Contos escrita por Carlitos


Capítulo 5
Vermelho




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Como numa noite qualquer, saí do trabalho às 19h. Trabalhava, àquele tempo, em minha própria marcenaria, fazendo móveis que me custavam a coluna e muitas dores no corpo. Mas, para os meus clientes custavam uma merreca que muitos deles nem queriam pagar, e que nem de longe me pagava o esforço por fazê-los.

 

Mas, melhor trabalhar e ganhar algum dinheiro do que morar debaixo do viaduto.

 

Deixei meu amigo e parceiro de trabalho, Frank, em casa, visto que na época ele não tinha um carro. Decidi ir à farmácia, comprar um analgésico qualquer, quando minha esposa, Margarete, me liga desesperada.

 

Até ali era um dia como outro qualquer, e me espanta como depois da ligação, nada mais era como antes. Como as coisas mudam rápido, e, se não dermos nosso jeito, vem a vida e passa por cima de nós. Nosso filho James, me dizia Margarete, deseperada, delirava, perdia a consciência por instantes, e não conseguia se sustentar em pé. Suplicava-me para eu voltar pra casa, para levar ele ao hospital.

 

Depois de alguma desorientação, consegui entender o que se passava, e disse a ela que, em vista do que acontecia, não daria tempo de chegar em casa e ainda levá-lo ao hospital. Deveria, então, ela ligar para uma ambulância e os paramédicos levariam James ao hospital.

 

— Mas eu não consigo, Allan, estou desesperada. Nosso filho está aqui!... Meu Deus!... Nosso filho está morrendo! — dizia-me. Ela nunca tinha me dado apelidos, sempre me tratou pelo meu nome.

— Calma, Marga, mantenha a calma!

 

A quem eu queria enganar. Eu próprio já nem enxergava, via apenas em borrões. O atendente da farmácia, vendo minha agonia, talvez para me ajudar, decidiu me trazer um pouco de água. Mas, ele mesmo também se agitava ao me ver aflito. Imagine um pai receber uma ligação dessas, assim, de forma inesperada.

 

— Como vou me acalmar, como vou me acalamar! Nosso filho, Allan!… — caiu em prantos do outro lado da linha. — O que eu faço? Pelo amor de Deus, volte pra casa! — gritava pelo celular.

— Espere aí que vou chamar uma ambulância enquanto vou até aí!

 

Aceitei a água que me trouxe o atendente, que tentava me acalmar. No fim, tive eu que tranquilizá-lo, para que eu conseguisse sair da farmácia. Esqueci lá mesmo o analgésico que comprei.

 

Entrei no meu carro e fui correndo pelas ruas até minha casa. Enquanto dirigia com apenas uma mão, com a outra ligava para os paramédicos. Consegui, até hoje sem me lembrar direito, comunicar o que acontecia em minha casa, e que precisava de uma ambulância, rápido. 

 

Consegui chegar mais rápido que o socorro, e era esta a cena que se desenrolava: meu filho lutando para manter a consciência. Minha mulher, em choque, tentando mantê-lo acordado. Então, para mim, por alguns segundos o silêncio imperou e o mundo se passou em camêra lenta.

 

Em instantes após minha chegada, chegaram os paramédicos. O avaliaram, colocaram-no em uma maca, e o retiraram para o hospital. Margareth foi junto na ambulância, eu segui atrás, no meu próprio carro. Em breve estaria com meu filho internado.

 ——XX——XX——

Difíceis foram os dias que se seguiram. Dias de UTI, ele respirando com a ajuda de aparelhos. Antibióticos fortes, exames e mais exames. Dias de caminhadas pelo hospital, com aqueles corredores de piso asséptico branco.

 

Sofrera uma infecção generalizada que quase o levara à morte. Perguntávamos qual poderia ser a causa, em troca eles, os médicos, nos enchiam de perguntas, sobre como vivíamos, o que fazíamos, onde moravámos. No fundo, ninguém sabia de nada.

 

Noites em claro, à espera de alguma resposta. Meu filho com seus dezesseis anos, e eu temi a sua morte. Em um dia em que estávamos eu e Margarete juntos, ela foi até a capela do hospital, fazer uma oração para Deus.

