Posto 4 escrita por Yokichan


Capítulo 1
Único




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Demian está no posto 4 desde as onze da noite.

Na rua lateral do outro lado da cerca, nada se move — porque não há nada ali além dele e daquele depósito que rescende a metal velho. Há apenas o escuro, o silêncio e a sensação de estar sozinho no mundo. Demian já se acostumou a essa sensação, mas agora ela parece especialmente mais pegajosa, como um líquido pastoso e gelado que escorre lentamente pela garganta sem que se possa fazer algo a respeito. Ele se mexe inquieto na cadeira que solta um rangido — o único som que ele tem ouvido há horas — e olha outra vez para o relógio de pulso. São pouco mais de quatro da madrugada e Demian pensa no tempo que ainda falta para que ele possa ir para casa.

Pensa na garota dormindo em sua cama. Pensa na camiseta velha que ela deve estar vestindo e nos cabelos da cor do sol quando se põe espalhados sobre um travesseiro. Pensa em seu corpo branco e esguio encolhido debaixo dos lençóis e a lembrança de poder tocá-lo e senti-lo na boca faz com que ele amaldiçoe mais uma vez aquele emprego que não o deixa passar as noites com ela.

O emprego que também não o deixa dormir.

Demian não se lembra mais quando foi a última vez em que fechou os olhos e dormiu de verdade, sem pressa e sem os problemas que o atormentam e que o fazem virar-se na cama sem nunca conseguir adormecer, porque toda a sua vida tem sido trabalhar até quase a exaustão que um homem é capaz de suportar. Demian quer tirar a mãe daquela droga de vida em que nunca se consegue nada e em que se afunda um dia após o outro, se é que ele pode chamar aquilo de vida. Não quer nada para ele — a garota lhe basta — e sabe que também não merece coisa alguma.

Porque ele sabe o tipo de cara que é.

Quando as costas começam a doer, ele se levanta e sai da cabine. Precisa caminhar ou dormirá sentado, e dormir significa assinar a própria demissão. As lâmpadas de iluminação do complexo projetam sombras frias e alongadas e no ar se sente o cheiro da sujeira daquele mundo. De um mundo que já está perdido. Enquanto se deixa levar, Demian desvia o rosto das luzes que ferem os olhos. Sente o corpo pesado e solta um riso nervoso, quase desesperado, ao perceber que já não consegue mais pensar em nada porque todo o seu ser está cansado demais para entreter a si mesmo enquanto o tempo passa.

Demian só se dá conta de que começou a cair uma chuva fina e silenciosa quando olha para baixo e vê o pavimento ficando molhado. Ele se lembra da madrugada em que tremeu de frio durante horas até que rendessem seu turno porque pegara uma pancada de chuva enquanto corria do terminal de ônibus até a fábrica, e decide voltar para a cabine. Mas então alguma coisa se move às suas costas e ele se vira num sobressalto a tempo de entrever um vulto que desaparece na quina da parede.

Um vulto que se arrasta para o escuro.

E que respira.

Demian fica ali parado ouvindo aquela respiração cansada de uma coisa que, seja lá o que for, quase não tem mais forças para continuar existindo. É a respiração angustiada de alguém que sofre, e enquanto está ali como que pregado ao chão, sem conseguir decidir se deve avançar ou fingir que não viu nada e voltar para a cabine, Demian sofre também. Uma língua molhada de medo lambe-lhe a nuca e ele sente os pelos dos braços ficando de pé. Sente que um buraco se abre dentro do peito e se pergunta como alguém seria capaz de suportar aquele suplício.

A respiração da coisa parece arranhá-la por dentro.

Demian não entende por que — não está mais pensando direito —, mas sabe que, se continuar ali enquanto a coisa agoniza até à morte, acabará ficando louco para sempre. Ele sabe que precisa sacar a arma presa à cintura ou sair dali, e quando sente a coronha da pistola na palma da mão, ele pensa que poderia acabar com a coisa apenas para não precisar mais ouvir sua respiração que falha.

Ele pensa na garota que o espera no quarto — a garota que ele já machucou tantas vezes, como fez com todas as outras, a garota que diz que ele não presta, mas que o aceita na manhã seguinte, a garota que, apesar de tudo, ainda está lá — e sente vontade de deixar a coisa para trás. Mas não deixa.

E avança para ela.

Mas quando chega ao outro lado, engole o próprio grito e deixa a arma cair, porque não há nada ali. É como se o tivessem acertado com força no peito ao ponto de deixa-lo atordoado. Não há coisa alguma, não há ninguém para esconder-se no escuro, e, mesmo assim, Demian continua ouvindo aquela respiração que machuca.

Ele está sozinho.

E entende, com horror, que aquele é o fim da linha — pois a respiração é sua.

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Quando o colega apareceu para rendê-lo naquela manhã, encontrou-o molhado e catatônico na cabine da guarita. Como alguém que está a meio caminho entre o despertar e o sono profundo, parecendo não ter consciência das coisas que faz, Demian vestiu a jaqueta, entregou as chaves do setor ao colega e saiu sem dizer uma palavra.

E foi para casa.

A garota estava lá, dormindo sozinha na cama grande demais, exatamente como ele a havia imaginado. Então Demian deitou-se ao lado dela e, abraçado ao seu corpo quente, chorou como um menino.

Demian nunca mais voltou ao posto 4.


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Notas finais do capítulo

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