O lago das almas escrita por Rodrigo Oliveira


Capítulo 4
Final feliz?




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Dia seguinte. 7h da manhã. O sol já aparecera no céu azul, porém ainda continuava frio. Steve levantou-se, tomou o desjejum que seu pai havia preparado. Em poucos minutos iria sair para levar Bonnie ao pequeno aeroporto na cidade vizinha, a uns quarenta quilômetros dali. Deveriam estar lá às 9h. Antes de sair deu um forte e demorado abraço no seu velho. Beijou-lhe a face. ‘Amo você, Carl, se cuide’. O velho pai não sabia explicar o sentimento, mas enquanto estava de pé na varanda, vendo Steve tirar o ford da garagem e seguir lentamente em direção a rua, sentiu como se já tivesse visto essa cena antes. Não apenas o jovem sair de carro, mas todo o sentimento que invadiu seu corpo. Como um sombrio dejavú.

Seguia pela estrada, sentindo o sol quente contrastar com vento frio em seu rosto. Estava tranqüilo. Tão tranqüilo que nem mesmo lembrava o jovem energicamente surtado que se revelara.

O som das rodas do carro sobre a brita do quintal de Bonnie era inconfundível. Como ela gostava desse som. Era o indicador que seu amado se aproximava. Uma versão moderna da princesa esperando o seu príncipe montado no cavalo branco. Nesse caso um mustang amarelo V-8 com 300 cavalos de potência.

Ela estava se despedindo de seus pais na varanda. Steve desceu do carro, bateu a porta e ficou encostado, esperando. Ela veio ao seu encontro e lhe deu um demorado beijo, deixando seu pai mais vermelho do que um tomate maduro e sua mãe com saudade da época em que era tratada desse jeito. Eles acenaram e viram os dois saindo em direção ao aeroporto. A viagem demoraria cerca de uma hora. Tempo de sobra para chegarem ao seu suposto destino.

– Muito obrigado, Steve, de coração. Sabe que isso é muito importante para mim.

– Eu nunca faria nada para lhe prejudicar, acredite. Eu a amo.

Seguiram viagem. Lindo dia. Trânsito perfeito. Ele olhou de soslaio para sua amada, sem deixar perceber-se. Ela estava com a poltrona reclinada, os pés sobre o painel, observando os grandes campos de trigo e milho que se perdiam na distância. O rádio tocava música country americana clássica. Tudo combinava: os campos, a música, o sol, o vento e sua linda Bonnie. Estava de óculos escuros com armação branca. Seus cabelos ligeiramente encaracolados dançavam ao vento. Se pudesse, congelaria essa cena para sempre. Nunca a perderia de novo. De novo? Sim, ele sabia que não estava louco. Nunca a perderia... ‘De novo... Não.’

Quando começaram a aproximar-se do aeroporto ela ajeitou-se na poltrona. Já dava para ver a grande pista de pouso e alguns aviões de porte médio estacionados lateralmente à pista. Steve, porém não diminuiu a velocidade e ela viu quando o portão de embarque ficou para trás.

– Steve, você não viu o... ?

– Vi sim. Claro que vi.

– Steve, volte, vou perder o meu vôo! Pare de brincar.

– Quem disse que estou brincando? – perguntou sem tirar os olhos da pista. Estava assustadoramente calmo, porém determinado, segurando o volante com ambas as mãos.

– Steve, pare esse carro, agora! – gritou.

– Eu não vou voltar e arriscar perder você de novo, amor! – gritou ele – Você não compreende?! Você vai seguir comigo para qualquer lugar longe desse aeroporto! Confie em mim.

Ela começou a socar o braço dele e chorar, gritando para que parasse essa loucura e voltasse para o aeroporto. Ele estranhamente começou a sorrir, gargalhar. A morte não lhe daria esse duro golpe de novo. Sua gargalhada só foi interrompida quando ela, num ataque de desespero agarrou o volante com ambas as mãos e puxou fortemente para o seu lado, numa atitude descontrolada e irresponsável. Tentava fazer com que parasse, porém o carro virou de lado e logo as duas rodas do lado direito estavam fora do chão. Steve arregalou os olhos, fora pego de surpresa, e tentava a todo custo, naquela fração de segundo, recolocar o carro no rumo certo. Era tarde demais. O carro começou a capotar. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Steve via o mundo girar de dentro do seu casulo metálico. Terra, poeira, vidro eram jogados em seu rosto. Parecia estar dentro de uma máquina de lavar do inferno. Tudo parecia durar eternamente, girando insanamente. Seu corpo estava preso ao cinto de segurança, porém era sacudido com uma fúria que jamais sentira. E então, numa última volta, o carro parou lentamente de cabeça para baixo. Steve estava aliviado por que havia acabado. Sentia dores e náuseas. Ele estava preso ao cinto. Como o carro estava de cabeça para baixo, custou a se situar, mas então recobrou a percepção e lembrou-se de Bonnie. Lá estava ela, deitada no teto invertido do carro, com a parte inferior do corpo para o lado de fora da janela, imóvel. Ela não usava o cinto de segurança. Percebeu sangue saindo do ouvido e nariz dela, misturando-se a poeira que cobria seu corpo. ‘Oh, meu Deus, o que eu fiz? Matei Bonnie? Ela está morta?’. Sua racionalidade sabia que ela, provavelmente, estava morta, mas seu coração desejou ardentemente que não tivesse ido, de novo, e forçava-se a acreditar no melhor.

