Contos escrita por Carlitos


Capítulo 1
Espelho




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Olho-me ao espelho e não me reconheço mais. Tudo o que vejo é uma fina sombra daquilo que já fui um dia. Todas as coisas que tenho não me pertencem mais. Pertencem àqueles que foram antes de eu ser quem sou agora. Sou um nada, a negação daquilo que fui, e esse não ser é o que o meu ser é agora.

Todos os sonhos que um dia tive não existem mais. Tudo aquilo que um dia gastei tempo e neurônios ficaram soterrados por aquilo que tive de ser a determinado momento. E o momento não existe mais. Dá lugar a outro momento em um ciclo infinito. Nada de mim e a mim resta mais.

Não sei a quem mais devo recorrer. Olho à minha volta e não me reconheço no que vejo. Queria algo assim, mas o tenho assado. Por quê? Eu me pergunto, e a resposta não obtenho. Ela fugiu de minhas mãos.

Eu não posso mais fugir de mim mesmo, e eu mesmo sou o que não mais reconheço, a negação do que sou. Essa negação define quem sou. Apenas me abro às coisas alheias e delas me aproprio, sem nunca fazer as coisas eu mesmo.

Faço este conto, isto é uma coisa.

Olho-me nas vitrines, e não me reconheço. Não me vejo naquelas roupas caras, naqueles sapatos europeus. Não me vejo mais.

Aquele sorriso está tão vívido em minha memória. Aqueles cabelos, aqueles olhos. Sinto-me tão bem ao deles me lembrar. Era como se me dessem algo para ser, como se neles estivesse o segredo para eu ser.

Ser, sentir. Só se é quando se sente. Se não sinto, não sou. Os objetos não sentem, por isso não são. Penso, logo existo, esta é a minha existência. Mas existencia não é ser, é estar-aí. Sou um estar-aí, mas gostaria de ser.

Olho-me à porta de uma loja de roupas finas e não me reconheço mais. Todos os meus pecados um dia serão perdoados, e nada mais me restará. Passarei a ser uma folha em branco. Poderia eu ser maior que isso. Poderia eu ser o dono do mundo. Mas não sou. Sou apenas um raio, passageiro, assustador. Um raio que assusta quem me cerca. Um raio que marca todos que me conhecem, mas é vazio: é apenas luz e calor.

Olho-me de joelhos na minha casa e não me reconheço mais. Vagas lembranças dão-me conta daquilo que já fui, e o que me resta são migalhas espalhadas.

Talvez eu devesse vir a ser, mas não me reconheço mais.

Caminho até meu quarto com minha cama arrumada pela minha camareira. Não há sequer um fio de cabelo que seja meu ali; o lençol acabara de ser tirado da embalagem. Não me reconheço nele. Não me reconheço no quarto. Quando foi que decidi ter cortinas brancas? Quando foi que decidi decidir não arrumar minha própria cama?

Olho meus amigos e não me reconheço neles.

Olho meus carros e não me reconheço neles.

Tudo, tudo está tão impregnado do não eu que o não eu tornou-se eu.

Caminho até um de meus automóveis e o dirijo pela estrada, e na forma como dirijo não me reconheço. Quem o dirige é meu instrutor da autoescola, meu pai, minha irmã, qualquer um, menos eu.

Chego à uma cafeteria qualquer de um shopping qualquer. Não me reconheço nas pessoas. Estão todas caminhando, caminhando, caminhando. E eu parado, parado, parado. Meu café esfria e minhas mãos esquentam. O café é preto, a xicara é branca. Brilham à luz, cada um à sua maneira. A xicara é xicara e o café é café. O que sou eu?

Sou o quê? Quêm?

Ouço músicas na loja de discos. Não me reconheço nelas.

Um estado de dúvidas ambulante, a dor lascinante. A falta de definição em minha vida. Onde, aonde irei chegar? Reconhecer-me-ei lá?

Ainda tenho nítidas minhas lembranças mais antigas, quando eu era algo. Estão tão longes, mas ainda estão lá. Lembro-me dos beijos que dei ao pé do monte, naquela linda garota que com carinho guardo seu nome. A última vez que fui.

Agora sou apenas o estar.

Deixe-me estar.

Deixe-me ficar.

Tudo é tão perfeito, ao mesmo tempo que é tão estranho.

Tudo é tão impessoal.

Olho-me ao espelho e não me reconheço mais. Tudo o que vejo é uma fina sombra daquilo que já fui. Terminei meu banho, fiz minha barba. Ela cresce a cada três dias. Ela é o que sou: não é, pois sempre a raspo.

Tomo meu café e não me reconheço nele. Está aguado e inssosso. Tomo-o porque fi-lo, e desperdiça-lo não vou.

Olho-me no RG e não me reconheço lá. Aquela foto registrou um homem que eventualmente fui, hoje não mais. E eventualmente foi mesmo, porque um grande evento foi eu já ter sido, pois foi um evento que eventualmente foi se fazendo, não ao acaso, mas se fazendo evento. E quem nunca é, quando é, mesmo que não seja, apenas é visando a um fim, é um grande evento.

A vida é uma grande linha reta.

Olho-me ao espelho e vejo que não ser é o que sou.


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