A verdade está nas sombras escrita por Victória


Capítulo 5
A maga foragida


Notas iniciais do capítulo

Primeiro capítulo escrito pela Victória de 2015!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/654025/chapter/5

Albert corria pela rua com a menina adormecida nos braços. Ninguém parecia prestar atenção. Provavelmente isso se devia a comoção causada pelo recente domínio da capital dos Magos do norte e a captura da família real: o povo estava em festa. Mesmo no meio da tarde, os bares já estavam lotados e garrafas de vinho e cerveja - cortesia, provavelmente dos eufóricos donos - circulavam pelas mãos e bocas das pessoas. Algumas, inclusive, foram estendidas para Albert, que ignorava conforme andava.

Albert achava aquilo tudo ridículo. Como poderiam festejar algo tão terrível? Pessoas haviam morrido. Pessoas que provavelmente estavam no lugar errado na hora errada. E mesmo que não fosse assim, ninguém tinha o direito de festejar a morte de alguém por pior que seja. Ninguém. Além do péssimo hábito que Sodon tinha de escravizar e prender o povo do país conquistado como se não fossem pessoas. Olhava para as ruas que andava e imaginava cada rosto que via acorrentado, ferido, trabalhando como mulas... todas aquelas crianças que corriam ou dançavam alegres caindo no chão com lágrimas rolando pelo rosto berrando pelos pais que certamente não estariam ali para consolá-las. Albert piscou os olhos afastando aquele pensamento e voltou a correr uma vez que atravessou a multidão.

Albert não sabia exatamente a quem recorrer para ajudar a pobre menina desfalecida. Ir diretamente aos curandeiros não lhe parecia uma boa ideia uma vez que todas as instituições mantinham registros de todos os cidadãos - registros que constavam cada um dos deveres obrigatórios de cada homem ou mulher - e se descobrirem que havia fugido do colégio, receberia não só uma multa que faria com que os olhos de Sra. Lyrol se tornassem vermelhos, mas teria que permanecer no colégio depois do horário para fazer os serviços normalmente incumbidos aos estudantes mais novos, e Albert não desejava ficar lá por mais tempo do que fosse necessário. Decidiu, então, correr direto para casa e ficar lá até que os sinos batessem. Preferia lidar apenas com uma Sra. Lyrol enfurecida do que com uma Sra. Lyrol enfurecida, trabalhos forçados e uma multa. Sem contar que poderia pedir ajuda a ela para tratar a menina. Poderia ficar furiosa, mas não iria deixar alguém doente na mão. Era uma das pessoas mais bondosas que conhecia. Apressou o passo, então, para casa, pegando um atalho que levava a porta dos fundos para chegar mais rápido.

Deparou-se com Fellow. O gato gorducho que até então dormia no portão saltou para longe com a chegada apressada de Albert. O menino parou de correr ao ouvir vozes incomuns vindo de dentro da casa: eram guardas e estavam interrogando Sra. Lyrol. Seria um erro tremendo entrar naquele momento uma vez que receberia a multa e os trabalhos forçados de qualquer jeito. Ao invés disso, fez o máximo de silêncio que pôde e colou o ouvido na porta para ouvir o diálogo.

– A senhora tem certeza que não viu nenhuma mulher estranha perambulando por ai? Cabelos castanhos, olhos verdes. Provavelmente com vestes indecentes e maltratadas? - Perguntou uma voz grossa e autoritária.

–Não senhor, estive em casa o dia inteiro. Tenho filhos para criar, sabe. Deixar o almoço pronto depois das aulas é essencial. - Respondeu a voz de Sra. Lyrol com um pingo de ironia característico da velha.

–Não fuja do assunto, senhora. Esta é uma missão de procura oficial do Rei. Mais detalhes talvez refresquem sua memória?

– Por favor, filho. A memória desta velha senhora não é mais como antigamente como já deve imaginar.

– A foragida em questão é uma Maga que provavelmente planeja reunir-se com seus amigos rebeldes para formar uma rebelião que mergulhará nosso país em mais guerra e prejudicará a vida de seus amados filhos se não for capturada. Possuí a marca dos nossos inimigos estampada em seu corpo como prova disso.

Algo vibrou dentro de Albert. A marca real dos Magos, inimigos atuais de Sodon, era nada mais nada menos do que um sol. Finalmente o menino começou a juntar as peças: cabelos castanhos, olhos verdes, roupas tão maltratadas que Al teve que tirar o próprio casaco para cobrir o corpo da menina... e finalmente a tatuagem de sol em seu braço direito... a mulher que estavam procurando estava dormindo nos braços de Albert naquele momento. Algo impediu Albert de escancarar a porta e clamar-se captor da perigosa Maga. Aquilo certamente o isentaria das multas e do trabalho além de ficar bem visto perante os colegas e soldados. Algumas coisas lhe diziam que aquilo era uma péssima ideia. Uma delas era o fato de duvidar que a menina que dormia de forma tão inocente poderia ser tão perigosa.