 

Deus. Aí começaram meus problemas. Nossos problemas. Nós dois tínhamos sérias desavenças quanto à religiosidade. Mas ela se casou comigo mesmo assim, já sabendo como eu pensava. Queria eu apenas receber um pouco de respeito.

 

— Como você não ora pelo seu próprio filho, como pode ser esse monstro! — me intimou após voltar de suas orações.

 

Não, Margarete, eu é que não sei como você pode se ajoelhar e pedir para um ser que você nunca viu, nunca conheceu e de quem só ouviu falar, para que ele cure nosso filho. Eu não sei, não sei como as pessoas podem acreditar em "deus".

 

Eu já tentei, já tentei, mas talvez eu não tenha conseguido a resposta, ou não tenha sido digno da resposta.

 

— Não, Marga, eu é que não sei como você pode ficar aí orando pra alguém que você nem sabe se existe, pedindo uma cura milagrosa! — retruquei.

— Não existe? Como não existe?! Você que é um perdido, uma alma perdida! — retrucava ela com o rosto vermelho. — Deveria se arrepender de suas palavras!

— Pois eu não sou nenhum monstro! — esbravejei e bati na pequena mesa de madeira que havia ao lado da poltrona em que eu estava. — Estou sofrendo tanto quanto você! Só não perco meu tempo com bobagens!

— Isso, vá lá, quebra tudo de novo, é só isso que você sabe fazer!

 

Estávamos em uma pequena sala de convivência do hospital, com poltronas e café numa cafeteira. Vendo que já estávamos chamando atenção ali, com nossa briga, decidi me levantar e ir embora.

— Isso, vá, vá mesmo embora! E vá com Deus! — retrucou debochada.

 

Já fazia algum tempo que meu casamento não estava bem. Brigávamos constantemente, por coisas pequenas como uma toalha molhada, e até por coisas grandes, como nossas crenças.

 

Mas nem sempre foi assim. Houve um outro tempo, uma outra Margarete, que era doce, compreensível. Ela nunca foi de me chamar de Amor, mas me olhava doce, me tratava como um rei. Agora só era grosseria, desprezo.

 

Houve um tempo que eu me sentia bem. Que estar junto com ela era como me libertar de mim mesmo. Como se eu ficasse mais livre quando estava junto dela. E Margarete se sentia assim também. Eu podia sentir, sentir em seus abraços, sentir no seu olhar. Eu podia perceber isso em seus sorrisos quando me via. 

 

E tudo ia muito bem, até que tivemos James. E nossa vida melhorou, melhorou muito. Nós nos tornamos uma família muito unida, cada um se completava com o outro. Havia respeito dentro de casa.

 

Mas o tempo foi passando. Meu filho foi crescendo, assim como a idade chegando para nós dois. Meu corpo físico passou por mudanças, me tornei calvo. E  foi surgindo algo no olhar de minha Margarete.

 

Algo que no começo eu queria ignorar. Não, está tudo bem, eu dizia a mim mesmo. Deve ser só impressão. Tudo continua igual, e para sempre seremos felizes. Mas as feridas começaram a aparecer. Os abraços se tornaram menos calorosos. A cumplicidade foi se esgotando.

 

Até o amor parece que foi morrendo. Fui sentindo, aos poucos, que ela foi me deixando de lado. E eu perguntava, queria saber o que ocorria. E ela me dizia que eu não entendia. Como não entendia, se nem conseguia enxergar qual a causa de tudo isso? Então sim, realmente não entendia e não entendo.

 

E aí começaram brigas, desentendimentos. Tudo que eu falo ou faço é motivo de discórdia. Nunca está bom o suficiente. Nunca sou bom o suficiente. Na religião mesmo, ela sempre soube que sou ateu, nunca escondi. E, durante nossos anos dourados, sempre me respeitou. Já não mais. Não mais.

 

E James também. Ele também foi crescendo, tomando suas próprias decisões, seguindo seus próprios caminhos, caminhos errados. Não me admira se essa infecção que ele teve foi causada por conta desses amigos novos que ele fez. Desses passeios que ele faz, dessas experiências que ele tem.