Tornou a sentir-se muito tonto e com náuseas. Algo quente escorria pelo seu rosto. Era seu sangue. Estava a ponto de desmaiar e esforçava-se para manter os sentidos. Precisava saber se Bonnie estava viva. Sua visão começou a enturvar-se e escurecer rapidamente. Sabia que não ficaria acordado por muito tempo. Ele conseguiu ver que pernas se aproximavam, correndo, do veículo. O socorro estava perto. ‘Cuidem dela! Cuidem dela!’, apenas pensou, pois não tinha forças para gritar. Escuridão total.

Consciência. Abençoados sejam os três ou quatro segundos iniciais de despertamento do sono. Aqueles segundos em que não pensamos em nada. Talvez o único momento da nossa vida desperta de total ignorância do que nos cerca. Mas logo veio um bip constante. Dificuldade horrenda para abrir os olhos, mas conseguiu fazê-lo aos poucos. Vista terrivelmente turva. ‘Estou sedado? Ou faz muito tempo que não uso esses globos?’ – Pensou. Olhou ao redor, estava num hospital, com toda certeza. Notou quando uma enfermeira entrou, fitou-o surpresa e saiu novamente. Muita gente no quarto em seguida. Todos com expressão de alívio no rosto. Um médico fez uma série de exames, mas pediu que o jovem não falasse. Apenas deveria colaborar e descansar, e talvez mais tarde conversasse a respeito. Logo o velho Carl estava presente. Abraçou o filho e chorou de alegria. Estranhamente, Steve notara que seu pai parecia mais velho do que a última vez que o vira. Seus cabelos e bigode estavam consideravelmente mais brancos.

No dia seguinte ficaram a sós no quarto e Steve perguntou o que aconteceu.

– Filho, sei que deve ser difícil para você entender o que se passa, mas gostaria de perguntar-lhe antes: Qual a última coisa de que se lembra?

– Eu não sei... Não lembro de muita coisa... Lembrei de você quando o vi entrar pela porta. Lembrei quem eu era logo assim que despertei, mas não lembro de muita coisa.

Flashes começaram a invadir a cabeça de Steve quase que imediatamente. Viu o lago, sorriso, velocidade, seu carro e... Bonnie.

– Bonnie! – gritou, exasperado – Onde está ela?! Bonnie!

– Calma, filho! Eles vão o sedar se continuar assim! - Nesse instante entraram dois enfermeiros no quarto para ver o que estava acontecendo e Steve calou-se. Ainda estava ofegante, mas entendeu o recado. Carl acenou para os dois dizendo que estava tudo bem – Bonnie está bem, acredite. Lembrou-se do que aconteceu?

– Meu Deus, que loucura é essa, pai? Eu me lembro de que eu não quis deixar que ela entrasse no aeroporto e... – fechou os olhos, forçando a lembrança – Passei direto com meu carro. Lembro que ela puxou o volante, o carro capotou e eu a vi no chão... Oh, meu Deus... Como morta... Ela está viva? Não minta pra mim! – apertava a mão do homem firmemente.

– Calma, ela está viva. Está vindo para cá. Eu entendo sua confusão mental, mas não foi isso que aconteceu, filho.

– Como assim, não foi isso?

– Vocês dois foram ao lago numa manhã. Ao chegarem lá foram nadar e subiram em um pequeno barco encalhado em uma rocha submersa. Parece que ao tentarem nadar de volta o barco soltou-se e você ficou preso, afundando junto com o barco – fez uma pausa, tentando conter o choro. Steve o encarava querendo entender tudo – Se não fosse Bonnie, filho, você estaria morto. Ela salvou você. Mas os médicos disseram que os danos cerebrais, devido ao tempo em que ficou sem oxigenação seriam irreversíveis. Disseram que você ficaria em coma para sempre – Abraçou o filho novamente e chorou Graças a Deus que você está bem...

– Mas, meu carro está... ?

– Na garagem de casa, desde então. Perfeitamente guardado.

– Pai, há quanto tempo eu estou aqui? – Carl abaixou a cabeça e chorou novamente.

– Quatro anos, filho. Quatro longos anos.

Steve sentiu-se nauseado e vomitou no chão do quarto. Percebeu que durante quatro anos estivera como um vegetal em cima da cama e que tudo o que acontecera, talvez, tenha se dado somente na sua cabeça. Como um sonho. Não saíra ileso do lago. O maldito lago. Seus músculos estavam atrofiados. Sentou-se na cama com ajuda e pediu um espelho. Estava bem mais magro. A barba feita e os cabelos curtos. Entendeu que cuidavam dele ali, mas era um estranho para si mesmo. Não gostaria que Bonnie o visse daquele jeito, mas queria vê-la de qualquer forma. Precisava disso.