– Não a vi, meu senhor. - Sra. Lyrol respondeu ao guarda. - mas desejo toda a sorte do mundo para encontrar esta terrível ameaça.

Novamente a ironia.

O Guarda não disse mais nada. Apenas fungou para a senhora e saiu porta afora. Albert só entrou em casa quando não ouviu mais os passos do guarda.

– Sra. Lyrol... - anunciou o menino - acredito que... talvez... queira chamar os guardas de novo?

A senhora virou o corpo para encarar Albert com um olhar zangado, mas o olhar da velha deteve-se no corpo que segurava, tomando um ar de preocupação.

– Pelos deuses... - Sra. Lyrol apressou-se em retirar as coisas de cima da mesa, abrindo espaço para deitar a menina - Al... feche as janelas e tranque a porta, sim?

Albert não reclamou. Fez exatamente o que ela disse após deitar a menina na mesa. Sem demora, Sra. Lyrol começou a examinar a garota: primeiro colocou os dedos em seu pescoço e suspirou aliviada ao sentir a pulsação apesar da pele fria da menina. Depois pôs a mão abaixo de seu nariz para ver se a respiração estava regular e vasculhou o corpo em busca de ferimentos detendo-se na tatuagem no braço direito da menina, tão negra, mas tão negra que parecia que tinha sido feita ontem. Não se demorou muito no entanto. Foi até a cômoda em seu próprio quarto e escolheu uma túnica, um casaco e uma saia para vestir a menina. Albert virou o rosto quando a mulher começou a despir a menina e colocar as roupas mais quentes que ficaram grandes demais no corpo magro da garota.

– Parece que não come a dias. Talvez este tenha sido o motivo do desmaio. - A velha voltou-se para Al. - Onde a encontrou?

–No... -Albert suspirou - No campo de flores, Sra. Lyrol...

–Albert... quantas vezes te falei para não ir até lá? É perigoso! Fica no meio da floresta e estamos em guerra! É um lugar perfeito para soldados inimigos se esconderem ou nossos soldados o confundirem com um inimigo! - Sra. Lyrol só não gritou pois sabia que ainda haviam guardas do lado de fora. - Veja, eu entendo que seja um lugar importante para você, mas guerras não duram para sempre. Um dia essa vai terminar e eu o levarei pessoalmente até lá, certo?

– Quando vai acabar, Sra. Lyrol? Já dura há tanto tempo! Nem sei o que é viver em paz! Nem eu, nem Leo, nem Alicia... todos nós nascemos no meio dessa guerra estúpida!

–Al... - Disse Sra. Lyrol com pena

Alguém começou a bater incessantemente na porta.

–Senhora?! Senhora?! - Gritava o mesmo soldado de antes - Abra agora mesmo! Sei que está ai dentro! Abra ou serei obrigado a invadir!

–Esconda-a - disse a velha no ouvido de Albert que pegou a menina e subiu rapidamente as escadas.

Sra. Lyrol recolocou rapidamente os objetos tirados da mesa e pegou o vestido rasgado da menina, olhando a sua volta perguntando-se o que fazer com ele.

– Senhora?! - Gritou o soldado batendo na porta com mais força.

–Já atenderei! Estou cozinhando! - Respondeu a velha da forma mais natural possível.

– Não estou com paciência para suas brincadeiras hoje, velha!

Sra. Lyrol teve uma ideia ao olhar para o degrau quebrado. De algum jeito, conseguiu enfiar o vestido maltratado por dentro da fenda em que todos tropeçavam. Pelo menos ali ninguém perceberia. Em seguida sujou as mãos com a massa que de fato já estava trabalhando antes dos soldados chegarem e atendeu a porta tentando não parecer ofegante.

Albert subiu as escadas e entrou em seu próprio quarto fazendo o mínimo de barulho possível. Olhou ao redor procurando um lugar para se esconder, e mais importante, esconder a suposta Maga foragida.

Decidiu, então, esconder-se dentro do armário - pra sua sorte ou azar, bem vazio - com a menina nos braços. Colocou-a em pé e abraçou-a junto a si para que não caísse. Sentia que o corpo dela ficava mais quente graças as roupas dadas pela Sra. Lyrol, ainda bem. Fechou os olhos para concentrar-se no diálogo abaixo. Não foi precisa muita concentração para escutar aquilo.

