueles quem haviam conhecido outros mundos não eram dignos de atenção. Pois os que conheciam outros mundos não entendiam o significado do mundo de uma cor só.

 

Foi então que ele notou que o portão havia sido fechado pelo guardião e ele estava preso lá. Desesperou-se, bateu contra o metal cinzento gelado. Bateu até que o vermelho voltasse a sair de sua carne e então ele notasse que, realmente, não haveria mais flores brotando belamente diante das dores da travessia.

 

Perdido num mundo inanimadamente feio em sua agitação, ele correu para algum lugar onde encontrasse um resquício da perfeição do campo florido. Aonde pudesse achar a cachoeira sem som e afundar-se na aridez da terra que trazia a beleza do não belo.

 

Procurou por dias pelo guardião do portão, mas não o encontrou. Algumas pessoas lhe disseram que aquele guardião guardava o portão para o mundo das ilusões. Mas ele havia perdido o caminho.

Finalmente, ele entendeu que o mundo de uma cor só possuía um único caminho, pois as pessoas se perdiam nos caminhos para os outros mundos. Perdidas, elas seguiam sempre para o lugar onde o caminho as levasse, incertas, inseguras.

 

Era a insegurança que era apavorante e era aquele pavor que o fazia querer voltar para o mundo do campo florido. Mas ele jamais poderia retornar, pois os portões não se abririam novamente para ele a menos que ele encontrasse o caminho perdido sozinho.

 

Em suas andanças, parou defronte a uma porta de madeira que sempre permanecia aberta. Concluindo que portas que nunca se fecham são aquelas que sempre levam a algum lugar incerto, ele adentrou observando como todos mergulhavam em líquidos coloridos que eles eram incapazes de ver as cores e afundavam-se na procura do portão.

 

Então havia mais gente que procurava a entrada para os outros mundos!

 

Redescobriu que aquela bebida era aquilo que levava a voltar a enxergar as cores e, se seguisse as cores, encontraria o caminho para a casa que tanto desejava voltar.

 

Decidido a redescobrir onde poderia encontrar o estranho homem quem lhe trancou num mundo que não era o seu, ele bebeu e bebeu o líquido da mudança. Ele não se importou de contar sua história a outros que procuravam a mesma libertação, mas não entendia porque eles riam e diziam que era absurdo.

 

Ele contava e recontava a história, mas todos diziam que não era ali que ele encontraria o guardião, embora fosse uma das formas de entrar no mundo que ele tanto desejava.

 

- Deixem o moleque.

 

Alguém dizia e então ele voltava a afundar-se na busca insaciável pelo fim daquela ilusão que lhe trazia apenas o desespero.

 

Mas num dia onde ele sofria por suas vãs tentativas num caminho perdido, alguém ouviu atentamente sua história, sorrindo diante das partes que pareciam mais fantasiosas.

 

- Você sabe por que rosas vermelhas são chamadas de rosas? - A voz angelical questionou e ele encarou a pessoa por alguns instantes, rindo finalmente.

 

Era aquilo? Ele era a rosa, a rosa vermelha despedaçada por suas mãos na tentativa da travessia.

 

Por que o guardião do portão baniria a rosa do mundo do campo florido?

 

A resposta foi cruel como o olhar daquele quem o encarava. A rosa jamais havia estado no campo. Quando o estranho se afastou, ele correu em sua direção.

 

Era ali. Era ele. A porta que levava ao caminho do mundo do campo florido não era uma estrada cinzenta e escura, nem mesmo uma lembrança colorida. Seus olhos o encontraram parado no meio do lugar que levava a lugar algum, de costas para si. Na noite estrelada, ele segurava um guarda-chuva vermelho para protege-lo da chuva que não caia. Seus dedos giravam o cabo do objeto despreocupadamente.

 

Vermelho, como as rosas do campo de seu jardim. Girando e rodopiando até que as lembranças voltassem.

 

Rosas vermelhas de lembranças que ele preferira largar, as lembranças que tornaram o mundo de uma cor só o que era e não o mundo do campo florido.

 

O estranho lhe estendeu a mão, oferecendo o objeto vermelho como o botão de uma rosa.

 

- Para que se chegue novamente ao mundo do campo florido, basta apenas voar rumo ao céu azul com um botão vermelho.

 

A sentença foi clara, suficiente.

 

Ele apanhou o objeto entre seus dedos. Seus olhos fitaram o chão tão distante, reencontrando o buraco negro.

 

Ele saltou, tentando voar. Se tivesse o guarda-chuva vermelho como a rosa de seu campo não haveria problema. A queda livre o fez subir até o céu.

 

Não havia mais som, nem água. Era apenas a cachoeira que lhe dizia ter voltado ao portão de seu mundo, agora sim, inexistente.

 

A certeza da metamorfose ter se completado foi o último pensamento que teve.

 

Fim

 

2010.0320

 


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Notas finais do capítulo

Nota: Mais uma que entra para minha classificação de fics que eu devo ter escrito drogada, mesmo que eu não use drogas.
 
História escrita especialmente para o desafio Tema Random, da comunidade do Nyah no orkut.