Uma pessoa abriu um pouco a porta do quarto e chamou o pai para fora. Steve ficou deitado, pois não tinha firmeza nos membros inferiores para se colocar de pé sozinho. Apesar da fisioterapia enquanto estava inerte ter evitado que perdesse seus músculos definitivamente, ainda teria muito trabalho antes de pensar em andar de novo.

Não conseguia parar de pensar em tudo que ocorrera. Os detalhes agora estavam nítidos em sua mente. Lembrava de tudo o que supostamente seriam lembranças forjadas pelo seu cérebro comatoso como se fossem lembranças reais.

Carl retorna a sala, senta-se na poltrona ao lado da cama e segura a mão do filho.

– Filho, escute com atenção o que vou lhe dizer – inspirou o ar profundamente – Bonnie está do lado de fora, no corredor.

– Porque ela não entra logo? – disse, levantando a cabeça, ansioso pelo encontro.

– Filho, antes de tudo preciso que saiba de algo. Bonnie foi uma guerreira ao seu lado. Ela o tirou da água, fez os procedimentos de emergência e o conduziu de carro ao hospital. Se não fosse por ela você estaria morto. Durante meses ela o acompanhou nessa cama. Dia e noite ela ficou ao seu lado, sofrendo. Ela não sentia vontade sequer de alimentar-se e só dormia quando o corpo não agüentava mais. Todos nós sofremos imensamente por não ter você aqui conosco. Não suportei vê-la daquela maneira, definhando ao seu lado. Então, certo dia eu a disse que você não voltaria mais, como os médicos haviam dito. Ela deveria seguir a vida e deixar que eu cuidasse de você. Disse que as portas estariam abertas sempre que ela quisesse o visitar, mas que não permitiria que ela definhasse em vida daquela maneira. Depois de muito insistir ela seguiu, filho.

– Seguiu como, pai? – disse calmamente.

– Ela se casou, filho. Casou-se com um bom homem. Um empreiteiro novato na cidade. Ele deu-lhe um bom lar e uma linda filha. Sofia é o nome da menina. Ela tem quatro meses de vida. Eles sempre vão me visitar em casa e de tempos em tempos eles vêm ao hospital para lhe ver – Carl notou que lágrimas rolavam pelo rosto de Steve – Por favor, não faça ou fale nada que...

– Eu entendo, pai. Entendo mesmo. Ela pode entrar.

O velho homem olhou para o vidro da porta e acenou positivamente para uma pessoa que estava do lado de fora. A porta se abriu e Bonnie ficou parada, olhando-o. Ela pôs as mãos sobre a boca e não conseguiu conter o choro. Ambos choraram. Ela se aproximou e Carl ajudou Steve a sentar, de modo que ambos, Steve e Bonnie ficaram abraçados de olhos fechados por um longo momento. Quando abriu os olhos, Steve viu um homem bem aparentado de pé na porta, com uma linda menina no colo. Sabia que era o marido de que seu pai havia falado. Ele acenou com a cabeça e foi correspondido de forma simpática. Notou uma expressão amistosa formando-se no rosto do homem.

Steve agradeceu por tudo e disse que estava surpreso com todas as noticias que acabara de receber, mas que estava feliz por ela. Mandou que o homem se aproximasse, o cumprimentou calorosamente e acariciou os cabelos da pequena Sofia. Todos sorriram e choraram emocionados, porém chegava a hora de todos os visitantes deixarem o hospital. Bonnie e sua família despediram-se e se foram. Somente ele e seu pai ficaram no quarto.

– Pai, posso lhe pedir algo?

– Claro filho, qualquer coisa.

– Me ponha naquela cadeira de rodas e me leve até a janela. Steve estava leve como uma pena e ele não teve dificuldade em colocá-lo na cadeira.

Depois de quatro anos ele via novamente a rua, os prédios, o sol, as pessoas caminhando despreocupadas. Mas não era isso que ele queria observar pelo vidro da janela. Um carro de cor prata parou na porta do hospital e o marido de Bonnie desceu, abrindo a porta para que ela entrasse. Estava sentada em um banco com a pequenina Sofia, esperando que ele buscasse o veículo no estacionamento. Steve não conseguia parar de olhar para aquela mulher que, seja na fantasia de um coma profundo ou na realidade de um mergulho num lago gelado o fez sentir-se tão amado e tão vivo.

Ela prendeu a pequenina na cadeirinha destinada a crianças no banco traseiro e antes de entrar ao lado do motorista, deteve-se por um instante. Olhou para cima, procurando a janela do quarto onde seu coração estava. Conseguiu enxergar Carl, em pé, ao lado de Steve, sentado em sua cadeira de rodas. Seus olhares cruzaram-se num instante que deveria ser eternizado numa pintura a óleo.

‘O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo

suporta.’ (I coríntios cap 13 – versículo 4,5,6 & 7)


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