– Por que trancou as portas e janelas? Posso saber? - Perguntou a voz grave do guarda

– O senhor entra na minha casa e me pergunta se tinha visto uma maga foragida por aí, perambulando por nossas ruas. Preciso de mais motivos para me assustar e querer me proteger? - Gritou a velha, sem ironia desta vez.

– E com quem estava falando, velha?

–Como?

– Eu ouvi sua voz enquanto estava sozinha, senhora. Não tente bancar a esperta comigo.

–Tem algum problema em uma velha senhora querer conversar sozinha com os fantasmas de seu passado? - Ironia

O guarda bufou novamente e passou os olhos pela casa. O sangue de Sra. Lyrol gelou quando o homem prendeu seu olhar no degrau quebrado, mas tentou não transparecer o nervosismo.

–Alguém precisa consertar aquele degrau, se é que não tenha percebido. - disse o guarda voltando-se para a porta.

Antes de sair, o homem pegou uma das louças preferidas de Lyrol e tacou-a na parede, fazendo com que pedaços de porcelana voassem por toda a sala.

– E isto também - Completou o guarda virando de costas e andando até a porta - Que isso sirva de lição, senhora. Espero que guarde sua arte da ironia para o teatro no futuro.

Então o homem bateu a porta com força. Sra. Lyrol esperou que os passos do homem sumissem e que seu coração acalmasse para olhar escada acima e ver se o garoto estava bem.

Ao perceber que o conflito havia acabado, Albert deixou o armário com a menina no colo e a deitou em sua própria cama cobrindo-a com o lençol antes de descer as escadas apressado e preocupado com Lyrol.

Suspirou aliviado ao perceber que a velha estava bem e esperando para que ele descesse.

– Por que a ajudou? - Perguntou Al

– Assim como existe gente como aquele homem que devemos considerar amigo, podem existir pessoas gentis que somos obrigados a considerar inimigas. - Lyrol suspirou - Quero ouvir o lado da história daquela menina antes de entregá-la a quem quer que seja. Não me importa se é o Rei que a quer. Sou velha demais para obedecer a qualquer um.

Sra. Lyrol pegou a vassoura e a pá para varrer os cacos de porcelana.

–E o que faremos agora? Quero dizer, temos uma foragida do Rei dentro de casa. - perguntou o menino

A velha andou até o menino e entregou-lhe a vassoura e a pá.

– Você vai ficar calado e limpar os cacos da minha louça. Não pense que eu esqueci que cabulou aula, menino. Quando a menina acordar, decido o que faremos com ela.

Albert fez o que ela mandou. Sra. Lyrol voltou-se para a massa que estava preparando. Depois que catou todos os pedaços de porcelana, fez menção de que ia jogar fora, mas os guardou no bolso ao invés disso. Pelo menos assim teria algo para fazer enquanto a menina não acordava.

Subiu os degraus até seu quarto e olhou a menina adormecida. Havia mudado de posição: dormia agora de lado. Isso era bom, acreditava Albert. Significava que logo acordaria. Sentou-se a escrivaninha entulhada de livros de contos de autores há muito mortos. Gostava de lê-los pois davam a Albert uma perspectiva de mundo diferente da que tinha ali, preso naquele país guerrilheiro e minúsculo onde só encontrava pobreza e tristeza. Nos livros podia viajar pelas terras de todo mundo: desertos, oceanos, florestas com vegetações tão diversificadas que Albert nem mesmo conseguia imaginar. Acompanhar as aventuras de seus heróis preferidos também fazia parte de sua diversão, heróis corajosos com ideologias e valores tão belos que Al quase os invejava. Queria ser como eles e salvar o mundo do iminente ataque de goblins e dragões tanto quanto queria viajar o mundo todo. Mas esses eram só sonhos, sonhos que não poderiam ser realizados enquanto estivesse em Sodon.

Albert tirou os cacos de porcelana do bolso e pegou o pote de cola em sua gaveta. Primeiro montou a louça na mesa sem colar os cacos como um quebra-cabeça para evitar colocar qualquer peça fora do lugar. Caco por caco, pedaço por pedaço, montou até formar o belo desenho de pomba que a louça um dia exibira, foi uma tarefa que tomou mais tempo do que imaginara e percebeu que estava suando após realizá-la apesar do frio. Sentindo falta do pincel de cola. O menino virou-se para procurá-lo e encontrou algo diferente.

Olhos verdes atentos observando seu trabalho agora observavam seus próprios olhos.

A menina havia acordado e Albert não percebera.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ficou maior do que eu imaginava.... enfim, espero que tenham gostado!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A verdade está nas sombras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.