 

Como todo adolescente, passou a se achar o rei do mundo, o dono da razão. Por vezes eu lhe falo, tento mudar sua cabeça, mostrar-lhe a verdade. Porque o que importa é o mundo real, e não o mundo de ideias que ele, e a turma dele vivem, ou insistem em querer viver.

 

E, com toda a certeza, o comportamento dele também tem culpa em toda a rejeição que Margarete sente por mim. Porque vivemos ultimamente em meio a brigas, brigas entre nós três. E ele ainda se levanta contra nós, diz que nós dois somos atrasados! Eu só queria ter uma família em paz.

 

Andei por corredores brancos, alas do hospital que eu nem sabia que existiam. Quando dei por mim, estava a sós, em um corredor vazio. Uma enfermeira passou por mim, nem notou a minha presença.

 

O ar, o ambiente pesado. Sente-se a doença, a dor e a morte presentes no hospital. Não à toa é um lugar desagradável para os internados.

 

Há uma salinha de estar vazia ao fim do corredor. Entro. Uma poltrona vazia e um móvel com revistas velhas ao centro. Sento-me na poltrona e começo a me perder em pensamentos.

 

Estou perdendo minha esposa.

 

Estou perdendo meu filho.

 

Estou perdendo minha própria vida.

 

Os anos se passaram, quantos objetivos, sonhos não realizados. Quantas coisas não tive de abrir mão em minha vida, em prol de minha própria família. Família que agora me trata mal.

 

Mas, agora há uma moça, uma jovem mulher que outro dia apareceu na marcenaria, querendo que consertássemos um brinquedo velho de madeira, uma caixinha de músicas com uma bailarina dentro. Foi um serviço fácil, e não pude deixar de notar; que mulher era aquela!

 

Seus cabelos rubros como fogo, seus olhos marcantes. Sua pele, seu rosto. Seus lábios. Conversamos um pouco, como adultos jogam conversa fora.

 

A juventude, a promessa de vida que ainda há por vir. Exalava beleza! E como era agradável, aprazível sua conversa. Eu um ogro, ela uma dama, uma lady.

 

Como era mesmo seu nome? Era algo com L… Louise? Isso, Louise Christine. Tenho de me encontrar com ela de novo, mesmo que de longe, mesmo que só para observá-la.

 

 

Observar seus passos

 

Passos compassados

 

Passos em saltos altos, compassados

 

Observá-la o rosto, o corpo

 

Sentir seu cabelo, sua pele na minha

 

Minha mão a acariciar-lhe o rosto

 

Seu olhar, suas mãos, seu sorriso

 

E o mundo se fez branco e em preto e branco. Não havia mais poltrona, móvel, parede, o que seja. Apenas o chão asséptico branco. Não havia paredes, não havia nada mais. Havia somente a mim mesmo lá.

 

E sua presença. Eu senti seus saltos se aproximando, por trás de mim. Compassados. Primeiro um, depois o outro. Um e outro. Senti seu perfume antes que chegasse. Chegou. Que perfume! Era inebriante, embriagante. Senti-me alterado, como há muito não me sentia.

 

Girei em meu próprio eixo. Fixei meus olhos nos dela. Não me disse nada, palavras já não eram necessárias. Que visão daquele rosto, um rosto de mulher! Poderiam os dias se passarem, poderia o mundo acabar, mas eu estava ali, com aquela vista que em minha memória agora seria indelével.

 

Então envolvi sua mão direita com a minha, abracei-a com o meu outro braço. Seu corpo colou ao meu. Senti seu perfume e seu hálito de menta. Algo mais primitivo veio a mim, vontades mais básicas me subiram a cabeça. Olhamo-nos. Ela sorriu mais uma vez, um sorriso em que quase me derreti. Então a guiei pelo salão.

 

A guiei com seus saltos e seu vestido colado e com uma fenda. Ela tinha seus cabelos presos num coque, e eu usava roupas formais. Girava-a de um lado a outro, bailávamos pelo salão. Com movimentos duros, compassados, tristes. Dançávamos um tango argentino.

 

Uma enfermeira me acordou, eu dormia e roncava alto sentado numa poltrona que me dava dor nas costas.

 


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