O lago das almas escrita por Rodrigo Oliveira


Capítulo 1
Capítulo 1




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A noite fria de sábado, típica de inverno, tão esperada, finalmente chegara. Steve dirigia seu automóvel rumo ao lado leste da cidade. Aquele fim de semana era esperado por todos os jovens casais da cidade. Não havia muito que fazer naquela localidade no restante do ano, contudo, no inverno, um imenso parque de diversões instalava-se nas redondezas.

Ao aproximar-se do local já era possível ver dezenas de carros estacionados à margem da rodovia principal. Steve estava acostumado a estacionar na parte lateral do parque, ao lado dos tapumes vermelhos que cercavam o mundo de diversão. Fizera assim nos dois anos anteriores.

Desceu do carro, trancou a porta e com ambas as mãos na cintura admirou as luzes do parque e inspirou o ar fresco do local. Era sempre o mesmo odor agradável, ano após ano. Lembrava-o da sua infância. O perfume dos pinheiros que ficavam na colina próxima era parte ativa de sua memória olfativa. Ficara gravado ali dentro ao longo dos anos.

O som da montanha russa deslizando pelos trilhos de metal e os gritos das meninas chamaram-lhe a atenção. Notou na primeira fileira de cadeiras do brinquedo o jovem Isaac. Na verdade não seria difícil para qualquer outra pessoa da cidade identificá-lo à distância, afinal não havia muitos jovens ruivos, cabeludos e obesos nas redondezas. Isaac era o tipo que fornecia histórias engraçadas sem fazer o menor esforço. Sua vida diária bastava para abastecer os estoques de chacotas na escola secundária. No fundo, Steve sentia pena de que pegassem no pé do gordinho ruivo, mas assim era a vida.

Seguiu em direção à entrada do parque. O vapor quente da respiração que saía de sua boca e narinas era como nuvens bancas na escuridão do estacionamento. Não havia neve. Somente frio. Por ter chegado mais tarde caminhava sozinho, pisando a grama queimada pela friagem. Sentia-se bem em estar assim, porém nos anos anteriores havia companhia feminina. Seu namoro com Annie havia chegado ao fim havia poucas semanas e isso, de certa forma, era um alívio para ele, pois as coisas não andavam muito agradáveis nos últimos meses.

Parou no fim da fila de entrada com as mãos fechadas em frente ao rosto, fazendo uma espécie de cone. Soprava ar quente para dentro da concha improvisada na intenção de quebrar um pouco a friagem.

– Steve Sodenberg... O mais novo solteirão das redondezas – disse uma voz feminina.

Steve olhou para trás e logo reconheceu aquele belo rosto, apesar de haver bastante tempo que não o vira. Era Bonnie, uma amiga do colegial. Este nome é de origem Celta e significa ‘bonita’. Poucas vezes um nome e seu significado caíram tão bem em uma mesma pessoa, pensava Steve. Ela não era grande, mas possuía um olhar aprisonador, que de certa forma hipnotizava a pessoa a quem estivesse direcionado.

Fazia alguns meses que ele não a encontrava. Na verdade, vinte e quatro meses. Dois anos, desde o começo do namoro com Anne. Deixara os amigos meio de lado, como fazem a maioria dos jovens que se enamoram repentinamente.

– Se eu dissesse que estou com saudades, você acreditaria? – disse Steve.

– Só se você me der um daqueles abraços. Você ainda se lembra de qual abraço eu falo? – disse Bonnie, sorrindo.

Abraçaram-se longamente. Um abraço forte e quente naquele frio todo não era nada mal. Eles estudaram juntos durante anos seguidos e desenvolveram uma amizade sólida, só adormecida pelos acontecimentos do coração dele.

– Então você resolveu deixar Annie ‘carranca’? – perguntou Bonnie, com o deboche flagrante.

– Não sabia desse ‘sobrenome’... De onde você o tirou?

– Fácil. Bastava olhar a expressão que ela fazia quando vocês estavam de mãos dadas e você cumprimentava qualquer espécie que não tivesse um pênis entre as pernas – sorriu.

– Ela era um pouco difícil, tenho que confessar – disse, sem conseguir esconder o constrangimento.

– O que houve entre vocês. Ouvi dizer que ela lhe deu o fora.

– Ela conseguiu um emprego em outra cidade. Na verdade eu desconfio de que ela já estava se relacionando com alguém e foi conferir... Mas de qualquer forma foi uma boa. As coisas já não eram como antes, e... Bem, vamos mudar de assunto?

Caminharam parque adentro, com ela segurando seu braço com uma das mãos. O parque, incrivelmente, já não fazia tanto sentido depois de algum tempo. A conversa, o reencontro é que tinham importância. Divertiram-se, contudo, em alguns brinquedos. Pareciam duas crianças nos carros que batem um nos outros. Debochavam do medo em comum nos brinquedos de alta velocidade. A hora passava e até o frio foi deixado em segundo plano.

Steve havia se esquecido de como era prazerosa a companhia de Bonnie. Sorriam e gargalhavam como crianças, como há muito não faziam.

Ao passarem em frente à barraca de tiro ao alvo, os olhos dela brilharam. Havia se encantado com o coração de pelúcia enorme que estava disponível de prêmio, caso alguém acertasse o alvo correto.

Tudo consistia em atirar em várias caixinhas que estavam disponíveis num conglomerado de escaninhos. Na parte da frente, as caixas tinham cores diferentes e na parte de trás, invisíveis daquela posição, números que correspondiam aos prêmios que ficavam dispostos. O do coração era 27.

– Você ganha um coração de pelúcia para mim e leva um coração de verdade para você, que tal? – disse Bonnie, sempre com o lindo sorriso no rosto.

– Não sei se quero um coração de verdade nesse momento – falou o jovem, meio sem jeito.

– Eu estava brincando. Não quis insinuar nada...

– Não, não. Por favor, eu não quis ser rude. Vamos jogar – desconversou.

Enquanto ele comprava o bilhete para jogar, um velho homem gordo, de bigode, com um suspensório marrom, se debruçou de dentro da banca de tiro ao alvo, olhou nos olhos da jovem e disse:

– Esse menino não entende muito do valor que certos corações têm, não é mesmo, pequenina? – acenava com o dedão em direção a Steve, enquanto Bonnie assentia com a cabeça – Não se preocupe, tenho certeza de que levará o coração que deseja.

Pequenas bolinhas de cortiça encaixadas no cano da espingarda de ar comprimido e tudo estava pronto para o primeiro tiro. Olharam-se nos olhos, e ele concentrou-se no alvo. Mirou na caixa verde do canto superior direito. Bang! Errou o primeiro tiro. Restavam dois.

– Tente aquela caixa vermelha... A que está do lado da azul – apontava Bonnie, entre um pulinho e outro.

– Estou só treinando a mira...

– Só restam dois tiros. Não dá pra treinar muito, não é?

Definitivamente era impossível não notar aquele sorriso encantador. Steve não sabia se olhava para o alvo ou se continuava preso àquela divina expressão. Pensava no que ela havia dito sobre corações de pelúcia e corações de carne. ‘Porque não?’ Pensou. Bonnie era linda, engraçada, inteligente e compartilhavam de muitas coisas em comum. Ela estava sozinha e sugestionara um interesse que nunca havia vindo à tona.

Concentrou-se novamente no alvo e... Bang! Segundo tiro. Havia tentado acertar a caixa vermelha e acabou acertando na azul, que estava ao lado, mas ela não caiu. Só levaria algum prêmio se a caixa fosse derrubada completamente.

Terceiro e último tiro. Agora era pessoal. Sentia-se como um caçador em busca da caça do dia. Pensou em quão ridículo seria se alguém ouvisse seus pensamentos.

Terceiro tiro disparado. A caixa escolhida pela menina vai ao chão. Não precisaria nem de prêmio. Ser agarrado pelo pescoço e ganhar um beijo no rosto superava qualquer brinquedo de pelúcia.

O senhor de bigodes que presidia a banca abaixou-se para pegar a pequena caixinha amarela e conferiu a numeração da mesma, correspondente ao prêmio. 19 era o número e poderia ser trocado por um pequenino pacote de amendoins. Notou a decepção no rosto da moça e enquanto Steve guardava a arma no local de onde a havia retirado, não se conteve e pegou o grande coração vermelho e a entregou, dando uma piscadela de cumplicidade e olhando em volta em seguida para ver se ninguém notara a trapaça.

A noite seguiu tranquilamente e seguiram andando juntos, de braços dados e em dado momento o silêncio abateu sobre eles. Bonnie parou de andar e virou-se, ficando frente a frente com Steve. Olharam-se nos olhos, desta vez sem sorrisos. Tensão no ar e corações acelerados. Um beijo apaixonado? ‘Porque não?’

Seis meses se passaram desde aquele dia no parque e o namoro não poderia estar melhor. Steve redescobriu o prazer de viver uma vida dividida a dois. Até as cenas de ciúmes de sua namorada o faziam feliz. Saíam com freqüência e ele se lembrou da sorte de não ter reatado as antigas amizades, pois sabia que da forma com que fora tomado por esse turbilhão de paixão, não conseguiria ter tempo para mais nada que não fosse necessário a sua sobrevivência.

– Canal 9, Bonnie na linha.

– Boa tarde Srta. Bonnie. Tenho um furo de notícia que vai abalar esta pequena cidade.

– Oh, senhor, mas que boa notícia – disse ela em tom de brincadeira, pois já percebera que se tratava de Steve – Foi bom você ter me ligado. Hoje a redação está praticamente parada. Só temos notícias de produtores de leite que encontraram uma vaca morta no milharal e acabei de entrevistar o delegado Winston para preencher o espaço. Fora isso, mais nada. Além do mais, meu chefe me deu o fim de semana de folga, então pensei em ir ao lago, aproveitando o calor. O que acha?

– Eu espero estar incluído neste passeio.

– Claro que está. Eu preciso de alguém para dirigir. Ou você acha que eu vou caminhar seis quilômetros de estrada a pé, comendo poeira?

– Muito engraçado – sorriu - Amanhã eu passo na sua casa às 8h.

Steve passou aquela sexta-feira trabalhando na agência de carros de seu tio. Como não havia compradores, resolveu dar um polimento em seu velho carro. Não conseguia deixar de pensar em Bonnie. Ela era linda normalmente vestida, mas com trajes de banho parecia uma deusa. Pequena, porém linda.

No fim de tarde ajudou seu tio a fechar a loja, despediu-se dos outros dois funcionários, entrou em seu carro e dirigiu-se a sua casa. Dirigia lentamente pela cidade, pois adorava conduzir aquele velho ‘muscle car’. Poderia fazer o trajeto até a casa em 15 minutos, mas preferia ir curtindo o ronco do motor v-8 e levava, normalmente, o dobro do tempo.Ao reduzir para entrar na garagem, viu seu velho pai sentado na varanda, fumando seu cachimbo e tomando uma cerveja gelada, como era de costume.

Carl era um velho homem de cabelos e bigodes grisalhos. Na verdade mais para brancos do que grisalhos. Usava sempre seu velho boné de beisebol. Era aposentado de uma metalúrgica, onde trabalhou após voltar do Vietnã, onde teve de se reencontrar e voltar a vida civil. Não foi nada fácil, pois não se esquece os horrores da guerra como quem esquece de uma briguinha com a namorada. Não raras as vezes, Steve, acordou com seu velho gritando o nome de seu antigo pelotão, ou berrando que o Huey, que era o helicóptero usado naquela ocasião, estava em queda. Era assustador.

Depois de alguns anos de bebedeira e jogatina, torrando que lhe restara, conheceu Dorolty, servindo café e sanduíches na ‘Breakfast trail’. Foi amor à primeira vista. Casaram-se em janeiro 1978, três anos após retornar na guerra. Algum tempo depois nasceria Steve, único filho do casal. Eles foram uma família pobre, porém unida. O casal viveu um para o outro durante décadas, mas um convidado inconveniente bateu à porta no último verão. Dorolty passou pouco mais de um mês internada em um hospital. Sentia dores de cabeça terríveis antes disso e quando resolveu procurar um médico já era tarde demais. Um enorme tumor inexpugnável instalara-se definitivamente na cabeça da pobre mulher. Causaria inconcebível dano tentar retirá-lo. Se tudo corresse bem, na melhor das hipóteses, ela ficaria como um vegetal, ligada a aparelhos que fariam com que a respiração funcionasse.

Todos sabiam que ela era uma mulher ativa e alegre e não aceitaria passar o resto da vida como um vegetal, deitada na cama. Preferiria a morte, com toda certeza. E assim foi. Deixou essa vida na companhia das pessoas que mais amava. Morreu com Carl e Steve sentados à beira de seu leito, no hospital. Muitos parentes e amigos próximos estavam na sala.

O velório foi tocante, com todos querendo contar boas histórias daquela bela mulher. Todo mundo tinha algo pra contar e fazer com que sorrisos fossem ouvidos. Ela era fantástica.

Carl sobreviveu a isso tudo e voltou suas atenções para o filho. Eram bons amigos e conversavam sempre sobre tudo o que lhes viesse a mente naqueles fins de tarde.

Steve chegou à varanda, beijou o velho no rosto e sentou-se na cadeira ao lado, expirando, simbolizando cansaço físico.

– O dia foi duro, filho?

– Duro é ficar o dia todo na loja e não vender um carro sequer.

– Pelo menos teve tempo de ficar alisando seu carro – disse com um pequeno sorriso, esticando aquele enorme bigode de caminhoneiro. – Eu quase fiquei cego quando aquela lata amarela virou a esquina com o sol refletindo em seu capô. Por que não pega uma cerveja?

– Você sabe que não bebo álcool, pai.

– Ainda não, mas vai ver quando voltar da próxima guerra – interrompeu a fala e deu um demorado gole na sua ‘bud’ – Como vai Bonnie?

– Está bem. Ela folga o fim de semana e amanhã vamos ao lago.

– Bela menina, Deus a abençoe. Não pensam em casar?

– Pai, estamos juntos a seis meses apenas.

– Ah, garoto, você não sabe de nada. Quando conheci sua mãe, que Deus a tenha, nos casamos em duas semanas. Seu avô ficou louco – gargalhava.

– Eu a amo, mas... Quem sabe? Ainda nem comprei minha casa.

– Filho, a nossa casa é grande demais pra um velhote como eu morar sozinho. Quando quiserem, seria um prazer dividi-la com vocês e meus netos.

Steve acenou negativamente com a cabeça, porém sorria em silêncio, mas ficou feliz em ver o quanto seu pai gostava de Bonnie. Engraçado, achava, era ele pensando em netos. Talvez soubesse que não lhe restava mais décadas de vida e quisesse antecipar um pouco as coisas. Quando Steve nasceu, Carl já não era nenhum moço e gostaria de deixar tudo em seu devido lugar quando fosse a hora de ir reencontrar Dorolty.

O despertador berrava: 7 horas da manhã. Aquela campainha infernal tirava o garoto do sério. Isso num dia normal, mas hoje é sábado. Dia de passar horas a fio na companhia de sua jovem e amada jornalista estagiária da Tv local. Sentou-se na cama e esfregou os olhos. Apesar de querer muito reencontrá-la, ainda estava com sono e tomou um banho para despertar.

Ao descer as escadas viu seu pai na mesa da cozinha, com o café preparado.

– Você não dormiu? Ficou na varanda esperando a hora do café? – perguntou Steve.

– Eu durmo tarde e acordo cedo. Descobri ser uma forma de minimizar meus pesadelos com a temporada que passei num inferno chamado Vietnã. Quando acordo desses sonhos malditos fico com o cheiro de napalm nas narinas por horas. Deus me livre – divagava - Ei, não vai tomar o café?! – falou em alta voz quando viu que o jovem ia saindo.

– Bonnie vai levar uma cesta com sanduíches, não se preocupe.

– Um bom sábado para vocês. Tenha cuidado com a menina.

Carl ficou de pé na varanda, com sua xícara de café quente, enquanto Steve saía com o carro. Sentiu um incômodo na alma, mas não soube dizer o que era. Não deve ser nada - e retornou ao interior da casa.

Dessa vez o carro andava com o motor roncando pesado. A saudade era grande e Steve não desejava perder um minuto que fosse. Já havia alguns dias que não se encontravam pessoalmente, já que não havia horário certo para que Bonnie saísse da redação.

Quando foi encostando o carro em frente à casa da menina, ele a viu, já o esperando, sentada nos degraus de madeira pintada de branco da entrada. Radiante como sempre, usava um vestidinho branco, enormes óculos escuros, como é de costume das meninas, chinelos de dedo nos pés e um grande chapéu de palha. Seu sorriso refletia alegria. ‘Como não percebi essa mulher antes?’, falou em baixa voz consigo mesmo enquanto estacionava.

Ela levantou-se, pegou o cesto com o lanche e foi entrando no carro.

– Cuide bem dessa menina, rapaz. – Disse o pai da jovem, da sacada no segundo andar.

– Cuidarei como se fosse eu próprio.

– Deve cuidar como se fosse sua alma, ou eu te pego – falou tentando parecer durão – já sendo repreendido pela esposa.

– Pode acreditar que cuidarei, Sr. Finnegan, não se preocupe.


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